A mulher caminhava pelas ruas de Rio Denso durante a noite, recitando palavras em tom alto, na intenção de ser ouvida:
— Ele voltou, meu bebê voltou. Sua ira está vindo, cantem comigo!
A lua estava bem acima da cabeça dela, e a luz refletia sobre os cabelos vermelhos compridos; o tremular da cabeleira vasta lembrava uma fogueira crepitando. Um dia, fora uma mulher bonita, capaz de cativar o coração de um homem, mas aqueles dias haviam passado. Hoje ela nem se importava mais com sua aparência. Esperava apenas pelo dia em que teria sua vingança e riria. Gargalharia na cara de todos até a garganta sangrar e não conseguir emitir mais som algum.
—Venham cantar comigo, seus demônios. Ele voltou! Cantem! — Continuou a mulher.
Aurora saltitava por entre as ruas, e sua camisola branca voava com certa delicadeza, às vezes deixando exibir as curvas do corpo, ainda bem cuidadas. Os olhos verdes brilhavam vivos durante a cantoria — se é que aquilo podia ser chamado de música:
—Venham, venham. Comemorem comigo, suas bestas! Logo ele voltará, e vocês irão para o Inferno. Rio Denso será nossa de novo, e vocês pertencerão ao Diabo!
As casas que tinham as luzes acesas começaram a apagá-las, como que se escondendo da mulher que andava pela rua. Alguns a chamavam de louca pelas costas, mas não ousavam dizer isso na frente dela. Aurora era a protegida dele. Protegida do Demônio. Ela vendera a alma ao Diabo e era protegida por ele, era o que diziam pela cidade.
— Sabem quem voltou, meu povo? Ele mesmo, meu bebê! E quando nossa família se juntar novamente, vocês chorarão. Chorarão por toda a eternidade e queimarão no fogo do inferno!
Os pés da mulher começavam a sangrar. Naquela noite, ela deixara de lado seu calçado e decidiu sentir o chão por onde passava. Estava feliz e comemorando. Sentia-se viva, como não se sentia fazia muito tempo. Desde que aquelas pessoas tinham acabado com sua família.
Mas ela teria sua vingança.
Rodopiou pelas ruas, saltitou por sobre os bancos da praça, chutou a areia do parquinho, roçou o corpo contra as colunas de sustentação do playground, disparou em corrida até a frente da igreja; a casa do homem que acabara com sua família. A casa daquele que um dia ela chamaria de demônio, mas que era ainda pior. Decidiu dar uma espiada. Decidiu cantarolar na janela do padre para que ele estremecesse e sentisse medo. Dali a alguns dias, ele sentiria muita dor, depois morreria. Ela riria e cuspiria na cara dele. Pisotearia o corpo morto de Julio Cani, aquele que a separara de sua família. Agora, ela não suportava olhar no rosto do homem que um dia foi seu marido sem se lembrar de sua própria tragédia. E a culpa era do maldito padre; o demônio de pele negra que trazia a escuridão consigo.
O vento soprava frio naquele canto da cidade. Rio Denso agora estava em completa escuridão, iluminada apenas pelas luzes dos postes e da lua. Todas as casas haviam apagado as luzes, mas Aurora sabia que as famílias espiavam por entre as janelas. As pessoas tremiam debaixo das cobertas e choravam por seus filhos perdidos todos os anos. Era o preço para continuarem vivas, o que não duraria muito tempo. Isso Julio não disse às famílias. Ele deixou de lado a parte da vingança, e Aurora era grata por isso.
Esgueirou-se até os fundos da igreja com os pés marcados em sangue fresco. Havia muitas árvores e arbustos onde se esconder ali. Fazia aquilo há muito tempo, praticamente todas as noites, observando o padre, escondida, prometendo a si mesma que um dia se vingaria, que um dia pisotearia a cabeça do sacerdote até não sobrar mais nada e depois beberia seu sangue.
Naquela noite, ela falaria com ele, revelaria seu esconderijo, deixaria claro que ela o observava há muito tempo e que o fim dele se aproximava. Mas naquela noite foi diferente. Naquela noite, ela o viu nu. Viu-o chicotear as próprias costas enquanto ria. E sentiu medo. Toda a esperança de vingança se evaporou em instantes. Ficou claro que ele também planejava algo. Ele sabia que seu bebê tinha voltado e iria fazer algo a respeito daquilo, é claro.
Ficou nos arbustos até que o ritual do padre terminou. Lançou-se numa corrida frenética em direção à colina, em direção à sua antiga casa. Percorreu toda a rua de barro, ignorando a dor nos pés, subiu o aclive enfrentando pedras que a machucavam ainda mais. Passou pela frente da grande casa, viu três pessoas no quarto da frente e os observou por um tempo, permitindo que a nostalgia a invadisse. Por fim, embrenhou-se na mata e foi na direção da cabana onde há muito tempo havia começado a vida junto de Ben Mendonça. Precisava alertá-lo sobre o padre. Planejaram sua vingança por anos a fio e não poderiam deixar brechas para que o padre vencesse de novo. Aurora Mendonça não deixaria, de jeito algum, que o padre cruzasse seu caminho mais uma vez.