Bóris latia para a luz que se aproximava, como se farejasse algo que Augusto não pudesse sentir (ou visse algo que ele não pudesse ver). O carro se aproximava lentamente, reduzindo a velocidade conforme chegava mais perto.
A chuva caia forte, deixando o médico e Bóris completamente ensopados. Em meio àquela confusão, Augusto se pegou pensando que provavelmente ficaria resfriado. Estava nervoso. Sabia quem estava vindo e temia pelo que aconteceria. Temia que Ben se enfurecesse com a tentativa falha de fuga. Seus olhos foram para o local onde o cachorro estava e, por um milésimo de segundo, preocupou-se com a água que caía por entre as frestas onde deveria haver uma espécie de telhado.
— Precisamos de uma nova carrocinha onde possamos transportar o Bóris sem que ele se molhe. Vai dar trabalho secar esse cachorro — falou baixinho.
— O que foi? — perguntou Elisa.
— Nada não — respondeu o médico, voltando o olhar para o carro, que estava cada vez mais próximo.
Ainda dentro do carro, Ben suspirou com a cena. Quase começou a rir, mas achou que não seria correto. Augusto o olhava com cara de assustado. Provavelmente, imaginou que estava quase saindo dali e que estariam livres para fugir. Se Augusto ainda não tivesse entendido que Ben controlava quem entrava e saía de Rio Denso, saberia naquele momento. Se não fosse assim, não teria motivos para ainda haver algum morador naquele lugar.
O cachorro do médico não parava de latir. O animal sabia de sua natureza, e, por mais que não o entendesse, agia para proteger seus donos. Para alertá-los sobre ele e sobre o que ele era.
Ben deixou o carro no meio da estrada, ainda ligado. Andou até o médico e parou à sua frente. Os dois ficaram se encarando por um tempo, até que Ben quebrou o silêncio.
— Serei bem breve, doutor. Não há como sair da cidade sem a minha permissão. Você pode tentar o que fez hoje centenas de vezes, e terá o mesmo resultado — disse Ben.
Augusto o olhava com espanto. Ben tentou amenizar a tensão. Continuou:
— Não desejo mal algum a você, nem à sua família, Augusto, me ouça bem. Preciso de vocês aqui, e, em certo momento, talvez os deixe ir. Não posso revelar nada agora, mas saiba que, na hora certa, contarei tudo.
Chamar Augusto pelo nome pareceu deixá-lo mais confortável. As palavras de Ben saíram afetuosas. O médico pensou que ele os arrastaria para Rio Denso e lhes trancaria em casa. Não sabia o porquê de terem sidos levados até lá. Pensou em perguntar, mas acreditava que não obteria resposta alguma, então apenas assentiu.
— Pegue seu filho e sua mulher e volte para casa. Vá dormir e acorde cedo para ir trabalhar. Minha mãe buscará Rob em casa, no mesmo horário de ontem. Elisa terá o dia todo para dedicar ao seu livro, que sei que ela deseja escrever. Viva os dias aqui e aproveite. Sei que vem sendo uma loucura por todos os cantos, mas, se der uma chance à cidade, verá que ela não é tão ruim assim.
Ben esticou a mão para o médico, esperando por um aperto que não veio. Quando se deu conta de que não o receberia, falou:
— Entre no carro, doutor.
Tudo de estranho que tinha acontecido a ele e à sua família passou pela cabeça num turbilhão. E uma imagem nítida e forte brotou em meio a esses pensamentos: o paciente sem olhos.
— Vamos, Augusto, ou vai ficar aqui na chuva até amanhã?
O médico assentiu. Deu as costas a Ben e entrou no carro, fechando as portas e travando-as. Apoiou sua cabeça no volante e suspirou. Antes que pudesse falar algo, o carro ligou. Ele olhou assustado para Elisa e Rob, que devolveram na mesma intensidade. E então o mais estranho aconteceu. O automóvel começou a se locomover sem que Augusto o dirigisse. Fez a volta e entrou na estrada. Segundos depois, ele se distanciava de Ben, até que nada mais pudesse ser visto pelo retrovisor, e, então, parou de andar. O médico olhou mais uma vez para a esposa e entendeu o recado. Colocou o pé na embreagem, engatou a primeira marcha e dirigiu para a casa na colina, o lugar de onde sairiam apenas com a permissão de Ben. Sua mente borbulhava teorias conspiratórias e o coração se encontrava emaranhado de preocupação e dor.
A volta para casa pareceu uma eternidade. A chuva enfraquecia, mas os relâmpagos ainda iluminavam Rio Denso, volta e meia. A cidade ainda dormia.
Chegar em casa foi um peso para Augusto e Elisa. Rob estava acordado, sem entender nada do que estava acontecendo. A única coisa que pensava era em ir para o seu quarto dormir.
A subida da colina fora mais difícil que a descida. Os pneus do carro derrapavam com a lama, que esvoaçava e se agregava às laterais do veículo. Quase metade do transporte foi tomado por uma camada grossa marrom; aquilo endureceria e daria um bom trabalho para ser retirado.
Ao chegarem, Elisa levou Rob para dentro, enquanto o médico soltava Bóris e pegava as malas. O alarme soava, dizendo para que ele voltasse e tentasse de novo, mas ele não deu atenção. Faria como Ben dissera, não tinha mais escolha.
Quando subiu, viu que Rob já estava deitado. Ao passar pelo corredor, o filho o chamou. Augusto entrou no quarto e deixou o corpo arriar, sentado na beira da cama. O garoto então falou:
— Está tudo bem, papai? Por que voltamos?
O médico afagou os cabelos do filho.
— Está tudo bem, garotão. Voltamos porque papai tem que cuidar de alguns pacientes antes de irmos embora. — Foi tudo que disse, não suportando ter de mentir mais. Deu-lhe um beijo na testa e saiu.
Elisa ocupava a beira da cama do casal, os pés tocando o chão, os cotovelos apoiados aos joelhos, as lágrimas vazando rosto abaixo e acertando o piso de madeira.
— Não podemos ir, não é? Eles vão pegar nosso filho, que nem fizeram com o da velha! — disse ela. Os olhos trêmulos e vermelhos atingindo o marido como dois tiros.
Augusto a abraçou sem falar nada. Apenas ficaram nos braços um do outro, imaginando como seriam os próximos dias. Imaginando se estavam seguros. Pensando a respeito do porquê Ben querer tanto que ficassem ali.
— Ele disse que precisa de nós, e que, depois disso, poderemos ir. — Foi tudo que disse, antes de se levantar para tomar outro banho, os pés pesados arrastando no assoalho, como se feitos de chumbo puro.
Elisa não o acompanhou. Deitou e dormiu.