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Chapter 22 - 22 — DIA DE CONFABULAÇÃO

O dia todo transcorreu sob orações e joelhos vermelhos sobre o chão. A penitência era necessária, a proteção de Deus era indispensável. Ben quase matara Valter naquela madrugada, podia querer voltar para acertar contas com Julio, apesar de que, no fundo, o padre acreditasse que aquilo fora apenas um recado. Recolheu-se aos aposentos quando o dia se apagou, não demorou a dormir enquanto ainda rezava; a mente e o espírito estavam exaustos.

Teve uma noite sem pesadelos. Sonhou com Rio Denso, mas a cidade era completamente diferente. No seu sonho, não havia Ben. No seu sonho, a cidade era de Deus novamente e o Diabo tinha sido expulso. No seu sonho, as famílias podiam ter quantas crianças quisessem, sem ter de entregá-las para os rituais do demônio.

Ele sabia do porquê das crianças, mas nunca ousou contar a alguém. Um segredo a ser revelado na hora certa. Isso faria com que os habitantes que ainda tivessem dúvida do que deveriam fazer se decidissem a favor do padre e de Deus.

Afinal, foi para isso que fora enviado até ali. Foi para devolver Rio Denso aos puros. Haviam dito a ele — seu Deus, claro — que algo pecaminoso crescia naquela cidade, como se fosse uma erva daninha tomando conta de um jardim. E ele seria o veneno contra esta erva. Ele seria o jardineiro que cuidaria para que ela não crescesse novamente. Ele falhou da primeira vez, não falharia de novo.

Seus olhos se abriram. O sol entrava pela janela e iluminava o corpo negro e nu. Ele adorava se admirar daquela forma, despido de suas roupas. O corpo era escuro e torneado, mesmo que não precisasse fazer exercício algum para que ficasse daquele jeito. Antes de largar a vida de pecador e vender o corpo por dinheiro, fora desejado por homens e mulheres. Antes de se entregar totalmente ao seu Deus, deitara-se com tantos e tantas, que havia perdido as contas. Sempre ricos, adoravam o membro entre suas pernas — ele próprio adorava encarar o grande membro — e o modo preciso como o usava. Histórias a seu respeito eram contadas de boca em boca. Por mais que quisesse negar, ele ainda se orgulhava disso. Não voltaria para aquela vida, pois agora pertencia apenas ao seu Deus, mas não negava que, no passado, havia sido um astro no que fazia.

Levantou-se da cama e foi tomar um banho. Deixou a água quente escorrer por suas curvas. Ensaboou a cabeça quase calva, massageando-a levemente em movimentos circulares. Passou sabonete pelo corpo, permitindo-se demorar um pouco nas partes íntimas. Como ele adorava o toque. Às vezes, sentia falta que outras mãos — ou outras partes — o tocassem.

Abandonou o chuveiro, secou-se, vestiu a bata negra e desceu as escadas para tomar o café da manhã. Estava feliz. Decidiu que, naquele dia, começaria realmente a iluminar as pessoas de Rio Denso sobre sua causa. E só após colocarem fim na vida do Diabo, contaria para eles sobre os bebês. Para o que eles realmente estavam sendo usados. Ainda sentia o sabor do horror de quando seu Deus lhe revelara o motivo.

Pegou uma fatia de pão e a lambuzou com maionese, colocou uma fatia de queijo e uma de presunto. Esperava a água do café ferver. A manhã exuberante parecia sorrir para ele. Não se sentia tão bem desde muito tempo. Saber que, dali a alguns dias, estariam livres, deixava-o alegre e, consequentemente, excitado. Tinha certeza que seu Deus retribuiria os favores assim que tudo tivesse acabado. Só o fato de pensar nisso fez seu pau explodir dentro das vestes.

A chaleira apitou e jogou os pensamentos para longe. Passou o café e se sentou para comer. Não teve pressa. As pessoas ainda estavam chegando. Dali uns vinte minutos, entraria na igreja. Dali uns vinte minutos, seu plano começaria a dar certo.

***

Quando Julio Cani saiu pela porta, que ficava atrás do altar, viu o local quase completamente cheio. Fazia muito tempo que ele não tinha a casa de Deus assim, e ver aquilo fez seu corpo quase flutuar, a energia de confiança entrava por seus poros. Foi até o meio da igreja para falar. Queria que as pessoas confiassem nele novamente, e, acima de tudo, que não hesitassem quando chegasse a hora, como haviam feito no passado.

Pediu para que fechassem a porta da igreja. Não queria ser surpreendido ou que alguém ouvisse suas conversas, imaginava que Ben mantinha vigilância o tempo todo, alguém vira alguma coisa e havia contado ao inimigo. Só podia ter sido Berta ou Aurora. A mãe e a mulher do Diabo.

— Bom dia, irmãos! Hoje daremos início à nossa confabulação. Hoje se inicia fim do poder do Diabo sobre nossa querida cidade. Hoje ficará na história, da Terra e dos Céus, de como a população de uma pequena cidade venceu uma batalha contra Satã.

A igreja permaneceu em silêncio, nenhum murmúrio foi ouvido. O padre continuou:

— Vocês já devem saber o que aconteceu com o irmão Valter. Alguém deu fim à sua vida. Marcos disse que foi um ataque fulminante, mas duvido muito disso. O diabo está por trás daquilo com sua magia negra.

Ninguém disse nada, mas as trocas de olhares desconfiados mostravam que concordavam com Julio. Sabiam da mensagem de Ben para o padre — e para a cidade toda — e ainda assim estavam ali. Acreditavam em Julio.

— Pois ouçam o que eu digo. Vamos ficar em silêncio. Não teremos mais missas. Ninguém atacará aquela família que se uniu aos adoradores de Satã. Vamos deixá-los com uma falsa sensação de segurança. Vamos viver nossas vidas normalmente, e, se os virmos pela cidade, nós os trataremos bem. Aos poucos, eles vão começar a se sentir seguros e a guarda deles baixará. Então atacaremos. Pegaremos eles de surpresa.

Um homem alto, de cabelos que tocavam o ombro, disse:

— E o que garantirá que ganharemos? Ele têm poder, padre. Ele pode nos matar facilmente!

Julio se dirigiu até o sujeito e colocou a mão no ombro dele. Depois se virou para o restante da igreja e falou:

— Filho, ele não tem Deus! E sabemos que o poder do Senhor é mais forte que qualquer satanismo que existe na terra. Se alguns não tivessem hesitado no passado, essa cidade estaria livre agora.

As vozes começaram a se fazer ouvir pela igreja. As pessoas debatiam com seus amigos sobre o assunto. Sobre como, no último instante, desistiram e deixaram os outros viverem.

— Se tivéssemos terminado tudo naquele dia, o Demônio não teria voltado. Os olhos do Demônio vivem novamente e olham para nós, com sede de sangue. E me ouçam bem: caso eles nos matem, tenham certeza que iremos para o Inferno! Deus não nos deixaria entrar no seu reino tendo falhado e deixado a cidade nas mãos deles — terminou o padre.

Novos murmúrios soaram por todos os cantos. Palavras de medo. As pessoas tinham medo do fogo do Inferno, mas não Julio. Ele tinha seu Deus do seu lado. Seu guardião. Seu amor.

— Então ouçam o que eu digo. Sejam cordiais com os novos. Olhos estão nos vigiando, então sejam cuidadosos também. Quando for o dia certo, mandarei avisá-los para que nos encontremos aqui novamente. E se preparem, porque, quando isso acontecer, será o dia.

Julio se dirigiu até a porta da igreja e a abriu. Sentiu que olhos o encaravam, mesmo que não pudesse vê-los. Pouco a pouco, os habitantes foram saindo e o padre cumprimentou um a um, deixando-os com a benção divina.

Assim que o último saiu e ele começou a fechar a porta, foi surpreendido pela voz de uma mulher.

— Padre?

Era ela, a mulher do médico. Elisa Vianna, a protetora do filho da besta, do filho do Demônio.