Chereads / Semente do Mal / Chapter 29 - 29 — O EX-VALENTÃO

Chapter 29 - 29 — O EX-VALENTÃO

Michael se levantou antes do amanhecer. Precisava passar pela casa de algumas crianças. Tinha prometido a Rob que ninguém tiraria mais sarro dele, e, se não cumprisse com isso, que tipo de irmão seria? Além do mais, só aumentaria a confiança no outro com um ato desses.

Apenas duas pessoas conseguiam enxergar Michael: Ben, por causa do pacto que haviam feito; Rob, por causa dos laços que envolvem gêmeos idênticos. Por mais que tivessem sido criados separados durante tantos anos, o sangue deles ainda era o mesmo. Voltar a ter contato direto com Rob vinha reestruturando o laço que enfraquecera pelo tempo. Michael sentia o irmão de novo, sentia a força da presença dele mesmo quando não estava ao seu lado. Também sentia que aquele sentimento crescia dentro de Rob, apesar de o irmão ainda nem fazer ideia do que eles realmente eram um para o outro.

Mas o fato de ser invisível não o tornava inaudível. Ele podia tornar uma pessoa sã em alguém louco. E já fizera aquilo com a mãe de Valter, o gordo fedido. Ela andava pela cidade falando sobre o filho que perdera, cantarolava músicas a seu respeito pela cidade e Michael gostava disso.

Passou pela casa de todas as crianças, deixando apenas uma mensagem:

"Riam de Rob Vianna novamente, e nunca mais conseguirão rir. Nem nessa vida, nem no Inferno, que é para onde vocês irão."

Mas guardou uma surpresa para o garoto que começara tudo. O valentão que havia derramado suco em Rob. Ele merecia mais, é claro. Merecia ficar quase louco.

Michael se colocou ao lado da cama do grandalhão, que roncava feito porco e fedia tanto quanto. Nem mesmo morto dava para evitar o nojo pela catinga de suor que saía do maldito.

— Acorde — falou.

O garoto arregalou os olhos e saltou da cama, engasgou-se com a própria saliva, tossiu, levantou-se tateando o ar. Quando conseguiu estabilizar a respiração, disse:

— Quem está aí?

Michael soltou uma risada, fazendo com que os pelos da nuca do rapaz se arrepiassem.

— Acho que você sabe quem eu sou. Seus pais já devem ter contado histórias sobre mim.

O garoto acendeu a luz do quarto. Olhou de um lado para o outro e não viu nada.

— Saia daqui, demônio.

Ele catou um crucifixo e começou a chacoalhar o objeto para todas as direções.

— Se afaste! Volte pro Inferno.

Michael gargalhou. O menino girava sobre o próprio eixo, procurando pela fonte do som.

— Você mexeu com meu amigo. Acha engraçado tirar sarro dos menores que você?

O grandalhão gaguejou:

— Eu-eu não sei do que você está falando. Eu não sei!

— Não minta para mim. — Michael endureceu a voz, mas a manteve baixa. Mostrava que estava no controle.

O menino tentou dar dois passos para trás e tropeçou nos próprios pés, caindo sentado. Juntou os joelhos ao peito, colou a testa no topo dos joelhos e colou o crucifixo à cabeça. Os fungados saíram abafados, mas audíveis, e as lágrimas cadenciavam contra o piso de cerâmica antiga

— Por favor, me deixe em paz. — A voz saiu afetada pelo choro.

— Vou te visitar todas as noites, seu monte de bosta. Se eu souber que alguém tratou meu amigo mal, descontarei em você. Então se esforce. Não deixe que ninguém o desrespeite. Ande com ele, seja o guardião dele. Faça tudo o que Rob quiser e tudo o que o agrade, mesmo que não peça. Caso contrário, você e seus pais ganharão uma passagem de ida antecipada para o Inferno.

Tudo o que Michael ouvia enquanto se afastava era:

— Ajudar o garoto. Ajudar o garoto. Ajudar o garoto...

***

Rob repassava todo o pesadelo enquanto se arrumava para a escola. Ben, Berta, Michael, todos estavam lá. Também viu um homem de pele morena no meio da multidão, forçou mais um pouco e percebeu que era o mesmo homem que batera a porta da igreja na cara de Elisa. Era o padre, sim. Mas tinha algo que não vinha da cabeça de Rob. A sensação vinha das entranhas, do fundo do coração: era irmão de Michael. Só não conseguia entender porque pensava isso, apenas sentia. Percebeu semelhanças físicas de início, mas quando viu como Michael era antes de perder os olhos, no sonho... Papai do Céu, os dois eram idênticos.

E tinha o fato de saber que era adotado. Os pais nunca mentiram sobre isso. E agora Rob se perguntava: "Eu vim de algum lugar. Será que foi daqui?".

Sentia-se eufórico. Queria ir para o quartel-general conversar. Tinha tantas perguntas. Queria tantas respostas. Além disso, não sentia muita vontade de ir para a aula. Mesmo que Michael tivesse dito que correria tudo bem naquele dia, tinha receio. Não queria que rissem dele ou começassem a chamá-lo por apelidos.

A única coisa que quebrava o silêncio durante o café da manhã era o som do mastigado e dos talheres cortando as panquecas. Cada um imerso em seus próprios planos e teorias.

Ben bateu à porta. Levaria o médico ao hospital de novo. Ficava cada vez mais óbvia a "boa vontade" do homem: vigilância e controle. Augusto abriu a porta e sentiu o formigamento subir pelas pernas ao dar de cara com o velho. Beijou Elisa e partiu para o hospital.

Rob assistiu TV até que Berta chegasse e se aventurou para mais um dia na selva chamada colégio.

Elisa foi à igreja.

***

Rob caminhou como um rei. Por onde passava, as crianças baixavam as cabeças. Ao que parecia, Michael tinha resolvido mesmo seu problema.

Os ponteiros do relógio pareciam quebrados. A explicação de Berta saía em alguma língua asiática esquisita. Não dava para se concentrar em nada. Não quando a ansiedade esmurrava o coração de Rob o tempo todo. Tudo o que queria era sair logo dali e encontrar com o amigo... irmão... será...? Por que a droga do tempo não passava logo?

E quando, enfim, o sinal sonoro anunciou o recreio, Rob disparou como um foguete para os corredores.

O garoto grandão o esperava no caminho.

— Espere! — disse o grandalhão.

Rob engoliu em seco, os lábios empalideceram. Tudo o que conseguiu foi olhar para o garoto

— Queria... queria pedir desculpa. Me chamo Fernando. — Estendeu a mão para Rob. Falava com a cabeça baixa e tinha os ombros arqueados para frente.

Rob o cumprimentou.

— Desculpas aceitas. Agora, preciso ir comer.

O garoto não saiu do caminho. Retirou um pacote de biscoitos e uma lata de suco da mochila.

— Comprei para você antes do sinal bater. Está fresquinho.

Michael realmente tinha cumprido a promessa. Ele pegou o lanche e a lata de suco, deu de ombros e largou um suspiro.

— Anda, não precisa disso. Vem, vamos comer juntos.

Procurou uma mesa ao centro e convidou o outro para se sentar ao lado dele. Fez-se um vácuo ao redor dos dois. Nenhuma criança ousou sentar próximo aos dois. E não foi nada confortável ficar assim até dar a hora de voltar para a sala.

— Rob, desculpa mesmo, tá? Aquilo não vai mais acontecer. — O garoto baixou a cabeça, deu meia volta e retornou para a sala.

O tempo não pareceu colaborar nem mesmo quando a aula acabou e Rob e Berta voltaram para a casa dos Vianna. Por acaso, o caminho tinha aumentado? Parecia que, quanto mais desejava chegar em casa, mais entrava numa câmera lenta.

Rob almoçou o mais rápido que pôde, deixou o prato na pia e disse para mãe que iria ficar no quarto resolvendo a tarefa. Jogou a mochila no chão do quarto, saltou a janela e disparou para o quartel-general.