A noite chegou em Rio Denso. Uma brisa fria soprava do lado de fora da igreja, e, algumas vezes, o vento cantava quando passava por entre as folhas das árvores da praça. O padre, que um dia fora chamado de Julio Cani, passou o dia todo dentro da grande igreja, orando e buscando uma solução para o novo problema que eles tinham agora.
Após horas e horas em busca de um sinal de Deus, Julio conseguiu. Os joelhos doíam pelo tempo ajoelhado sem se mexer. Seu Deus não o deixaria sozinho, solto naquele mar de lobos. Era um Deus fiel, desde que o padre também fosse. Quando tentou se pôr de pé, os joelhos o abandonaram e ele caiu, chocando-se contra o banco de madeira. A dor da pancada o obrigou a ficar um tempo se recuperando, até fazer uma nova tentativa com sucesso.
O interior da igreja estava escuro, com apenas algumas velas acesas na frente do altar, deixadas pelos fracos e pecadores moradores de Rio Denso. Eles achavam que, acendendo velas e indo à igreja todos os dias, sanariam suas d��vidas com Deus. Julio sabia que não. Seu Deus, por mais piedoso que fosse, não se esquecia tão fácil das coisas. Aquelas pessoas baixaram suas armas e aceitaram o Demônio. Ele teve de se forçar a isso também. Não conseguiria derrotá-lo sozinho, e Deus sabia disso — pelo menos, era o que Julio Cani imaginava.
Andou pelo corredor de bancos, a bata negra se movendo para trás no ritmo do caminhar. Alcançou uma porta que ficava próxima ao altar e que daria em seus aposentos. Trancou-a por dentro, para não correr o risco de ser surpreendido por qualquer morador importuno em busca de perdão pelas covardias praticadas ou para chorar por seus lindos bebês, que se iam todos os anos. "Aceitaram o Demônio, que sofram as consequências", pensou o padre. Porém, ele não podia se negar caso alguém aparecesse. Era seu papel ouvir, mesmo que nem ele e nem Deus dessem a mínima para as preces daquelas pessoas pecadoras. E Julio precisaria deles em breve. Teria de arrumar uma maneira de trazer a luz de volta às suas mentes. Ele e Deus precisavam daquelas pessoas, e talvez, só talvez, fossem perdoados por um dia terem acatado as ordens de Lúcifer.
O padre subiu as escadas a passos lentos, cada dobrada de joelho trazia uma dor intensa. Forçou-se a vencer um degrau por vez, precisava terminar sua adoração a Deus para receber a ajuda divina nos próximos dias. No andar superior da igreja, havia dois cômodos, apenas: o banheiro e seu quarto.
O interior do quarto era pequeno e continha apenas uma cama de solteiro e um criado-mudo. Os dois eram de madeira rústica escura, como se pertencessem a outra época. O padre se aproximou da janela, que ficava ao lado da cama, e a abriu.
"Que noite linda" pensou. "Aposto que quem a enviou para mim foi Deus, como agradecimento por eu ser um servo tão leal!". Apreciou a leve brisa soprar contra o rosto, inspirou o ar lentamente, segurou-o no pulmão, soltou-o lentamente. Atrás da igreja, não havia nada além de árvores, assim como na praça em frente a ela. Ninguém morava ali atrás e ninguém podia vê-lo (a não ser Deus, que, com certeza, observava-o). Ainda em frente à janela, o padre se despiu, deixando a bata despencar no chão.
Tinha corpo atlético, mesmo que raramente fizesse algum exercício (talvez por andar demais pela cidade e pela igreja, atendendo aos chamados dos pecadores). Ficou mais alguns instantes sentindo o sopro do vento percorrer todo o seu corpo. A luz da lua entrava pela janela e a pele negra do padre quase brilhava quando em contato com ela. Ele sorria, pois sentia o poder de Deus. Sabia que tinha que fazer aquilo novamente. Teria que terminar o trabalho que fizera pela metade anos atrás, por causa de algumas pessoas intrometidas que não foram fortes o suficiente para seguir em frente. Mas agora elas se arrependiam e choravam.
Virou as costas para a janela, apreciou frescor da noite. Os olhos negros do padre percorreram o quarto, tentando lembrar-se onde havia deixado o instrumento que precisava. Avistou o rosário sobre o criado-mudo. Rezava-o todas as noites. Caso contrário, Deus ficaria furioso. Mas, naquele dia, quando Julio orava à tarde em busca de orientações, Ele havia pedido algo a mais. O padre recolheu o rosário, abriu a gaveta do criado-mudo e catou um chicote. Fazia um bom tempo que Deus não o pedia aquilo. Ao segurar o objeto, seus dentes brancos pintaram o escuro que era o quarto.
Avaliou-o por alguns segundos. Aquilo era mais um improviso do que um chicote realmente. Fora ele mesmo quem fizera. O cabo era uma madeira torta, mas resistente. As pontas eram feitas com partes de borracha de câmara de ar. Não era muito profissional, mas servia para a penitência. Servia para agradar ao seu bondoso Deus, e Julio era feliz por isso.
Julio Cani se voltou para a frente da janela, sentindo tudo que Deus enviara para ele naquela noite, e começou a rezar. E, a cada finalização de uma Ave-Maria e um Pai Nosso, chicoteava-se nas costas. No início, finos filetes de sangue começaram a escorrer pela pele negra, esquentando-a. Se o padre sentia dor, não deixava transparecer. O sorriso de quando encontrara o chicote ainda estava vivo e ficaria esticado na face até o fim da penitência, depois de quarenta minutos e cinquenta e nove chicotadas.
As costas do padre estavam em carne viva, mas ele não demonstrava dor alguma. Deixou o chicote e o rosário caírem ao chão do quarto e abriu os braços. Sentiu seu Deus lhe invadir. Sentiu seu Deus soprando contra o corpo purificado, cobrindo-o da cabeça às pontas dos pés. Sentiu a luz divina da lua transpô-lo, e sabia que teria justiça. Acabaria com os demônios daquela cidade, fossem eles sobrenaturais ou não. Seu sorriso se transformou em uma gargalhada, e foi aumentando, transformando-se na risada de um lunático. Mas ele não era um. Ele era o escolhido de Deus. Ele fora enviado para aquela cidade com o propósito de livrá-la do Diabo. Fracassara na primeira tentativa, não fracassaria na segunda. Deus estava com ele e não o deixaria na mão.
Foi ao banheiro, onde se lavou com água fria. As costas queimavam, mas ele não se queixava. Era o preço a se pagar. Voltou ao quarto, os rastros dos pés molhados marcando o piso de madeira, as gotas escorrendo pelo corpo e pingando. Deitou-se na cama, sentindo uma grande paz interior, empapando o lençol com água e sangue. Seu Deus estava mais presente do que nunca e o fazia se sentir feliz, como se tivesse encontrado o amor de sua vida. Dali a alguns dias, algo sangrento aconteceria, e ele se banharia com o sangue dos pecadores e dos demônios. Deus estaria com ele, claro, ajudando-o a exterminar aquela cidade mundana, trazendo-a de volta aos escolhidos, expurgando os pecadores.
Deitado na cama, ainda despido, o padre sentiu algo esquentar entre as pernas. Seu membro, que há poucos minutos estava flácido e sem vida, começou a criar forma e crescer. O padre levou uma mão até ele e começou a se masturbar, sentindo a presença de Deus em cada ato. Suas pernas se ergueram e ele sentiu algo penetrá-lo. Largou um berro de prazer. Um berro que havia dado poucas vezes, apenas quando seu Deus vinha visitá-lo para preenchê-lo com amor. Masturbou-se até chegar a um forte orgasmo, com o sorriso branco ainda no rosto e se sentindo lisonjeado por ter sido escolhido e tocado por Deus. Sem se limpar, virou-se de lado e caiu no sono. No outro dia, teria muito trabalho a fazer. Dali a cinco dias, teria sua vingança. E seu Deus o agradeceria novamente.