Berta bateu à porta dos Vianna. Levaria Rob novamente para a escola. O casal ainda estava confuso, amedrontado com o que tinha acontecido na noite passada.
Assim que o filho e o marido saíssem, Elisa iria à igreja para falar com o padre. Procuraria alguma explicação para as loucuras que vinham acontecendo na cidade. Sentia que deveria procurar ajuda e o padre foi a única pessoa que veio à cabeça. A manhã estava ensolarada, mas sem o vento frio dos outros dias. Aproveitou-se do fato de Ben ter dado carona ao marido de novo. Assim, poderia ficar com o carro para ir ao centro, sem que Berta e Ben estivessem por perto. Hesitou por um instante. Se aquelas pessoas sabiam de tudo o que acontecia por ali, era possível haver espiões sempre a postos, não era? Dane-se! Já estavam atolados na merda mesmo. Melhor arriscar mais uma cartada do que ficarem para sempre reféns dos loucos.
***
Rob se sentia disposto, mesmo tendo acordado durante a madrugada. Ainda se empolgava com a cidade e decidiu que, naquele dia, faria um amigo na escola. Adiantou-se a se sentar tão logo entrou na sala, prestou atenção constante em Berta. Ele tinha certo receio dela, principalmente quando se lembrava da professora permeando os sonhos dele. Mas se ela era avó de Michael e mãe de Ben, era boa pessoa.
A aula passou rápido. Berta explicara mais sobre matemática e ciências naquele dia. Ele gostava das duas matérias e sempre se dera bem nelas. Adorava estudar e aprender coisas novas, mesmo que não entendesse onde poderia usar o conhecimento adquirido. Ele finalizava a última tarefa quando o sinal para o recreio tocou. Guardou o caderno e o livro de atividades na mochila e disparou numa corrida direto para a cantina. A barriga do garoto berrava de fome.
Comprou um salgado, um suco e descansou as pernas, sentando-se a uma das mesas do refeitório. Prestes a fincar a mordida com todo gosto na comida, a boca salivando, sentiu o impacto na mão. A pancada, dada de baixo para cima, fez o salgado se esbagaçar contra a cara de Rob, arrancando risos de toda a plateia presente no refeitório. Sacudiu a cabeça, arrancou pedaços de massa esmagada da cara e ergueu a vista para o garoto alto e abrutalhado, que esticava um sorrisinho cínico.
— O que foi, seu estranho? Por que está me olhando com esses olhos de aberração? — disse o garoto.
Rob estarreceu. As crianças ainda riam e debochavam. O garoto pegou a lata de suco e a abriu. Tomou um longo gole e depois virou o resto sobre a roupa de Rob.
— Ops! Foi mal, aberração.
Rob correu para o banheiro, apostando corrida contra as trilhões de gargalhadas que pareciam sempre ultrapassá-lo. O caminho ficou embaçado pelas lágrimas que se formavam. Fez um esforço sobre-humano para não chorar. Não queria que rissem ainda mais dele. A vergonha flutuava ao seu lado, sempre lhe dando tapinhas nas costas.
Trancou-se em um boxe e se sentou na tampa do vaso, os joelhos apertados contra o peito. Não podia chorar! Não podia chorar!
Queria chorar.
"Não! Sem choro, Rob!", castigou-se.
Já bastava a vergonha de ser humilhado na frente de todo o refeitório. Se chorasse, aí é que não o deixariam em paz. Sabia disso porque a mesma coisa acontecera em São Paulo, nos primeiros dias de aula. Odiava-se por ter aqueles olhos. Odiava-se por ser diferente dos outros e por ser sempre motivo de chacota por causa daquilo.
Ficou trancado até ouvir o sinal novamente. Lavou-se na pia do banheiro, tentou tirar o cheiro de suco das roupas, mas foi um erro. Agora parecia que estava mijado, e não poderia demorar para voltar para a sala, ou Berta brigaria com ele. Ou pior, contaria para sua mãe que ele tinha matado aula.
Abriu a porta do banheiro e olhou para os dois lados. Não tinha ninguém. Caminhou o mais rápido que pôde; queria chegar logo na classe. Tinha certeza de que, sob os olhos da professora, ninguém tiraria sarro dele. A poucos passos da porta da salvação, ouviu uma voz:
— Ih, a aberração mijou nas calças! Não fica com medo, aberração, eu não vou machucar você.
Mais risadas. De onde diabos havia saído tanta gente?
Rob empurrou quem quer que estivesse na frente e acelerou pelo corredor até alcançar a sala. Berta o olhou com ar reprovador. Rob permaneceu calado.
Sentou-se na cadeira, o olhar não conseguia passar da linha do tornozelo da professora, a vergonha inflamada no peito. Não queira mais ficar na escola, não queria mais voltar para a escola. Nunca mais. Também sentia desconforto de pensar em contar tudo aquilo para os pais.
E se eles rissem também?
Rob só queria que a aula acabasse, queria ir para casa. Não. Para seu forte, seu esconderijo particular, construído pelo único amigo que tinha em Rio Denso.
O tempo se arrastava.
***
Abraçou a mãe quando chegou em casa.
— O que aconteceu, meu bem? — perguntou Elisa.
Rob passou as costas das mãos pelo rosto, tentando espantar a vontade de chorar.
— Não foi nada, mamãe. Preciso ir para o quarto estudar. — Correu escada acima.
Fechou a porta atrás de si e ouviu a voz abafada da mãe perguntando se ele queria almoçar. Não sentia fome. Largou a mochila sobre a cama e saiu pela janela. Atravessou o gramado o mais rápido que pôde e se enfiou na floresta, seguindo o caminho que Michael havia ensinado.
Sentou-se no piso do forte vazio, meio decepcionado. Esperava que o amigo estivesse lá esperando por ele, mas não tinha ninguém. Decidiu aguardar um pouco mais por Michael. Então as lembranças se condensaram na frente dos olhos e escorreram pela face. Não havia mais razão para segurar. Estava no forte, em sua fortaleza particular.
— Eu odeio esse lugar! Eu odeio esses olhos!
Decidiu se levantar para ir embora, quando Michael entrou, sem a faixa na cabeça. Mesmo tendo visto o rosto de Michael antes, não conteve o susto. Aqueles buracos vazios eram macabros demais para que ele pudesse entender como o amigo perdera os olhos. Era quase inacreditável.
— Por que você disse isso, Rob? Por que está chorando?
Michael se sentou de frente para Rob, procurando uma distância agradável.
Quis resistir a se abrir, mas era coisa demais para guardar no peito; e ele era seu único amigo, não era? Poderia ajudá-lo de alguma forma.
Rob começou por São Paulo. Falou que sempre fora atacado pelas outras crianças por causa dos olhos estranhos. Depois falou sobre o incidente na escola em Rio Denso. Michael o ouviu em absoluto silêncio. Quando Rob terminou, ele perguntou:
— Quem era o garoto?
Rob não sabia o nome dele, apesar de conseguir descrevê-lo com perfeição. Pareceu ser suficiente.
— Amanhã estará tudo certo, Rob. A partir de amanhã, a escola vai se tornar um lugar mais agradável para você.
Rob não entendeu o que o amigo queria dizer com aquilo. Antes que pudesse fazer qualquer pergunta, Michael mudou de assunto:
— Posso te mostrar uma coisa?
Rob assentiu.
— Promete que não vai fugir e nem deixar de ser meu amigo?
Rob cruzou os dedos, fazendo sinal de juramento.
Michael se sentou o mais próximo possível de Rob, estendeu uma mão na direção do rosto dele e deixou que o trespassasse. Rob não conteve a reação de susto, quase gritou.
— Como você fez isso? — Os olhos cuspiam espanto.
Michael se levantou e saiu da cabana. Rob o seguiu.
— Vou contar isso aos poucos. Você precisará saber da história, mas não vai demorar muito. Agora, acho que é hora de você ir. Sua mãe está preocupada. Posso sentir daqui. Acho que ela acabou de entrar na mata.
Rob concordou, voltou pela trilha, relembrando a imagem da mão do amigo passando através dele, como se fosse um dos fantasmas que via nos filmes de terror.
Aquilo não lhe dava medo. Afinal, Michael era seu único amigo.