O cheiro de terra úmida anunciava o amanhecer. No lado norte do portão da Cidade Fronteira, Renier e Aura aguardavam prontos, vestidos de forma ligeiramente diferente do habitual, mas ainda mantendo sua essência característica.
A região era envolta por uma densa cerração, resquício da forte chuva que caíra durante a noite. A grama molhada e o terreno, antes árido, pareciam um mundo completamente diferente do lado sul da cidade, onde a Floresta Perdida dominava a paisagem. Alguns moinhos se erguiam ao redor, movendo-se vagarosamente na ausência de vento. O ar gelado fazia com que cada respiração se transformasse em nuvens visíveis, denunciando o frio intenso daquela manhã.
— Nem parece que, há alguns dias, esta cidade parecia o próprio inferno… — comentou Aura, esfregando as mãos para se aquecer enquanto revisava suas armas e equipamentos.
Anastasia, vestida com roupas mais grossas, observava o grupo. Diferente de Renier e Aura, ela era apenas uma humana comum e sentia o impacto das mudanças de temperatura de forma mais intensa.
— Há uma diferença clara entre o lado norte e o sul da cidade. Aqui o frio é mais constante, — afirmou ela, tentando aquecer as mãos com a própria respiração.
Kirara e Makoto, que haviam se afastado para observar os arredores, retornaram ao grupo. Makoto foi a primeira a quebrar o silêncio, seus olhos analisando o ambiente com um misto de nostalgia e admiração.
— Pensar que este lugar passou por tantas mudanças desde que caí sob o controle de Alaster… — murmurou ela, quase para si mesma. — Me lembra um pouco do nosso antigo mundo, não acha, Renier?
Renier, com o olhar fixo no horizonte, tentou enxergar o que ela via. O ar puro e a paisagem nostálgica evocavam memórias há muito enterradas.
— O vovô sempre me levava para tantos lugares diferentes... — comentou ele, a voz carregada de melancolia. — Queria ter tido a chance de fazer isso com você e com ele.
Makoto permaneceu em silêncio, sentindo o peso da culpa. O fato de não ter estado ao lado do neto em momentos importantes apertava seu coração.
Renier virou-se para ela com um pequeno sorriso, quebrando a tensão.
— Você fez uma grande diferença neste mundo, Makoto. Sei que não temos uma ligação como uma família tradicional, mas ainda assim, compartilhamos o mesmo sangue. Eu continuarei trilhando meu caminho, então cuide deles, vovó.
Os olhos vermelhos de Makoto brilharam com a resposta, e, sem hesitar, ela o envolveu em um abraço forte e caloroso, surpreendendo Renier. Ele permaneceu desajeitado por um momento, mas não recuou.
— Ah, claro… afinal, somos família. Vou proteger quem é importante, não só para um Guardião, mas para o meu neto. Pode confiar em mim. — Makoto disse com um sorriso trêmulo, segurando as lágrimas ao perceber que ele a aceitava como parte de sua família.
O silêncio do momento foi acolhedor, quebrado apenas pelo som sutil da cerração se dissipando. Renier afastou-se suavemente dos braços de sua avó, ajustando a postura enquanto encarava o horizonte.
Aura, que estava próxima a Anastasia, inclinou-se discretamente e murmurou com um sorriso malicioso:
— Parece que você fez um bom trabalho com ele ontem à noite, hein? — provocou, dando um leve tapa amigável no ombro dela.
Anastasia riu de forma suave e cúmplice.
— Talvez eu tenha ajudado um pouco… Mas vou precisar de você para lidar com essa cabeça dura dele. — Aproximando-se ainda mais, ela sussurrou algo no ouvido de Aura, que a princípio se mostrou surpresa, mas logo abriu um sorriso travesso ao entender a mensagem.
Kirara, que havia se aproximado durante a conversa, estendeu uma carta selada com um emblema dourado nas mãos de Renier.
— Use isto para se locomover pela Capital. Com a minha permissão e assinatura, você e Aura terão acesso exclusivo ao Palácio Real e às comodidades do local, — explicou, mantendo a seriedade característica.
Renier pegou a carta e a analisou por um momento. Havia algo em Kirara que transcendia sua natureza vampírica; ela exalava uma aura de autoridade e influência no mundo humano.
— Obrigado, — disse ele com um leve aceno, guardando a carta no bolso. — Malo e Makoto ficarão responsáveis por proteger a cidade na nossa ausência. Conto com vocês para garantir que tudo fique em segurança.
Kirara assentiu, enquanto Renier e Aura deram um último olhar para a cidade que os acolhera. Tantas coisas haviam acontecido ali — boas e ruins. O Guardião Negro ponderava sobre sua jornada e o papel que Yggdrasil lhe designara. Ele se perguntava silenciosamente:
"Mãe, meu teste final está próximo… Será que sou o ser único que você tanto desejava criar?"
Perdido em seus pensamentos, foi trazido de volta à realidade por um empurrão no ombro de Aura.
— O que está esperando? Temos um longo caminho pela frente, Guardião. Nada de descansar, — disse ela, com um sorriso determinado. — Ou já esqueceu da nossa promessa?
Renier riu, balançando a cabeça.
— Claro que não. Nosso trato vale até o fim da jornada. Estamos juntos nisso até o fim, — afirmou, antes de se virar para Anastasia e envolvê-la em um abraço apertado.
Anastasia retribuiu o gesto, sua voz quase sussurrada.
— Não esqueça do que me prometeu, Renier… volte para nós, ok?
Ele sorriu de canto, sua expressão ligeiramente provocativa.
— Tenho tomado muitas decisões ultimamente, mas essa é uma promessa que eu cumpro. Diga à Anny que peço desculpas por não me despedir, mas precisávamos partir cedo. Não se preocupe, estarei de volta. Minha palavra é minha honra.
Os dois se encararam por um momento, e Anastasia tocou o rosto dele com delicadeza, admirando-o.
— Sempre admirei esses olhos, — murmurou, com um sorriso carinhoso. — Foram a primeira coisa que vi brilhar quando você dissipou toda a escuridão ao meu redor…
Antes que pudesse dizer mais, puxou-o para um beijo apaixonado. Renier retribuiu o gesto com intensidade, mas logo recuou, dando alguns passos para trás e retornando ao lado de Aura.
Anastasia olhou para os dois, sua expressão animada, mas séria.
— Cuidem-se, os dois. Malo, Makoto e todos ficaremos tristes, inclusive eu, se algo acontecer. Entendido?
— Pode deixar, — respondeu Renier, com um sorriso orgulhoso e fazendo um sinal de vitória com os dedos, buscando aliviar a tensão.
Makoto observou o neto, o orgulho evidente em sua voz.
— Como Guardião Negro, você superou todos os anteriores. E, como meu neto, não tenho dúvidas de que vencerá qualquer desafio que estiver no seu caminho.
Renier assentiu, enquanto Aura fazia um gesto indicando que era hora de partir. Com um último aceno para todos, ele começou a caminhar, o som das botas revolvendo a areia úmida ecoando atrás dele.
Rumo à Capital Aurélia, Renier e Aura sabiam que o destino os aguardava com desafios antes mesmo de pisarem no coração daquela cidade, repleta de nobreza e grandiosidade.
Continua…