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Chapter 8 - Olho Negro – Parte 3 (Final)

E então, acordei com um grito sufocado.

Meus pulmões queimavam. A respiração era irregular, entrecortada, como se cada inspiração me rasgasse por dentro. O corpo, ainda tremendo, parecia não ser meu. Cada batimento cardíaco reverberava nas minhas têmporas, um martelo constante contra as paredes do meu crânio. O terror do pesadelo ainda me cercava, como uma neblina densa, e a sensação de estar preso nas garras de algo que não poderia ver, mas que ainda estava ali, se infiltrando na minha realidade, não me deixava. O quarto estava imerso em sombras, mas algo mais, uma presença invisível, pairava no ar, vigiando-me de algum canto escuro.

Balancei a cabeça, tentando afastar a sensação sufocante que me invadia, como uma mão invisível apertando meu peito. Levantei-me, guiado pelo instinto de buscar algo real, algo que me ancorasse a essa realidade. Com um passo arrastado, corri para o banheiro, buscando no jato gelado da água uma fuga para a minha mente inquieta.

O som da água caindo parecia, por um momento, uma promessa de alívio. Fechei os olhos, sentindo o choque da água fria percorrendo minha pele. Era como se a água tivesse o poder de lavar minha alma, dissolvendo um pouco do medo que se apegava a mim, ainda persistente. Mas, apesar de cada gota que caía, o vazio dentro de mim permanecia, um buraco que não parecia se fechar.

Fiquei ali por um tempo, de olhos fechados, tentando organizar meus pensamentos, me permitindo lembrar da minha vida, do que restou dela após tantos anos de silêncio. Eu me vi, criança, brincando despreocupado com Melissa, os risos fáceis, as promessas trocadas ao vento. Lembrei de como nossos olhares se cruzaram pela primeira vez, de como o tempo parecia parar toda vez que ela sorria para mim. E, mais tarde, quando começamos a namorar às escondidas, uma paixão proibida e silenciosa.

Mas a vida sempre tem uma maneira de arrancar aquilo que mais amamos. Lembro-me claramente do dia em que os pais dela nos separaram. Eles não gostavam de mim. Nunca aceitaram o nosso amor, e quando souberam que estávamos envolvidos, decidiram mandar Melissa para outro continente. A desculpa de uma faculdade renomada foi apenas isso: uma desculpa. Eles sabiam que, se a levassem longe o suficiente, ela se afastaria de mim.

Eu vi o medo em seu olhar, uma tristeza profunda em seu rosto, mas não havia o que eu pudesse fazer. A última vez que a vi, ela estava indo embora, e a única coisa que eu podia fazer era assistir. Nada mais restava. Ela trocou de número pouco tempo depois. Os pais dela tinham feito isso, eu sabia. E, com o tempo, nós nos perdemos.

Aqueles dias ficaram para trás, mas uma parte de mim nunca conseguiu seguir em frente. A dor de perder Melissa, de ser deixado para trás, deixou um vazio que nunca mais se preencheu. Comecei a me afastar dos amigos, até de Helena, que sempre foi próxima. A cidade se tornava um lugar estranho, sem cor, sem brilho. Eu andava sozinho pelas ruas, os rostos das pessoas se tornando borrões, enquanto minhas memórias de Melissa continuavam a me assombrar.

A única coisa que me dava algum consolo era uma pequena cafeteria na zona sul da cidade. Era simples, mas tinha uma vista deslumbrante do pôr do sol. Eu não lembrava quantas vezes fui lá, quantas noites passei olhando para o céu, para a lua que, de algum modo, parecia entender minha dor. Eu era como ela, solitário, rodeado de estrelas, mas ainda assim sozinho.

Mas algo mudou. Melissa, de alguma forma, conseguiu entrar em contato comigo. Ouvir sua voz novamente, saber que ainda me amava e que nunca me esqueceu, fez o vazio dentro de mim se preencher. Algo em mim ressurgiu, uma esperança que eu pensei que tivesse perdido para sempre. Mas, apesar disso, algo estava estranho. Eu sentia uma presença, algo fora de lugar, algo que eu não conseguia entender.

Quando desliguei o chuveiro, percebi imediatamente que algo estava errado.

A sensação de estar sendo observado retornou com força, mais densa, quase palpável. Meu batimento cardíaco disparou. Um suor frio começou a se formar na minha testa, o pânico já tomando conta. Lentamente, meus olhos se voltaram para o espelho à minha frente.

O reflexo… estava certo? Não podia ser.

Havia algo extremamente errado comigo. Meu olho direito — o olho que deveria ser meu — havia mudado. Não era mais castanho, não tinha mais íris. O que restava era um abismo profundo, negro, como a escuridão infinita de um pesadelo eterno. Eu não conseguia me mover. O reflexo me encarava fixamente, e eu sentia como se estivesse sendo absorvido por aquele espelho. Meu corpo paralisado, preso em um olhar que não era o meu, em uma realidade que se distorcia diante de mim.

Isso não pode ser real. Não pode ser.

Pisquei várias vezes, esfreguei os olhos, mas o reflexo permaneceu. O pânico se espalhou, como uma onda fria que subia pelas minhas entranhas.

E então, algo pior aconteceu.

No fundo daquele olho negro, algo começou a se formar. Uma visão. Uma visão que parecia sair diretamente do espelho. Eu não estava mais ali, no meu banheiro. Eu estava em outro lugar, em um campo de batalha.

Eu estava de pé no meio de uma vasta planície, onde os vestígios de uma guerra apocalíptica estavam espalhados por todo lado. O céu estava eternamente escuro, como se a noite nunca fosse terminar. Relâmpagos cortavam a escuridão, iluminando formas contorcidas que se moviam no ar, arrastando consigo ventos selvagens e cortantes. Meu corpo estava coberto por algo viscoso, vermelho. Sangue? Eu não sabia. Mas algo estava estranho. Eu estava diferente. Meu cabelo estava mais longo, bagunçado, e eu vestia roupas pesadas, rasgadas, como se tivesse enfrentado uma batalha brutal.

O céu, também em guerra, parecia refletir a destruição abaixo. Eu estava ferido, mas ainda de pé, algo pulsava dentro de mim, uma força que eu não reconhecia, mas que sabia que era minha. Como se não fosse o bastante ter o meu olho direito tão estranho, o esquerdo, o único que ainda deveria ser normal, brilhava com uma tonalidade verde estranha, como se algo oculto e perigoso estivesse se despertado nele também.

E foi então que eu a vi.

Ela estava deitada no chão, cercada por sangue. Seus olhos estavam vazios, fixos em mim, como se me chamassem do fundo de um abismo insondável. Seu corpo estava quebrado, destruído. O sangue ao redor dela se misturava com a tempestade, e o vento arrastava pedaços de sua carne para longe.

Uma dor cortou meu peito. Eu a reconheci, mas não podia acreditar. Tentei gritar seu nome, mas minha boca se recusava a se mover. Algo estava me impedindo, algo invisível, que me silenciava, que me impedia de agir.

Foi então que a compreensão me atingiu com força.

Eu não estava apenas assistindo a cena. Eu estava, de algum modo, participando dela.

Meus joelhos falharam. Meu corpo tremia. O mundo ao meu redor girou. O banheiro desapareceu. O espelho se estilhaçou, mil pedaços caindo ao chão, como se até ele não pudesse suportar o peso daquela revelação. E, então, a escuridão tomou conta de tudo.