Ben não ficou muito no hospital. Assim que Marcos e Augusto foram apresentados um ao outro, ele se retirou. Disse que os deixaria sozinhos para que pudessem trabalhar. "Como se tivesse muito a fazer aqui, a não ser cuidar de um paciente misterioso que você queria que negassem atendimento!", pensou o médico.
Aquele alarme ainda soava na sua cabeça. Mesmo com a saída de Ben, ele tocava feito louco. E não pararia de tocar até à noite. Não pararia de tocar até o outro dia (principalmente no outro dia).
Marcos pediu para que Augusto o seguisse. Eles foram na direção do quarto do aparente único paciente do hospital. Um homem gordo, com a cabeça inteiramente enfaixada.
— Ele ainda está sedado, mas, pelos meus cálculos, daqui a uns vinte minutos, vai começar a despertar. Quero que fique aqui esperando, doutor, para que ele não fique desorientado. Diga a ele que está em um hospital e, por favor, não o deixe tocar nos olhos. — Marcos engoliu uma boa dose de saliva.
Augusto assentiu. Pensou que o primeiro dia no hospital seria cheio de emoção e que o tempo voaria, mas se enganou. Aquele dia demoraria uma eternidade para passar. E o alarme estaria soando incansavelmente.
Marcos se foi. Augusto pensou em perguntar a ele sobre a conversa. Decidiu que não seria sensato. Ben havia dito que ele era o único verme que talvez confiasse naquela cidade, então, realmente, não seria uma boa ideia.
Sentou-se e pegou uma revista de uma pilha sobre a mesa ao lado. Apenas revistas velhas. As mais recentes datavam nove anos atrás. Aquilo fez o alarme buzinar mais alto ainda. Por um instante, ele pensou em sair do hospital, ir andando até sua casa — afinal, tivera a grande ideia de aceitar ir com o carro de Ben e não o seu —, pegar Elisa e Rob e irem embora dali. O plano de ir para a Argentina ficava cada vez mais real e mais concreto. Os pés estavam quase criando forças para levantar seu corpo, quando o paciente fez um barulho.
Augusto se levantou, mas não para fugir. Foi para o lado do paciente e disse a ele que estava no hospital. Que sofrera algum tipo de acidente e que não deveria tocar nos olhos.
Como se dizer aquilo não fosse nada, o gordo levou as mãos até os olhos, e, antes que Augusto pudesse segurá-lo, ele os tocou. E, com isso, veio um grito sufocado de horror. O médico não soube dizer se fora de dor ou surpresa por se lembrar do que havia acontecido, e aquilo fez seus pelos se arrepiarem (e o alarme soar novamente).
Não demorou muito até que Marcos chegasse correndo ao quarto.
— Eu disse para segurá-lo, doutor — falou com uma expressão carrancuda.
"Se fosse Ben aqui, duvido que falaria comigo assim. Marcos, seu filho da puta!", pensou Augusto, e riu de novo. Marcos lhe direcionou outra vez o olhar carrancudo, o que fez o sorriso do médico morrer na mesma hora.
— Calma aí, Valter. Você está no hospital e está tudo certo com você.
O homem se debateu, tentando se colocar de pé. Ao perceber que não conseguiria, desistiu. Ficou em silêncio, direcionando a cabeça de um lado para o outro.
— Cadê ele, Marcos? Deixe eu ir embora daqui antes que ele saiba. Por favor! Ninguém deveria ter me ajudado, eu imploro.
Marcos olhou para Augusto e disse:
— Doutor, poderia ir até a enfermaria buscar outros curativos? No final do corredor, virando à esquerda. Vou trocar esse aqui.
Augusto saiu a passos rápidos para buscar os curativos e pensou que aquilo era só para tirá-lo do quarto. Eles queriam falar a sós. E, por mais que o alarme dissesse para ele ouvir escondido de novo, não o fez. Já estava com a cabeça cheia e já estava decidido a ir embora. Ficar sabendo de mais coisas só o deixaria mais preocupado.
Foi até onde Marcos pediu e pegou os curativos. Deixou-se demorar um pouco mais para que conversassem. Quando voltou para o quarto, ninguém mais falava.
Quando Marcos percebeu o retorno de Augusto, tirou as mãos de cima do paciente. Pegou os curativos para trocá-los. O que Augusto viu por debaixo daquelas ataduras fez seu estômago embrulhar. Duas cavidades negras, apenas, incrustadas de sangue. Alguém realmente arrancara-lhe os olhos. Alguém naquela cidade. Quase perguntou quem havia feito aquilo, mas, no fundo, ele temia já saber a resposta. E o alarme explodiu em sons torturantes.
Quando Marcos terminou, colocou Valter para dormir novamente. Injetou uma dose de sedativo que o deixaria dormindo toda a manhã e boa parte da tarde. Saiu do quarto e fez sinal para que Augusto o acompanhasse.
***
Valter começou a despertar quando se aproximava das dezoito horas. Dessa vez, ele não colocou a mão nos olhos. Lembrava-se da dor. Mas o pior de tudo era que se lembrava do que acontecera.
Apoiou-se nos braços, levantou-se aos poucos e se sentou. Ficou ouvindo o silêncio do hospital, pensando na noite anterior e no passado. Nove anos atrás, quando eles fizeram aquilo. Arrependia-se de ter ajudado, mas, assim como os outros, fora induzido pelo padre. Mas não se arrependia pelo garoto e pela família. Arrependia-se por causa de seus olhos, apenas.
Ouviu passos vindos de fora do quarto. "Finalmente, alguém vai me trazer alguma comida", pensou. Os passos foram ficando mais altos, até pararem ao lado de sua cama. Ninguém disse nada.
Valter engoliu em seco e criou coragem para perguntar:
— Ora, Marcos, veio trazer aquela gororoba que vocês preparam aqui?
Sem resposta. Até que ouviu uma risada. Já ouvira ela outras vezes enquanto tentava dormir de noite. Todos da cidade a ouviam. E a temiam.
— Olá, Valter! — disse o dono dos passos. — Sentiu saudades?
Os pelos do corpo do homem se levantaram. As lembranças borbulharam na sua cabeça. Primeiro veio o padre, depois a multidão. Então vieram o fogo e os gritos. Cinco vozes diferentes gritando enquanto a multidão ria.
— O gato comeu sua língua, Valter? Ah, não, ele arrancou seus olhos.
Gargalhadas voltaram a ser ouvidas, como se a única voz de antes se transformasse em mais outras duas ou três.
— O gato também comeu meus olhos, sabia? E doeu muito. Acho que você deve saber como doeu, não é, Valter?
As risadas voltaram. As pernas de Valter esquentaram novamente.
— Você mijou nas calças de novo? Papai disse que ontem você cagou também, isso é verdade? Eu não mijei e nem caguei. E olha que eu era apenas uma criança.
Valter reuniu toda força que tinha e disse, com a voz trêmula e falhada:
— Desculpe, Michael. Eu sinto muito …
Antes que pudesse continuar, o garoto disse, agora com uma voz firme:
— Cale-se, seu gordo imundo.
E foi o que Valter fez. Os passos voltaram, movendo-se de um lado da cama para o outro.
— Eu ia esperar pelo dia do acerto de contas, Valter, pois assim eu poderia por minhas mãos diretamente na sua carne e senti-la. Queria sentir seu sangue aquecendo meu corpo, enquanto sua voz imploraria pelo meu perdão. Queria que você visse também o que farei com aquela velha da sua mãe, mas não estou aguentando esperar.
O gordo começou a berrar por socorro, e, antes que alguém pudesse ouvi-lo, seu peito se apertou. O ar não descia mais para os pulmões e os sons silenciosos do hospital começaram a ir embora. Achou que morreria naquele momento e agradeceu. Estava quase a ponto de desmaiar, quando seus sentidos retornaram.
— Pensou que ia ser assim tão fácil morrer, Valter? Eu demorei bem mais, e doeu. Ainda dói quando me lembro. Ainda dói quando vejo meu pai. Ainda dói quando vejo minha mãe e não posso tocá-la e nem sentir o carinho dela. Você vai morrer hoje, mas vai ser lento e muito doloroso.
E as gargalhadas voltaram. Michael andou para o outro lado da cama e começou o processo de tortura novamente. Ficou brincando com o gordo por pelo menos duas horas, até seu coração não resistir mais.
O monitor cardíaco emitiu um sinal contínuo, e uma linha fina se desenhou na horizontal. Augusto e Marcos vieram correndo, embora tarde demais. Valter estava morto.
Augusto pegou o celular e avisou a Elisa que chegaria atrasado.
— Uma emergência aconteceu e vou precisar ficar um pouco mais.
Ficaria para estudar o corpo do paciente, a fim de saber o que acontecera a ele. Era seu trabalho colocar no laudo médico exatamente a causa da morte.
Deu um suspiro impaciente e disse a Marcos que iria até o IML fazer o exame. O outro concordou e ficou para limpar o quarto, enquanto o médico empurrava o corpo de Valter, sobre a maca, pelos corredores do hospital.