Elisa encontrou Rob pouco depois de entrar na floresta. O rosto do menino parecia iluminado, totalmente o contrário de quando o filho chegara da escola.
— Oi, mamãe.
— Onde você estava?
— Com Michael, no nosso quartel general.
Elisa já esperava aquela resposta. Ainda não tinha visto o tal amigo desde que chegaram de São Paulo. Também, havia lido várias vezes que, em certa idade, as crianças costumam criar amigos imaginários. Talvez fosse o caso com Rob. Outro fator que fortalecia a teoria era a de que Ben não tinha apresentado o garoto para eles. Segundo Rob, Michael era filho de Ben. De toda forma, preferiu não esticar o assunto, afagou a cabeça do filho, deu-lhe a mão e voltaram juntos para casa.
O cursor do editor de textos piscava na tela branca, sabe-se-lá quantas páginas depois de iniciado o romance que escrevia. Elisa se levantou da cadeira, andou até a janela e vislumbrou a sombra convidativa que se formava sob a grande árvore à frente da casa. O rosto se iluminou, um sorrisinho se permitiu nascer. Ela catou o notebook, ganhou o ar livre e se sentou no conforto da sombra.
Perdera o foco e o interesse pela história desde pouco antes de saírem de São Paulo. Vez por outra, sentava-se frente à frente do computador, mas não conseguia mais produzir. Até que o guardou de vez. Naquele dia, resolveu tentar de novo. Gostou da experiência do ar livre e do aroma do oxigênio limpo. Assim, escreveu uma palavra por vez, depois uma frase por vez, até que um parágrafo brotou bem diante dos olhos da mulher. A ansiedade resfriou a barriga dela, e, sem perceber o tempo correr, havia criado algumas páginas. Parou apenas quando viu Augusto chegar.
Ele se sentou coladinho com ela, deu um abraço forte na esposa e um beijo. Viu que Elisa tinha um sorriso grande desenhado na face.
— Como anda o romance, meu bem?
— Tive umas ideias novas e mudei algumas coisas, mas, de alguma forma, encontrei inspiração de novo. Assim que tiver a primeira versão pronta, deixarei você ler. Fechou o notebook, ergueu-se e ajudou Augusto a se levantar. Era hora de preparar o jantar.
Augusto desabou no sofá ao lado de Rob e deu um abraço forte no filho.
— E aí, campeão, como foi seu dia?
Rob o olhou apreensivo, então se lembrou da conversa com Michael e do segredo que o amigo havia compartilhado com ele. Sorriu.
— Foi normal, papai. Nada demais.
Era um tanto irônico dizer "nada demais" depois de descobrir que o amigo era um fantasma e de ter tido um dia tão fora do normal. Quase riu com a lembrança.
Augusto assanhou os cabelos do filho e foi para a cozinha, onde Elisa começava a preparar as coisas para o jantar.
— Não, não! Nada disso, meu amor. Hoje, eu cozinho.
Ela retorceu as sobrancelhas ao centro da testa e abriu um olhar de espanto, mas não se opôs. Amava a comida do marido, apesar de ele não ter tempo para cozinhar muito por conta dos plantões que fazia. Talvez, em Rio Denso, começasse a ter mais tempo para as artes culinárias.
— Bem, pois, se é assim, vamos tentar fazer uma noite gostosa em família. — Ela tirou uma garrafa de vinho da adega, encheu dois copos e deixou um próximo de Augusto, na bancada. Sentou-se ao balcão que dividia a cozinha e bebericou do vinho importado. — E o seu dia, como foi?
Ainda de costas, Augusto respondeu:
— Normal, nada de estranho. Na verdade, nem tivemos paciente, o que tornou o dia bem tedioso. Pensei até em passar o pano em todos os corredores do hospital para me ocupar.
Elisa gargalhou. Imaginou a cena do marido com o jaleco branco e um balde com água. Divertiu-se com a imagem que desenhou na mente.
— Pagaria uma nota para poder ver isso.
Augusto virou o rosto para a mulher e ironizou:
— Haha! Muito engraçadinha.
Elisa se lembrou da conversa com o padre e fez um esforço tremendo para não contar nada. Talvez, quando soubesse da história completa... Sacudiu a cabeça, queria evitar as doidices da cidade, pelo menos naquela noite. Bebeu mais um gole do vinho e ficou observando o marido. "Como eu amo essa bunda", pensou. Gargalhou de novo.
Os três jantaram juntos. Fizeram todo o possível para não dar vazão aos problemas de Rio Denso. Permitiram-se curtir a família, apesar de tudo o que acontecera.
Mas, enquanto comia, Elisa às vezes não refreava os pensamentos sobre a história de Aderet e sobre o demônio. Lembrava-se que, se a história fosse verdadeira, sua família estava morando na casa que um dia fora de Ben e que ele era filho de um demônio. Aquilo não fazia sentido. Não dava para acreditar numa história daquelas.
Augusto maquinava a ideia de ir embora da cidade. E se tentasse contato com Sam? Se o amigo encontrasse a cidade, conseguiria fazer alguma coisa para ajudar? Provavelmente, ele seria só mais um preso a Rio Denso, assim como eles. Não dava para arriscar colocar o amigo em perigo.
Rob imaginava como seria a aula no outro dia. Michael prometera a ele que ninguém o importunaria de novo, e ele acreditava nas palavras do amigo. No fundo, pegou-se torcendo para que o garoto se machucasse, para que sofresse como ele sofreu.
Depois, assistiram um pouco à TV.
Elisa foi a primeira a subir para dormir. Augusto continuou a história para o filho até que ele dormisse. Em seguida, foi para a cama. Tudo o que podiam fazer era pensar e planejar, fugir não era mais opção.
Deitaram as cabeças nos travesseiros; Elisa pensando no próximo dia, onde conversaria de novo com o padre; Augusto sofrendo com o maldito alarme soando na mente; Rob dormindo com um sorriso no rosto.
***
Rob teve um novo pesadelo. Voltou ao sonho em que vira a mulher parecida com Berta. Agora ele sabia onde estava. Era o pátio da casa onde morava em Rio Denso. Via as pessoas ao seu redor com total nitidez. Ouviu um grito, como no primeiro sonho.
Ao olhar na direção do som, viu um garoto amarrado pelas pernas e pelos braços a um tronco. No primeiro sonho, tinha uma visão embaçada da cena e imaginava que era ele mesmo quem estava amarrado. Mas não. Era Michael quem berrava por socorro, e olhava diretamente para Rob. Michael ainda tinha os olhos, que eram da mesma cor que os de Rob.
Ninguém o ajudava. Todos estavam imóveis. Vários desconhecidos mantinham Michael, Ben e uma mulher estranha como prisioneiros.
Berta surgiu no seu campo de visão e o pegou pelo braço, dizendo para ir com ela. Ir rápido. Rob olhou para o lado e viu uma pessoa caída no chão. Berta o pegou no colo e começou a correr.
O grito desesperado de Michael fez Rob acordar de um susto, empapado de suor.
Michael estava em pé ao lado da cama. A cabeça enfaixada mirava o chão, o corpo relaxado exibia derrota.
Rob então entendeu duas coisas.
Um: que o amigo havia lhe mostrado tudo aquilo.
Dois: como era doloroso lembrar.