Augusto esperou que o carro de Ben descesse a colina antes de levantar qualquer questão. Admirou os pinheiros que margeavam a estrada. Irônico pensar que um local tão lindo pudesse ser cenário para coisas ruins.
Quando chegaram ao sopé da colina, Augusto falou:
— Preciso de respostas, Ben.
O velho suspirou. Imaginou que ele faria perguntas, mas não pensou que seria tão rápido. Parou o carro ali mesmo onde estavam para que pudessem conversar.
— Imaginei que gostaria de algumas respostas. Bom, acho que está mesmo na hora.
Augusto assentiu. Ben começou.
***
— Minha história começa há tantos anos, que acho difícil alguém conseguir calcular. Não pedi para ser o que sou, mas eis que foi como me fizeram. Sou metade humano, metade demônio.
Augusto gargalhou. Nem pensou a respeito. A vontade de rir veio do fundo do coração e saiu. Ben o encarou e arqueou a sobrancelha direita.
— Não quer que eu acredite nisso, não é?
Ben olhou para a frente e deu um longo suspiro.
— Como você acha que eu mantenho vocês aqui, Augusto? Ou como imagina que eu consegui fazer com que você não fosse aceito em nenhum local de trabalho, a não ser aqui?
O médico se pegou pensando a respeito. Era impossível acreditar naquilo. A mente dizia para não acreditar. Essas coisas não existiam, eram tudo invenção para controlar a massa através do medo. Talvez fosse essa a vontade de Ben. Resolveu deixá-lo continuar para ver até onde aquilo iria. Ainda rindo, falou:
— Ok, prossiga.
— Muito bem. Minha história começa quando minha bisavó se junta a um demônio chamado Baal. O motivo disso não importa. O que importa é que: por causa disso, para que eu continue vivo, preciso anualmente sacrificar um bebê.
Ao ouvir isso, Augusto se encolheu. Abriu a porta do carro e saiu. Ben fez o mesmo.
— Como é que é? Você mata crianças indefesas em prol da sua vida?
Ben apenas assentiu.
— E foi por isso que você nos trouxe aqui? Vai matar meu filho? — berrou o médico.
Ben encostou no carro, pegou um cigarro do bolso da calça jeans e o acendeu. Deu um trago profundo.
— Não, Augusto. A sua vinda para cá não coloca em risco a vida do seu filho. Mas preciso dele para trazer o meu filho de volta.
O médico jogou as mãos para o alto, perplexo com o que ouvia. Passou as mãos pelo cabelo e ficou andando em círculos. Procurava absorver aquelas informações. Fez sinal para que Ben prosseguisse.
— Bom, isso faz parte da minha natureza. Se sinto pena dos bebês que matei? Infelizmente, não. Até chegar em Rio Denso, só me preocupava comigo. Tudo mudou quando conheci Aurora. Tivemos uma breve vida feliz aqui, até sermos atacados pelo Padre Julio. Ele ainda vive aqui, por sinal. Além de tirar a vida de um dos meus filhos, o maldito levou o outro para longe de mim e da mãe.
Augusto não queria pensar naquilo, mas as ideias voavam para dentro da cabeça. Outro filho. Não podia ser Rob. Não podia. Chutou o chão, comprimiu os lábios.
— E quem seria esse seu outro filho? — perguntou, temendo a resposta.
Ben tragou novamente o cigarro. Encarou o médico fixamente e respondeu:
— Acredito que você saiba a resposta.
E, por mais que Augusto negasse, sabia. Por mais que aquela história fosse absurda, ele acreditava.
— Não pode ser.
— O padre colocou a cidade inteira contra nós. Tudo começou por causa de um cachorro que mordera Michael, meu filho. O animal não resistiu ao sangue que corria nas veias dele e o padre se atentou a isso. Ele tentou nos expulsar daqui, mas nos negamos. Rio Denso era o nosso lar. Por fim, em um fatídico dia, eles subiram por essas colinas e nos pegaram de surpresa. Quando vi, estava sendo segurado por pessoas. Eles amarraram Michael e arrancaram os olhos dele. Aqueles olhos lindos, cheios de amor e inocência. Por sorte, alguns moradores se arrependeram do que fizeram, dando chances para que minha mãe conseguisse tirar meu outro bebê da cidade. Mas foi tarde demais para Michael. Bom, desde então, acompanhamos a vida de Rob... e a sua também.
Ben suspirou, como se falar aquilo em voz alta fosse mais doloroso do que lembrar. Respirou fundo, esperou que as lágrimas que ameaçavam saltar dos olhos fossem embora.
— Depois daquele dia, eu fiz um pacto. Veja bem, eu sou metade humano, então eu ainda poderia escolher entre Deus ou o Diabo. E, naquele dia, eu vendi minha alma de vez. Vendi por vingança. Vendi pra preservar meu filho. Isso me custaria alto, eu sabia, porque a própria alma do meu filho seria vendida junto. Mas não hesitei. E ele me deu muito mais. Preservou o corpo de Michael. Preservou para que ele se vingasse. Para que ele desse ao Diabo todas as almas dessa cidade. E é ai que Rob se encaixa.
Augusto soltou outra gargalhada, mas dessa vez carregada de tensão.
— Qual é, Ben? Acha mesmo que eu vou acreditar nisso? — O sorriso tremulava nos lábios de Augusto.
— Acho.
O médico voltou a esfregar os cabelos com as mãos. Por um lado, procurava entender a raiva de Ben, por mais absurdo que aquilo pudesse ser. E se fosse com Rob? Se o padre quisesse matá-lo? Ele ficaria quieto vendo o filho morrer? Estava nervoso e com medo. Medo do papel que Rob teria naquilo tudo.
— Para que Michael reviva, é preciso que Rob saiba de tudo. É preciso que ele entre em contato com o corpo de Michael. O toque da outra metade gêmea é que ligará o corpo à alma do meu filho novamente. Depois disso, Rob pode decidir com quem deseja ficar. Não me colocarei no caminho dele. É meu filho de sangue e tenho que honrar qualquer escolha que faça.
Augusto não suportava mais ouvir aquelas coisas. Era demais para sua cabeça absorver. Entrou no carro e esperou que Ben fizesse o mesmo. Nenhuma palavra mais foi dita até chegarem ao hospital. Quando Ben deixou Augusto, disse:
— Quero que saiba que não desejo causar nenhum mal a você, nem à sua família, doutor. Apenas quero meu menino de volta. Quero poder tocá-lo, afagar-lhe os cabelos. Beijar-lhe o rosto antes de dormir. Não estou pedindo muito. Estou pedindo, por favor.
O médico ficou encarando o homem, virou-se e entrou no hospital.
Ben suspirou. Tentou segurar as lágrimas, mas dessa vez não foi possível. Se Augusto não convencesse o filho, provavelmente não teria seu Michael de volta. Acreditava que Michael conseguiria induzir Rob a ajudá-lo, mas a certeza estava com Augusto. Só o pai conseguiria pedir que o filho fizesse aquilo. Pegou-se rezando para que ele o fizesse. Ansiava pelo abraço de Michael há muito tempo. Não suportaria a ideia de perdê-lo para sempre.
Ben podia sentir que a lua se aproximava. Mais alguns dias, e tudo teria um fim. Para o bem ou para o mal. De qualquer forma, dali a alguns dias, descansaria. Para o bem ou para o mal.