Augusto passou uma hora examinando o corpo do paciente gordo. No fim, constatou que sua morte realmente fora causada por um ataque fulminante. Aquilo o deixou frustrado, pois o alarme que tocava na sua cabeça dizia que era algo mais do que um simples ataque. Começaria a anoitecer dali a alguns minutos. Deixou o jaleco branco no cabide que havia atrás da porta e saiu. Assustou-se quando deu de cara com Ben, sentado em um banco no corredor, lendo uma velha revista. Ao ver o médico, sorriu e disse:
— Primeiro dia excitante, doutor?
— Parece que nosso único paciente morreu de infarto fulminante — respondeu Augusto. — Vamos embora. Está ficando tarde.
O médico começou a ir na direção da entrada do hospital, com Ben logo atrás. Andaram em silêncio, sem pronunciar palavra alguma. Mas a cabeça de Augusto falava com ele. Dizia para que esperasse escurecer. Esperasse a madrugada, quando todos da cidade estivessem dormindo, para fugir. Dizia para esquecer os móveis, que eles poderiam comprar outros. "Pegue só roupas e fuja, doutor. Algo ruim está para acontecer. Fuja enquanto ainda é possível!", berrava a voz no seu inconsciente.
E seria exatamente isso o que faria. Colocaria Elisa, Rob e Bóris dentro do carro e iriam embora dali. Sem mais pessoas loucas e pacientes sem olhos. Sem Ben. Não poderia passar na casa de seus pais e nem na casa dos pais de Elisa. Teriam de ir de Rio Denso direto para a Argentina, se quisessem ter alguma chance.
O carro de Ben estava estacionado bem na frente da saída do hospital. Os dois entraram e seguiram caminho, rumo à colina. Permaneceram no silêncio absoluto, mergulhados em seus próprios pensamentos, Ben sempre com um sorriso no rosto, o som do carro cortando a cidade.
Ben pensava que logo teria sua família de volta. De certa forma, gostava de Augusto e Elisa, e, se eles quisessem, deixaria viverem em Rio Denso, desde que sempre seguissem suas regras. Seriam os únicos. Ben, Aurora e Michael. Augusto, Elisa e Rob. Mas duvidava que os dois aceitariam. Não depois que vissem o que aconteceria. Talvez nem ele, nos tempos em que sua alma ainda era pura e cheia de amor, aceitaria. Mas isso seria problema dos dois. A vingança estava próxima e isso o alegrava. Teria sua família de volta.
O céu começava a escurecer e nuvens carregadas de chuva pareciam ser empurradas pela brisa leve que soprava do norte para o sul. A lua estava imensa por trás da colina agora. Augusto se pegou pensando em como aquela cidade era bonita e como eles tinham um lugar privilegiado ali, não fosse a sensação de perigo que Ben transmitia e todas as coisas estranhas que Rio Denso apresentava.
Ben o deixou em casa. Não se ofereceu para entrar e jantar, como havia feito da outra vez, para o alívio do médico. Augusto ficou do lado de fora, observando o carro de Ben sumir, descendo a colina para entrar sabe-se lá onde e ir em direção ao meio da floresta.
Quando abriu a porta, teve uma surpresa. A casa, que antes era vazia e sem vida, agora estava totalmente arrumada. E os móveis — pelo menos a maioria — se encaixaram perfeitamente. Elisa estava sentada no sofá, remexendo em algumas caixas com pastas e documentos, a TV exibindo imagens e sons para ninguém. Quando viu o marido entrando, levantou-se e foi abraçá-lo. Deu-lhe um beijo de boas-vindas, mas tinha o cenho franzido. Augusto apenas a olhou.
— Amor, você sabe onde estão os documentos de adoção de Rob? Já procurei em tudo que foi lugar.
— Está na minha bagagem pessoal, lá no quarto. Achei que era importante demais pra deixar vir com a mudança.
— Ah, nossa! — Elisa suspirou. — Quase entrei em desespero procurando.
Retornou ao sofá, sentou-se e encolheu os pés junto ao corpo, sobre o estofado.
— Você acredita que temos sinal de TV via satélite? — continuou ela. — Ben pensou em tudo mesmo.
O médico a acompanhou e ficou sentado por alguns minutos, assistindo junto com ela. Só quando seu estômago soltou um ronco alto foi que ele se lembrou que tinha apenas almoçado.
Elisa disse que havia um prato já separado para ele e que só precisava esquentar.
Estava faminto, e o cheiro da comida, que vazava pelo microondas, só contribuía ainda mais para que os roncos aumentassem e a saliva começasse a criar volume dentro da boca.
Augusto levou o prato até o sofá e se sentou ao lado de Elisa novamente. Ela o encarou com um olhar reprovador, mas o deixou comer. Pelo menos naquela noite, permitiria que fizesse seu jantar assistindo à televisão ali na sala.
Não demorou muito até Rob descer e se juntar aos dois. Passara as últimas duas horas no quarto, resolvendo os exercícios que Roberta havia passado. Desceu as escadas correndo — com Bóris junto, atrás dele — e se sentou no meio dos pais. Contou tudo sobre seu dia, inclusive a respeito de seu novo amigo, Michael. Disse que ele era filho de Ben e que montara um quartel general para os dois no meio da mata.
Augusto se pegou pensando sobre o filho de Ben. Conhecera a mãe dele, mas o filho ainda não. Afastou os pensamentos. Se dependesse dele, nem conheceria. Dali a algumas horas, estariam longe daquela cidade, e a única coisa que levariam dela seriam as lembranças (isso porque não podiam apagá-las).
Os três ficaram assistindo, em silêncio, desfrutando da companhia um do outro. Amavam-se de uma forma inimaginável e não conseguiriam viver sem o outro. Juntos, completavam-se, e até mesmo no silêncio das palavras, ouviam-se.
Passava das onze da noite quando viram o céu clarear através da janela. Alguns segundos depois, um forte trovão ribombou no céu, o que fez a casa tremer e as luzes piscarem. Augusto desligou a TV e disse que era hora de dormir. Acordaria Rob apenas quando fossem embora.
Pegou o garoto no colo e o levou até o quarto. Da janela dele, podia-se ver ainda mais os relâmpagos, que volta e meia iluminavam o céu. Augusto perguntou se ele queria que colocasse um cobertor, para que a claridade não o atrapalhasse, mas o garoto disse que não precisava. Deitou-se na cama, esperando ouvir a continuação de Harry Potter.
Augusto riu ao ver a expressão do filho. Herdara a paixão pelas histórias da mãe, com toda a certeza. Ele próprio só lia por causa de Rob.
Sentou-se ao lado da cama e leu por trinta minutos. Dessa vez, o garoto ainda estava acordado quando o tempo se esgotou. Ele tentou protestar, pedindo mais alguns minutos da história, mas o médico foi firme em negar. Já era hora de ir para a cama e ainda precisava conversar com Elisa sobre seu plano. Beijou o filho na testa, apagou a luz e fechou a porta.
Foi até seu quarto, onde encontrou a cama vazia. Elisa estava no banho. Ele aproveitou e se juntou a ela, deixou suas roupas em cima da cama e entrou no boxe. A esposa sorriu ao vê-lo. Os dois se beijaram e fizeram amor, enquanto a água quente escorria por seus corpos. Fizeram amor, abraçados pela fina camada de névoa criada pelo chuveiro. Fizeram amor como sempre faziam: com amor verdadeiro.
Demoraram mais do que esperavam no banho. Quando finalmente se deitaram, o médico contou à mulher sobre seu dia. Falou a respeito da estranha conversa e também sobre o alarme incessante que tocava em sua cabeça. Contou seu plano sobre a Argentina. Elisa ouviu, com certa tranquilidade. Compartilhava dos mesmos sentimentos do marido em relação a Rio Denso. Aproveitou e disse sobre o estranho vendedor de panos e a mulher que cantava. Tentou se lembrar dos versos da música que ela proferiu, mas a memória não a ajudou. Os dois discutiram os prós e os contras, e, por fim, decidiram fugir. Na calada da noite, enquanto a cidade dormisse profundamente — principalmente Ben Mendonça —, eles iriam embora. Avisariam aos pais através de algum telefone na beira da estrada. Contariam resumidamente o porquê de fazerem aquilo e que, sempre que pudessem, entrariam em contato.
Aproveitariam para dormir um pouco. Tinham aproximadamente três horas ainda de sono pela frente. Fecharam os olhos, felizes, com a segurança voltando um pouco a abraçá-los. Dali a algumas horas, finalmente se veriam livres daquele lugar esquisito e nocivo. E, enquanto dormiam, seus lábios projetavam leves sorrisos, como se estivessem num sonho bom.