Renier mergulhou em seus pensamentos, sua mente agora um turbilhão. Estava certo de que nem Yggdrasil compreendia por completo as Sombras enviadas pela Existência do Vazio.
"O conceito de gerar medo na incompreensão dos mortais..." Ele refletiu, os olhos focados em Aura, ainda no chão. "Isso vai além do poder comum. Ela está no nível dos seres que transcendem a própria existência, se possui tal capacidade." A conclusão fez Renier tremer, chocado ao perceber que poderia estar lidando com algo que pensava ser ainda uma força em desenvolvimento.
— Por que você fez Aura sentir medo... se tem a capacidade de destruir a mente dela, apenas porque não compreende sua essência? — Renier questionou, fixando os olhos na Sombra com uma intensidade que traía sua confusão e desconcerto.
A Sombra soltou uma risada baixa, observando-o com um olhar que parecia examinar sua alma.
— Nossa... Ela estava certa sobre você. — Ela riu, como se tivesse se divertido com a pergunta. — Como você percebeu... Mesmo sem ter o conhecimento total, você consegue entender como eu funciono. Surpreendente. Ela sorriu com um interesse genuíno, como se estivesse admirando o esforço de Renier em compreender sua verdadeira natureza.
O uso de "ela" ao se referir a Aura fez Renier ficar cauteloso. A Sombra o conhecia? Ou alguém deu informações sobre ele, para ela? A intimidade em sua voz, o modo como ela se dirigia a ele, não parecia ser uma coincidência. Ela sabia mais sobre ele do que ele poderia imaginar. E a sensação de que sua presença aqui não era acidental o fazia sentir-se mais vigiado do que nunca.
— Hmm... não matei sua amiga por um motivo simples... — A Sombra comentou, pausando como se estivesse saboreando o momento de ver Renier tentar juntar as peças do quebra-cabeça. — Ela é irrelevante. Você é o que eu vim buscar. Matar ela não teria sentido para mim. Afinal, gosto de que tudo o que faço tenha um propósito. E você, Renier, entende bem isso, não é mesmo? — Ela fez a afirmação com uma confiança desafiadora.
A precisão das palavras da Sombra atingiu Renier como um golpe direto. Ela estava certa. Ele sabia, mais do que ninguém, que sua existência e missão estavam regidas por um propósito. Para ele, tudo tinha que ter significado; cada ação deveria ser parte de algo maior, algo que levasse ao equilíbrio. Agir sem propósito não era algo que ele pudesse compreender ou aceitar. Era contra a sua própria natureza.
Ele se ergueu, os músculos tensos, sua foice agora em mãos, irradiando um brilho azul intenso. Os Olhos das Revelações, sempre ao seu lado, começaram a brilhar com a mesma intensidade. O ar parecia pulsar ao redor deles, como se a pressão da realidade estivesse se distorcendo.
— Quem é você? — Renier indagou, sua voz carregada de raiva e desconfiança, enquanto seus olhos não saíam da Sombra. — Até agora, uma criatura chamada "Sombra" nunca demonstrou nada além de destruição. Mas você... mostra interesse, ambição. Tem facilidade comigo, como se nos conhecêssemos, como se fôssemos... próximos. Você não é uma Sombra. Você é algo diferente. Então, responda. Quem é você?!
A risada da Sombra foi alta e cheia de satisfação, como se visse o labirinto mental de Renier se fechando em torno dele. Ela parecia se divertir com a confusão dele, mas logo parou, seu sorriso quase desdenhoso enquanto ela falava.
— Você entendeu rápido a diferença entre uma Sombra e algo superior a ela. — A Sombra disse, sua voz carregada de um tom de aprovação, como se estivesse elogiando a astúcia de Renier. — É uma honra conhecer o filho da Criação. Embora, na verdade, eu já o conhecesse. Sempre o senti. Sempre o vi. Sempre soube quem você é, Renier Kanemoto. Não tinha como eu não saber afinal ela o conhecia.
Renier, agora mais furioso e impaciente, gritou, seus olhos brilhando de frustração.
— Eu não tenho paciência para enigmas e joguinhos de palavras! — Ele rugiu. — Quem é essa "ela" que você tanto menciona?
Os lábios da Sombra se curvaram em um sorriso satisfeitos, como se estivesse se deliciando com o impacto de suas palavras. Ela disse o nome de forma simples, como se fosse apenas mais um detalhe em sua história.
— Kyouka. — Ela falou o nome com uma leveza, uma provocação contida, como se estivesse entregando a peça chave de um jogo que Renier não queria jogar.
A reação de Renier foi imediata. A confusão em seus olhos se transformou em uma raiva pura, quase animal. O golpe veio sem aviso, e sua foice cortou o ar com uma ferocidade incontrolável. O corte atingiu a Sombra de raspão, mas o impacto foi suficiente para abrir uma fissura no chão, se estendendo por metros, com uma profundidade impossível de ignorar. Os olhos de Renier brilhavam com uma intensidade assustadora, refletindo a fúria que queimava dentro dele.
Kyouka... Sua amada. A pessoa que o havia matado na Terra. Ela o fez conhecer o amor, mas também o vazio devastador que veio depois de ter seu peito perfurado por suas mãos, naquele maldito terraço da escola. O vazio do seu peito nunca foi preenchido. Os sentimentos, tanto bons quanto ruins, ainda queimavam em sua mente com a clareza de uma memória fotográfica. Ele nunca esqueceria aquele dia. Nunca esqueceria a dor, a confusão, o abandono. Como poderia?
E agora, o nome dela era dito diante dele. Kyouka. Ele não entendia o jogo que a Sombra estava tentando fazer com ele. O que ela queria com isso? O que esperava ao trazer à tona tudo aquilo que ele tentava enterrar?
A Sombra soltou uma risada irônica enquanto descia de onde estava, caminhando até ele com passos lentos e deliberados. Seu sorriso era travesso, como se estivesse se divertindo com a luta interna de Renier.
— Querido... — Ela se dirigiu a ele novamente, com uma leveza que só aumentava a irritação dele. — A Kyouka que você conheceu, a que sempre esteve ao seu lado na Terra, sempre foi uma de nós, uma criação do Vazio. Uma morte trágica, não é mesmo? — Ela riu suavemente, um som cruel e cínico. — Mas foi por causa dessa morte que nasceu o Guardião Negro. Era necessário, você não acha? Ou talvez ainda exista esse calor vazio dentro de você, por ela. Esse sentimento... quente, mas vazio... ainda está aí, Renier? — Ela perguntou, como se fosse uma afirmação disfarçada de dúvida, se divertindo com a reação que já antecipava.
Renier, tomado pela raiva e confusão, ainda lutava para processar as palavras da Sombra. O nome "Kyouka" ecoava em sua mente, uma lembrança amarga de um passado que ele jamais poderia esquecer. Ela sabia disso. Ela sabia exatamente onde doía, e estava cavando mais fundo a cada palavra, a cada risada.
Continua…