Julio estava ajoelhado no banco da igreja, as mãos postas em oração à frente do rosto. Imaginava que Elisa voltaria. Julgava que a mulher ficaria curiosa com toda a história do dia anterior.
Agora, era com ele. Valia tudo para trazer a mulher para o seu lado durante a luta contra os servos do mal. Orquestrara toda a história para persuadir Elisa de vez como sua aliada, mesmo que alguns muitos detalhes fossem mentira. Depois, ela e a família seriam descartadas. Criaram um dos filhos do Diabo e cuidaram para que ele crescesse e pudesse voltar a Rio Denso. Eram infiéis, indignos do Paraíso. Ao final, não haveria espaço para eles. Seriam apenas Julio Cani e seu Deus.
E tudo vinha de cima, toda a ordem vinda do Todo Poderoso. Deus mostrara a luz que guiaria os caminhos do seu mais fiel servo.
A manhã estava ensolarada e raios de luz do sol entravam pelas janelas. Uma brisa fresca soprava pela porta e encontrava a nuca do padre, refrescando-o. Dali a alguns minutos, a protetora do demônio chegaria e o ajudaria a chegar até o garoto.
Elisa deu duas batidinhas na porta. Apesar de abertas, ela preferiu bater para deixar o padre ciente da presença de alguém entrando.
— Bom dia, padre.
Julio se levantou, os joelhos doíam. Forçou um sorriso e foi até ela.
— Bom dia, minha filha. Que bom que veio. — Abriu os braços e a enlaçou.
O gesto causou um pouco de estranheza na mulher, mas também trouxe conforto. Era bom saber que teria um apoio na cidade. Um apoio importante, inclusive. Era o representante de Deus na cidade quem a acolhia, e o que poderia estar acima de Deus, não é mesmo?
Julio fechou as portas e a conduziu até o banco na frente do altar.
— Sente-se aqui, filha. Vamos direto ao assunto.
Elisa fechava e abria as mãos sem parar, enxugava as palmas na calça jeans a cada instante, a perna tremia sem que ela percebesse.
***
— Depois de descobrir a ligação entre Ben e Aderet, a ficha caiu. Eles eram uma família que fez um pacto com um demônio e a alma deles estava fadada ao Inferno. E foi então que decidi tentar ajudá-los.
Elisa coçou as mãos, ainda mais nervosa pela história que o padre começou a contar, mas não o interrompeu.
— Subi a colina em um dia chuvoso, a fim de conversar com eles. Estava ansioso, pois nunca tinha visto um demônio realmente, apesar de que, neste caso, a alma deles ainda tivesse uma metade humana. Pelo menos, era o que eu imaginava. Pensei que poderia tentar liquidar a parte maligna e salvar a humana. Ledo engano. A natureza deles pendeu para o lado mais fraco, onde conseguiriam as coisas quando e como quisessem, desde que fizessem seus sacrifícios macabros. Quando cheguei lá em cima, fui recebido pelas duas crianças. Meus pelos se arrepiam até hoje só em lembrar. Os olhos selvagens brilhavam sobre sorrisos maléficos. E aqui, Elisa, imagino que você já tenha entendido que um dos garotos... bem, é o seu filho. — Julio ergueu o queixo, olhando Elisa de cima. A mão do padre tocou o ombro da mulher como um consolo.
Ela sacudia a cabeça, os olhos marejavam, encarava o nada. Mas fazia sentido. O sonho; o garoto no tronco era idêntico a Rob, era como olhar para o próprio filho. Rob era adotado e sua origem era desconhecida. O menino fora deixado à porta da família, sem recados, sem orientações, nada. O pior de tudo, o que rasgava o coração da mulher, era que, sim, tudo fazia sentido.
— Eu entendo, padre. — Foi tudo o que conseguiu dizer. Julio assentiu.
— Eles tinham algum poder maligno dentro de si. Mas eu ainda tinha esperanças. Nosso Deus é muito bondoso, e, caso eles se arrependessem, tenho certeza de que seriam perdoados. Bom, eles não quiseram me ouvir. Me chutaram de lá assim que me viram, ameaçando me usar para a magia negra, que os mantinha jovens e que mantinha a colheita próspera. Desde então, eles ficavam lá em cima e eu ficava aqui embaixo. Não mexiam com as pessoas da cidade e a cidade não mexia com eles.
Julio se levantou e foi ao altar para acender uma vela. Ainda de costas, continuou:
— Mas teve um dia que eles pegaram um bebê daqui. E então eu não consegui ficar parado. Ver o sofrimento de uma mãe por ter perdido um filho partiu meu coração. Marquei algumas reuniões com os moradores para decidirmos o que fazer com eles e a decisão foi unânime: tínhamos que matá-los e mandá-los de voltar para onde nunca deveriam ter saído.
Elisa suspirou. Julio percebeu que ela não falaria nada e prosseguiu:
— Então foi o que fizemos. Eu sei que pode parecer difícil entender. Eles parecem humanos, mas não são, Elisa. Eles usam o corpo humano como hospedeiro, mas eles são demônios. Pertencem ao Inferno e não deveriam andar pela terra. Subimos aquela colina e amarramos primeiro um dos meninos. O nome dele era Michael. Os outros moradores seguraram os pais, enquanto outro segurava o outro filho. Os gritos deles eram algo sobrenatural, indescritíveis. Ao perceberem que perderiam o corpo que ocupavam, se desesperaram. Não queriam voltar para o Inferno. Mas a morte do primeiro garoto mexeu com a cabeça de todos e, infelizmente, eles cederam. A mãe de Ben conseguiu levar o outro menino embora. Depois disso, uma lua vermelha apareceu no céu ainda de manhã, e, nesse dia, dez crianças foram mortas. Foi o suficiente para que a fé da população fraquejasse, para que os inimigos se fortalecessem e conseguissem virar o jogo. Eles nos obrigaram a entregar dez crianças por ano para sacrificarem. Não faço ideia do porquê. Só sei que somos obrigados a fazer isso. Caso contrário, a desgraça que cairá sobre nós será pior que a morte. Muitas pessoas daqui tentaram parar de fazer bebês. Ben os obrigou a voltarem atrás, às vezes forçando que copulassem sob sua observação. Dizem até que ele se aproveitava da situação para trazer prazer a si mesmo enquanto assistia aos atos. Depois de nove meses, ele aparecia e tomava a criança.
As lágrimas de Elisa banhavam o rosto horrorizado, os tendões do pescoço se esticavam sob a pele. Parecia nem respirar mais.
— E você, você quer matar meu filho, padre?
Julio se aproximou dela novamente e a abraçou. Esticou um sorriso sádico quando Elisa não pôde ver seu rosto.
— Claro que não, minha filha. Agora sabemos que ele foi adotado e bem cuidado. A natureza demoníaca dele parece ter ido embora e não se manifestado. Vi isso nos olhos e no comportamento do seu Rob. Acredito que seu filho tenha perdido a parte maligna dele. Mas preciso de sua ajuda para acabar com Ben, Aurora e Berta. Só assim vocês poderão sair daqui. Eles controlam quem entra e sai da cidade. É para ter esse poder sobre nós que eles usam aqueles dez bebês em forma de sacrifício. Com eles vivos, vocês jamais sairão. — Julio olhou-a de canto de olho. — Ou você acha que ele vai deixar que vocês fujam com o único filho vivo que lhes restou?
Elisa se permitiu um sorriso. Limpou as lágrimas com as costas das mãos. Era bom ter um aliado de tamanha força. O sonho também havia sido explicado. A cabeça da mulher girava como um tornado, o coração doía ao saber que aqueles malditos eram os pais verdadeiros de... Não! Não eram! Os pais de Rob eram Augusto e ela. Jamais deixariam que o filho voltasse para os braços daqueles loucos. O seu Rob seria protegido. O seu Rob, não deles!
— Tudo bem, padre. Me diga o que posso fazer para ajudá-lo. Quero ir embora daqui logo. Esse lugar me dá calafrios e coisas estranhas acontecem desde que chegamos aqui. Não quero perder meu filho. Sei que ele é uma criança boa. Sempre foi.
Elisa se levantou. Julio a acompanhou até a porta.
— Acredito que tudo terminará com a lua vermelha. Ela surgirá no céu ainda de manhã, quando o sol deveria aparecer. Ao avistá-la, corra para cá. Traga seu filho, nós o protegeremos, e, juntos, daremos um fim a tudo isso. Então você poderá ir embora. E, mais uma vez, não conte nada ao seu marido. Imagino que, nesse ponto, ele já tenha caído nas mentiras de Ben. Se eles desconfiarem, vocês ficarão presos aqui para sempre.
Elisa beijou a mão do padre e se retirou da igreja. O coração estava mais leve. Finalmente entendeu muita coisa. Bom saber que ainda tinha alguém bom de verdade na cidade e era uma bênção poder contar com alguém que vivia a palavra de Deus, um homem capaz de dar a vida pelas pessoas. Só precisava ficar atenta à lua vermelha agora.
Julio sorria nas costas dela. Como a mulher era burra. Traria a cria do demônio direto para seus braços. Seria mais fácil do que imaginava. Seu Deus era bondoso demais. Colocara aquela mulher no seu caminho. Os dados foram jogados e quem estava ganhando era ele. Finalmente, terminaria aquilo de uma vez por todas.
Fechou as portas da igreja e tirou a bata, ficando nu na presença de seu Deus. O pau endureceu novamente. Seu Deus o queria. Sim, queria. Subiu as escadas do quarto correndo e se jogou na cama. Teria o Mestre dentro de si; um agradecimento pelos bons serviços.