A Bake-Kujira avançava pelo mar, silenciosa como sempre, cortando as águas agora turvas com a mesma serenidade que parecia desafiadora frente ao caos ao redor. Aura permanecia em pé, equilibrando-se sobre a baleia fantasmagórica, enquanto Renier observava o horizonte com um semblante tenso.
O mar, antes calmo, agora se agitava com correntes traiçoeiras. Ventos violentos começaram a açoitar o ar, trazendo uma sensação inquietante de que algo maior estava por vir. As nuvens no céu escureceram gradualmente, assumindo um tom púrpura e denso. Relâmpagos roxos cortavam o céu, banhando o mar com uma luz etérea e perturbadora.
Aura puxou sua espada da cintura, instintivamente em guarda. Ela olhava ao redor, a postura rígida e alerta.
— O que está acontecendo? — perguntou ela, virando-se para Renier. Havia preocupação em sua voz, algo raro vindo de alguém que ostentava o sangue de Shuten Douji.
Renier permaneceu em silêncio por alguns instantes, os olhos fixos no horizonte. Ele sentia o peso da energia no ar, como se o próprio mundo estivesse sendo distorcido. Finalmente, ele quebrou o silêncio.
— É a Sombra.
— A Sombra? — Aura ecoou, franzindo o cenho.
Renier assentiu, ainda observando o caos que se formava.
— Esse é o efeito dela. Sua influência começou a se espalhar por este mundo, alterando-o de forma irreversível. O equilíbrio está sendo consumido.
Aura apertou o punho em volta da empunhadura de sua espada, sua expressão tornando-se sombria.
— Como algo assim é possível? Um único ser... fazendo isso?
Renier olhou para ela, sua expressão carregada de seriedade.
— A Sombra não é apenas um ser. É uma força. Uma ideia. Sua existência corrompe tudo ao seu redor, lentamente, mas com uma eficácia implacável. Este é apenas o começo.
Ele apontou para o céu, onde os relâmpagos roxos iluminavam o mar cada vez mais turbulento.
— Se ela não for detida, isso não vai parar. O mundo inteiro será tomado, e o próximo será outro... e depois outro.
Aura permaneceu em silêncio por um momento, processando o que Renier dizia. A ideia de um ser tão destrutivo, tão abrangente, era algo que ela mal podia conceber.
— Então, é isso que você veio fazer? Detê-la?
Renier assentiu, seus olhos determinados.
— É o meu dever como Guardião Negro.
Aura abaixou o olhar para a água fervilhante abaixo deles. Por um momento, a força que sempre a definia parecia vacilar.
— E se você falhar?
Renier deu um pequeno sorriso, um que não alcançou seus olhos.
— Não posso falhar.
O silêncio entre os dois foi interrompido por um relâmpago que explodiu mais perto do que os anteriores, sacudindo o mar e iluminando o cenário caótico.
— Ouça, — disse Renier, rompendo o silêncio com sua voz calma, mas carregada de tensão. — Parece que estamos nos aproximando do seu território.
A paisagem era desoladora, tomada por um céu enegrecido pela presença opressiva da Sombra. As nuvens sombrias se espalhavam como um manto de escuridão por todo o território, mas havia um claro ponto de convergência: o coração do território dos Demônios. Ali, a escuridão parecia absoluta, consumindo tudo ao seu redor. Raios púrpura cortavam o céu, distorcendo a realidade à medida que atingiam o solo. Cada impacto era como um golpe direto contra o mundo, uma manifestação de uma força estranha e profundamente antinatural a esse universo.
— Isso não está certo… — murmurou Aura, balançando a cabeça lentamente, enquanto seus olhos buscavam desesperadamente algo familiar. — Parece até uma porta para outra realidade...
Seus pensamentos, no entanto, permaneciam fixos em seu povo. O que teria sido deles sob a opressão crescente daquela escuridão?
Renier se aproximou da Bake-Kujira, a mão estendida com cuidado, tocando sua superfície gelada. O gesto era gentil, quase tranquilizador.
— Aqui é o seu limite, — disse ele, a voz baixa e carregada de cuidado.
A Bake-Kujira respondeu com um som grave e melancólico, que reverberou pelas ondas, como se entendesse o perigo que se aproximava.
— Você está dizendo que ela não pode ir além? — Aura interrompeu, a preocupação evidente em sua expressão. — Ainda estamos longe do território. Como vamos chegar até lá?
Renier virou-se para ela, os olhos azuis brilhando com uma intensidade que Aura não conseguia decifrar completamente.
— Agora consigo ver o solo, — explicou ele, apontando para o horizonte. — Antes, era impossível. Mas a escuridão tornou-se tangível, e isso significa que posso abrir um portal diretamente para o território.
Aura o observou, seu olhar fixo nos olhos de Renier, que pareciam atravessar as barreiras da realidade, enxergando além do visível.
— Não vou arriscar a vida dela por causa do meu objetivo, — disse ele com firmeza. Não havia espaço para debate em sua voz.
Aura permaneceu em silêncio, processando as palavras dele. Mas uma sensação inquietante começou a tomar conta dela. O território, à distância, parecia vazio.
— O que está acontecendo com eles, Renier? — perguntou ela, a voz levemente trêmula. — O que acontece se meu território for consumido?
Renier respirou fundo, como se já esperasse aquela pergunta.
— A Sombra corrompe tudo o que é vivo, — respondeu ele, encarando-a com seriedade. — Eles se tornam sombras inferiores, fragmentos da própria Sombra Verdadeira. Suas almas são consumidas, e suas existências passam a ser controladas por ela.
Aura engoliu em seco, tentando imaginar o destino de seu povo.
— Usar os seres não humanos no território dos Demônios foi um golpe estratégico, — continuou Renier. — A Sombra não só aumenta seu poder, mas cria um exército de sombras mais fortes, cada uma delas capaz de espalhar ainda mais destruição.
— E então? — perguntou Aura, a voz mais baixa, quase um sussurro.
Renier apertou o punho, desviando o olhar para o horizonte.
— E então nada a impedirá. Quando seu território cair, o resto do mundo será o próximo.
O silêncio que se seguiu era sufocante. Aura observou Renier, sentindo o peso de suas palavras como uma sentença irrevogável.
— Você é péssimo em inspirar confiança, sabia? — disse ela com um sorriso amargo. — Uma Guardiã invasora, uma criatura primordial… e uma Sombra consumindo tudo. Isso está tão caótico que nem eu consigo imaginar como vamos sair dessa.
Aura suspirou, o som ecoando como uma confissão. Sua posição como Rainha dos Demônios, outrora tão imponente, parecia desmoronar diante da vastidão dos desafios à frente.
A Bake-Kujira permaneceu imóvel nas águas, sua presença, embora imensa, parecia aflita. Mesmo uma criatura tão antiga e poderosa hesitava em se aproximar do destino cruel que a aguardava caso avançasse.
Renier, por fora, parecia confiante, mantendo o controle como o Guardião Negro deveria fazer. Mas, por dentro, ele lutava contra seus próprios temores. O peso de toda a existência recaía sobre seus ombros, e o medo de falhar o perseguia como uma sombra própria.
Ele sabia que não havia caminho de volta. Era uma luta pela sobrevivência de tudo, uma ironia cruel: a própria Existência lutando para não desaparecer.
Continua…