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Chapter 14 - 14 — NO MEIO DA MATA, EM UMA CABANA

Os galhos raspavam pelo rosto dela enquanto andava pela escuridão da mata. Fazia tanto tempo que não ia até aquele lugar, que, por alguns segundos, pensou que se perderia e morreria de sede e fome, sem ser encontrada por alguém. Mas seu Ben não deixaria que isso acontecesse com ela. Nem seu Michael. Apesar de não suportar a dor de conviver mais com eles, ela fazia parte do plano todo. Eles a amavam ainda, e, talvez, depois que tudo aquilo terminasse, a família voltasse a ser una. Só eles, felizes para sempre. Era o final que todos queriam. Mas o padre estava no caminho deles mais uma vez.

Em alguns pontos, ela conseguia ver a luz da lua entrando pelo topo das árvores, e, sempre que a via, lembrava-se da cena do padre. Então seus pelos se arrepiavam. Se ele conseguisse de novo, estavam perdidos. Sua família estava perdida. Poderiam viver tranquilamente em Rio Denso como viveram todos esses anos, mas de que valeria se não pudessem ter a família reunida? Afinal, esse fora o único motivo que fizera com que Aurora e Ben se mantivessem firmes todos aqueles anos, mesmo que separados.

Andou pelo que pareceu uma eternidade pela floresta, até ver algumas luzes no horizonte. Sorriu ao perceber que acertara o caminho, que, apesar de tantos anos longe dali, seu coração ainda sabia como chegar. Foram tempos felizes, tempos em que ela chegara a acreditar na beleza do mundo e no amor. Até o padre chegar e transformar as pessoas da cidade em assassinas.

Apressou os passos na direção da cabana e teve de aceitar os galhos batendo com mais força em seu rosto. Ela não percebeu, mas alguns filetes de sangue começaram a criar vida, resultado da agressividade com que seu rosto era açoitado.

Quando chegou na porta da cabana, onde há muito tempo fizera amor pela primeira vez com Ben, lágrimas ameaçaram saltar dos olhos. Parecia que fazia tanto tempo que aquilo acontecera. Uma lembrança vaga, talvez até um sonho. Uma época em que ela amava e era amada. Que ninguém mais importava com os dois.

Subiu os degraus e bateu na porta. Não demorou muito até Ben atender. Ele a olhou com surpresa. Desde que perdera o filho, só falara com Aurora uma única vez. Um dia antes da família Vianna chegar. Deu as instruções do que ela deveria fazer, e a conversa não durara mais de dois minutos. A recepção da mulher com quem tinha vivido tão intensamente pareceu mudar o semblante de Ben, as sobrancelhas se uniram ao centro da testa e os olhos acenderam em brilho. Ele deu espaço e disse com uma voz baixa e triste:

— Entre, Aurora.

A mulher fez o que ele pediu. A cabana era pequena e estava exatamente do jeito que ela deixara. Apenas duas velas iluminavam o cômodo, que era a cozinha e a sala. O quarto, onde um dia foi o ninho de amor deles, estava com a porta fechada. Foi por isso que decidiram comprar o terreno e construir a casa branca. Não tinha quarto para crianças ali, e tinham medo de viver com elas na mata. Talvez devessem ter ficado.

Ben percebeu os cortes no rosto dela e pegou um balde com água e um pano limpo. Pediu para que ela se sentasse na cadeira, próximo do fogão à lenha. O suor estava por todo o rosto dela, mas, ao tocar na pele, Ben percebeu como estava fria. O gesto reacendeu nela a memória do quanto o ex-marido sempre foi atencioso. "Grandes romances nunca foram feitos para durar para sempre", ela pensou.

Ben mergulhou o pano no balde e depois o torceu com movimentos leves, começando a limpar o rosto da mulher.

— O que te traz aqui, Aurora? — perguntou, enquanto continuava a limpá-la.

Aurora estava mergulhada num mundo de lembranças, onde um dia fora feliz. Ao ouvir as palavras de Ben, lembrou-se do perigo; do padre e da cena macabra que viu diante da janela da igreja, e isso a trouxe para a realidade novamente.

— Julio Cani. Vi algo estranho acontecer. Ia até a igreja zombar dele, e então eu vi.

Ben parou por alguns segundos para ouvir a mulher. Ela relatou tudo o que viu. Quando terminou, Ben não disse nada. Apenas assentiu e continuou a limpar o rosto de Aurora.

Quando todo o sangue e sujeira foram tirados, ele saiu da cabana, deixando a porta aberta. Não demorou muito até voltar com algumas plantas na mão.

— Ah, Ben, não precisa disso. Nem está doendo.

O homem pareceu não ouvi-la (ou fingiu que não) e foi na direção da pia, onde pegou um recipiente de metal e um esmagador. Jogou as folhas dentro e as esmagou até que tomassem uma textura mais densa e cremosa. Quando achou que já era o suficiente, largou o esmagador e voltou a se sentar na frente da mulher.

— Você precisa cuidar, ou vai ficar com cicatrizes bem feias no rosto — disse, mergulhando o dedo indicador dentro do líquido e passando-o levemente no rosto de Aurora.

Ela não disse nada. Pensou em protestar, decidiu que não. Imaginava a dor que o ex-marido passava também. Cuidar dela sempre pareceu acalmá-lo, e ela o deixou prosseguir, mesmo que não se importasse com cicatrizes no rosto. Um machucado muito maior marcava seu coração. Era esse que ela queria que cicatrizasse.

Ben demorou alguns minutos para terminar de passar o remédio no rosto de Aurora. Pediu para que ela esperasse alguns minutos para que fizesse efeito, e então poderia retirá-lo e ir embora. Ela assentiu. Ficaram os dois, um de frente para o outro, mergulhados nas lembranças de uma vida feliz que se fora há muito tempo. Por fim, Ben pegou o pano e limpou o rosto dela. Levantou-se e foi na direção da porta:

— Vamos. Eu te levo até em casa.

Ela se levantou e abriu a boca para protestar, mas Ben já havia saído e ido na direção do carro. A estrada para a casa deles ficava, de certa forma, escondida, mas não por arbustos; por magia. Uma precaução que ele tomou depois de todo o incidente. Qualquer um que se aproximasse e não fosse desejado, teria uma surpresa dolorosa. Os moradores e o padre haviam tentado uma vez. Decidiram não tentar de novo.

O carro serpenteava pela pista num silêncio sepulcral. Os dois nunca tinham ficado sem falar um com o outro por tanto tempo quando estavam juntos. Não foi desconfortável, foi um silêncio gostoso, um silêncio de respeito às lembranças e ao espaço do outro, um silêncio amoroso.

Ben só se prontificou a falar quando parou na frente da casa da ex-mulher.

— Pode deixar que eu resolvo isso, meu amor... — a palavra saltou de sua boca sem que ele pensasse. Ficou um pouco desconfortável, pois fazia muito tempo que não a chamava daquela forma. Sorriu. Continuou: — Siga com a sua parte do plano.

Ela o olhou por alguns segundos, os olhos verdes acesos, os lábios entreabertos, o peito subia e descia sem controle. Inclinou-se, talvez num gesto precipitado e impensado, e lhe beijou os lábios.

— Tudo bem, meu amor.

Abriu a porta e saiu. Ben não teve reação. Sua mão, involuntariamente, subiu na direção dos próprios lábios. Há quanto tempo não sentia o toque daquela mulher de forma tão afetuosa? As coisas pareciam caminhar para tempos melhores, e ele acreditava que dali a alguns dias teria sua família de volta e eles viveriam felizes novamente, como viveram por alguns anos.

Ligou o carro e foi na direção da cidade. Precisava mostrar ao padre com quem ele estava se metendo. Deixaria uma mensagem bem clara tanto para ele, assim como para qualquer outro que o desafiasse novamente. Já estava de saco cheio de toda aquela gente, e eles não sabiam como ele precisava ser forte para olhá-los nos olhos todos os dias depois do que fizeram com seu filho. Mas se eles não aprenderam por bem, aprenderiam por mal.