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Chapter 16 - 16 — DIA DE MISSA

O grito que veio do lado de fora da igreja pairou como uma mão aterradora sobre o padre e o fez se erguer da cama com um salto desesperado. O padre percorreu o corredor escuro que dava de frente para a praça, os calcanhares descalços agredindo a cerâmica envelhecida. Espiou por entre as cortinas, sem ao menos se dar conta que ainda estava nu. Por um momento, Ben o olhou diretamente nos olhos, ou pareceu olhar? Seria possível que o velhote soubesse de sua presença ali? Pelo sim, pelo não, o coração de Julio Cani disparou e quis encontrar a saída garganta acima.

Valter, um comerciante que morava a algumas quadras da igreja, estava de joelhos no chão. Suas mãos estavam sobre os olhos, e ele não parava de berrar. Viu o demônio voltando na direção da igreja. A cada passo de Ben, o coração subia um degrau. Julio achou que seu inimigo entraria lá e acabaria com sua vida, mas ele apenas deixou algo na porta, deu mais uma olhada, como se mirasse diretamente os olhos do padre, deu as costas e saiu.

"Isso, demônio!", pensou Julio. "Meu Deus não permitiria sua entrada em Sua casa!".

Passou a mão na testa para arrancar as gotas grossas de suor. Sentiu a adrenalina dar espaço ao cortisol, as pernas tremulavam e o frio desceu da cabeça para os pés. Engoliu em seco, respirou, pensou no seu Deus poderoso, sabia que fazia parte de Seu plano maior para livrar aquela cidade dos pecados de Lúcifer. A criança maldita fora-se uma vez e os olhos de satã haviam sido esmagados. Ao que parecia, voltava a enxergar e cabia a Julio cegá-la outra vez.

Em questão de segundos, Ben já não se encontrava mais por perto. Esperou para ver se alguém ajudaria o Gordo-Valter-Fedido (como muitos o chamavam), mas ninguém veio, e isso o preocupou. O demônio quis deixar uma mensagem. Acima disso, quis tirar a coragem dos moradores. Julio não permitiria isso, se ele falhasse, seu Deus ficaria furioso.

Foi até o banheiro limpar a sujeira que fizera durante o ritual daquela noite, e, após isso, vestiu sua bata. Desceu as escadas da igreja, até onde Valter se encontrava, ainda de joelhos, ainda berrando.

— Valter, segure a minha mão.

Ao ouvir a voz do padre, o homem se encolheu e parou de gritar, talvez pensando que Ben voltara para terminar o serviço.

— Não se preocupe, meu filho! Sou eu, Padre Julio. — Tocou o ombro do homem cego.

O gordo começou a sacudir as mãos para o ar, tentando encontrar as do padre, até que Julio as pegou e o ajudou a se levantar. Com Valter soluçando baixo, os dois foram até o carro do padre. Ele levaria Valter até o hospital do demônio, onde pessoas da cidade trabalhavam. Sem explicações plausíveis, os funcionários do hospital viam Ben como uma pessoa boa. O padre conjecturava que se devesse ao fato de que a maioria dos médicos e praticantes da ciência tinham total desconexão com o espiritual, ou mesmo que Ben pudesse ter usado de algum artifício para camuflar sua força maligna. Algo era certo nisso tudo, Deus era real, tinha poder e escolhera Julio, mas sua força antagônica também tinha um escolhido, e era sua especialidade iludir as pessoas.

Após deixar Valter no hospital, Julio usou o resto da noite para visitar o máximo de casas possíveis de Rio Denso, convocando os moradores para uma missa de emergência naquela manhã. Disse a cada um que, caso recusassem, arrepender-se-iam no futuro. Usou seu Deus para lhes mostrar o castigo eterno daqueles que Lhe viravam as costas. Usou a vida eterna para dizer o que fazer. Sempre funcionava. Por mais que alguns relutassem e tivessem medo de Ben, tinham ainda mais medo de arder no Inferno por todo o sempre.

Ao voltar para a cama, o medo e apreensão haviam sumido. Sentia seu Deus novamente do seu lado, acompanhando-o em cada passo. De manhã, teria que convencê-los e terminar o que deixaram pendente da outra vez. Precisariam expulsar de uma vez por todas as crias de Satanás daquela cidade. E não poderiam demorar muito. Talvez fosse prudente agir na noite daquele mesmo dia. Pensar nisso trouxe uma nova ereção, um desejo crescente de explodir em êxtase de novo. Não o fez, precisava guardar energia para o ato da manhã. Virou-se de lado e dormiu outra vez.

***

O dia amanheceu cinza, uma leve garoa se desprendia das nuvens e vinha irrigar o solo amaldiçoado de Rio Denso. Deus mandava as lágrimas santas para aliviar o sofrimento dos fiéis da cidade. Também soprava um vento santo, chacoalhando as árvores da frente da igreja de um lado para o outro em uma dança, como se estivessem felizes pelo que estaria prestes a acontecer. Esperou na porta, recepcionando cada morador que chegava até lá.

Ver a igreja cheia renovou a esperança de Julio. O temor por seu Deus era maior que o temor por Ben, e isso era bom. Não se demorou muito para falar. Precisava ser um discurso rápido e impactante. Subiu ao púlpito, no altar, e começou:

— Então ouvi uma forte voz dos céus, que dizia:

"Agora, veio a salvação,

o poder e o Reino do nosso Deus,

e a autoridade do seu Cristo,

pois foi lançado fora o acusador dos nossos irmãos,

que os acusa diante do nosso Deus, dia e noite.

Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro

e pela palavra do testemunho

que deram;

diante da morte,

não amaram a própria vida. Portanto, celebrem-no, ó, céus,

e os que neles habitam!

Mas ai da terra e do mar,

pois o Diabo desceu até vocês!

Ele está cheio de fúria,

pois sabe que lhe resta

pouco tempo.

Apocalipse 12:10-12."

Olhou para os habitantes que permaneciam imóveis e com visível pavor desenhado nos rostos.

— Vocês devem saber o que o Demônio fez com nosso pobre Valter. Ele nos ataca há anos. Ele tira nossas crianças há anos, e o que nós fazemos? Ficamos calados e aceitamos suas atitudes. E quando aceitamos o que ele nos impõe, nós acatamos aos desejos de Satanás.

Julio pôde ouvir alguns murmúrios no fundo da igreja, e não sabia se eram protestos. Continuou:

— Quantos bebês já foram sacrificados por ele enquanto nós ficamos aqui parados? Vinte? Cinquenta? Acho que mais. Alguns dos nossos moradores até pararam de pensar em fazer filhos por causa dele, mas, ainda assim, ele nos obriga a dar pelo menos dez desses mesmos bebês por ano. Caso contrário, morreremos. Vocês acham que Deus está feliz com isso? Em compactuarmos com os desejos e ordens do Diabo?

Ninguém respondeu. Isso era bom também.

— Pois eu digo que temos de atacar. O Demônio voltou para cá, e sabemos que logo ele atacará. Ou vocês não se perguntam por que ele nos deixou vivos por todos esses anos? Por vingança. Vocês viram o que ele fez ao pobre do Valter ontem. Eu digo para atacarmos logo. Digo para pegarmos nossas melhores armas e, juntos, subirmos aquela colina, cultivada pelo Diabo, e acabarmos de vez com tudo isso. Se morrermos, pelo menos morreremos lutando pelo nosso Deus e contra Lúcifer. Tenho certeza que isso será levado em conta por Ele quando batermos na porta do Paraíso. Me encontrem aqui novamente amanhã, nessa mesma hora, e lhes direi como e quando. Se vocês não tombarem ao meu lado, o lado do nosso Deus, é o Inferno que os aguarda. É a casa do Diabo que os espera, com chamas incansáveis e tortura eterna. Precisamos agir logo, pois nosso Deus não está contente por permitirmos que o Diabo viva entre nós sem punição. Escolham um lado e sofram com as consequências de suas escolhas.

Encerrou a missa, esperou os fiéis partirem, fechou as portas e foi para os fundos da igreja que chamava de casa. Dava para ouvir o burburinho dos cidadãos de Rio Denso ainda conversando no patamar da igreja. Acreditava que tinha conseguido. E estava certo.