Os lábios da garota pálida se entreabriram, emitindo um som que misturava uma doçura macabra com uma indiferença gelada. Sua voz, cortante como vidro, ecoou pelo ambiente, enquanto o leve toque de batom escuro acentuava ainda mais o contraste entre sua aparência cadavérica e a suavidade de suas palavras.
— Né... Você é... o novo dono... desta casa? — repetiu ela, a pergunta pairando no ar com um sorriso tentador que causou um arrepio instantâneo em Renier.
A voz dela não se limitava ao espaço físico. Ela parecia penetrar sua mente, envolvê-lo, como se fosse uma presença estranha dentro de sua própria cabeça. "Desconfortável... Será que ela é um espírito? Ou um yokai?" A dúvida se arrastava como uma sombra, inquietante, enquanto ele tentava racionalizar a situação.
Enquanto as perguntas se acumulavam em sua mente, Renier ponderava se a figura diante de si era um ser sobrenatural. Talvez uma criatura que havia habitado a casa por tanto tempo que ela mesma parecia ter se fundido com o ambiente, perdida no tempo e na memória daquelas paredes.
O silêncio que se seguiu parecia mais pesado agora, como se o próprio ar tivesse se tornado mais espesso, mais difícil de respirar. O som do gotejar incessante da torneira se misturava com a sensação opressiva que pairava no ambiente. O olhar da garota, vazio e penetrante, parecia perfurar sua alma, sondando cada canto de sua mente como se ela soubesse exatamente o que ele estava pensando.
— Né... Quem... é você? — perguntou ela, com a mesma voz gélida e arrastada, seus olhos opacos fixos nos de Renier. Aqueles olhos não eram meros olhos; eram poços profundos que pareciam sugar toda a luz ao seu redor, mergulhando-o em um desconforto crescente, uma sensação de que estava sendo desnudado diante dela.
E então, sem aviso, o ambiente ao redor de Renier começou a mudar. A atmosfera se distorceu, como se uma camada invisível de trevas tivesse se espalhado, engolindo o ar ao seu redor com uma frieza indescritível. O tempo parecia se arrastar, e a luz da lâmpada se fez ainda mais fraca, como se a casa estivesse sendo dominada por uma presença invisível, mas palpável.
De repente, atrás da garota, algo se materializou das sombras. Um redemoinho negro, vazio e sem fim, apareceu, como se a escuridão pura tivesse ganhado forma. Ele engolia o espaço à sua volta, uma força opaca e implacável.
Dos ombros da garota, dois braços longos e escuros começaram a se estender. Eles eram muito maiores do que os dela, serpenteando pelo ar com uma fluidez grotesca. Silenciosos e rápidos, os braços se enrolaram ao redor do pescoço de Renier, seus dedos gélidos e maleáveis como tentáculos, apertando suavemente sua pele. A sensação de toque foi repulsiva, como se algo morto e nojento estivesse se movendo sobre ele, fazendo seu corpo estremecer involuntariamente.
"O que é essa garota?" pensou Renier, tentando manter a calma diante do crescente mistério e da ameaça iminente. Mas a verdade era que ele sentia a pressão, o perigo se acumulando lentamente, como uma tempestade prestes a desabar.
Com um sorriso irônico nos lábios, ele levantou a mão até o par de braços escuros que o seguravam, tocando-os como quem ignora a gravidade da situação, e falou com um tom de provocação:
— Se me agarrar assim, vai ser problemático, heh. — Sua voz era desafiadora, mas o brilho em seus olhos traía a tensão que o envolvia. — Vai se responsabilizar caso eu goste… — Ele continuou, tentando arranjar um modo de desestabilizar a serenidade impassível da garota.
Os olhos de Renier brilharam intensamente, como se sua própria energia começasse a se infiltrar no ambiente, iluminando o espaço ao redor. Ele estava tentando entender a situação, desvendar a verdade oculta atrás daquele ser.
A garota não se moveu. Apenas observou com uma calma sobrenatural, seus olhos agora focados de forma hipnótica nos olhos azuis de Renier. A tensão entre eles era palpável, uma batalha silenciosa de vontades.
— Uh... Não está com medo? — A garota perguntou com um toque de curiosidade, sua voz mais suave agora, quase como se estivesse intrigada. Seu olhar se estreitou, e algo em seu rosto mudou, como se estivesse reconhecendo algo familiar. — Eu vejo... Olhos azuis... Um membro da família Kanemoto... — Ela disse, e, por um momento, sua expressão suavizou, uma fagulha de algo humano atravessando sua face. Os braços escuros ao redor do pescoço de Renier perderam a pressão, como se algo em sua presença a tivesse afetado.
A tensão, no entanto, não desapareceu. Ela apenas havia se tornado ainda mais complexa, mais profunda, como se a garota agora estivesse apenas começando a revelar as camadas de seu verdadeiro poder.
Para surpresa de Renier, as mãos da garota começaram a se desmaterializar, desvanecendo-se como poeira ao vento. "A presença dela se foi...," pensou, uma mistura de surpresa e animação tomando conta de si. "Então, eu realmente estava certo? Os Olhos das Revelações funcionam!"
Com uma calma surpreendente, ele se virou para encará-la de frente, apreciando sua aparência de uma maneira que não havia feito antes. "Ela é ainda mais interessante do que imaginei", refletiu, observando como as vestes antigas dela conferiam uma aura de mistério e charme atemporal.
Com a hostilidade parecendo ter se dissipado, Renier finalmente relaxou um pouco. Ele deu um passo à frente e falou com um tom mais suave:
— Eu sou Renier Kanemoto. E você, quem é?
— Oh, Renier Kanemoto... — A garota se inclinou com uma elegância sutil, em um gesto de saudação e respeito que deixou Renier um pouco desconfortável. — Sou Rikyu, um Espírito Guardião que habita esta casa.
— Espírito Guardião? Como uma cuidadora? — perguntou Renier, agora genuinamente curioso.
Rikyu assentiu, sua postura agora mais calma e reservada, como se a tensão finalmente tivesse se dissipado do ar.
— Exato… Meu dever ao longo dos séculos foi cuidar desta casa, um pacto que foi forjado há muito tempo com sua família. — A voz dela, suave e serena, carregava uma reverência implícita, uma história que parecia ecoar nas paredes da casa.
Renier refletiu sobre isso por um momento. "Então, foi isso que causou a mudança no comportamento dela." Ele compreendeu a formalidade de Rikyu e o porquê de ela agir daquela maneira.
— Já fazia tanto tempo... quase uma eternidade que nenhum membro da sua família apareceu por aqui… — disse Rikyu, e Renier percebeu a melancolia implícita nas palavras dela, como se o peso dos séculos tivesse deixado marcas profundas em seu espírito.
— Meu avô me manteve longe do Japão por muito tempo… e, infelizmente, sou o único descendente vivo da família Kanemoto. — Renier olhou diretamente nos olhos dela, com uma sinceridade que se refletia em cada palavra. — Peço desculpas… quero dizer… pela minha família ter te deixado esperando sozinha neste lugar por tanto tempo.
Surpreso com a profundidade de sua própria emoção, Renier se inclinou ligeiramente, um gesto de desculpas genuíno que parecia tocar algo profundo em Rikyu.
Ela pareceu hesitar por um momento, visivelmente desconcertada. — Não, por favor, não precisa se submeter a isso… — murmurou ela, a voz agora mais suave, com um toque de incomodidade. — Sua família passou por muitas perdas ao longo dos anos, e isso os manteve afastados do perigo que esta casa representava séculos atrás.
Renier sorriu de forma reconfortante, sua mão se movendo suavemente até o ombro dela. — Mas agora que posso viver aqui... você se importaria de me fazer companhia, Rikyu?
Os olhos de Rikyu, vazios e opacos, brilharam brevemente com o toque quente da mão dele contra seu corpo frio, como se o gesto tivesse despertado algo em sua essência imortal.
Um sorriso sutil, quase imperceptível, começou a se formar em seu rosto, o suficiente para dar um brilho tênue em sua expressão normalmente inexpressiva. Era a primeira vez em muito tempo que ela demonstrava algo além de seu dever.
— Claro, meu dever é cuidar da família Kanemoto. Não me importo de ficar ao seu lado, Renier... — A voz dela era suave, mas o tom de gratidão era palpável, uma emoção delicada que parecia preencher os vazios dos séculos passados, de solidão e espera.
Renier sentiu que algo importante estava se formando entre eles, não mais apenas a relação de guardião e protegido, mas uma conexão mais profunda. Algo que poderia redefinir ambos à medida que o tempo passasse, e talvez até mais além disso…
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Renier estava sentado à mesa, observando Rikyu se mover pela cozinha com uma graça quase sobrenatural. Cada gesto seu parecia em harmonia com o espaço, como se ela fosse parte da própria casa. Como guardiã e antiga serva da família Kanemoto, ela realizava suas tarefas com uma precisão impressionante. Desde a limpeza até a preparação das refeições, tudo era feito com uma destreza que parecia transcender o humano, como ela mesma havia explicado para ele.
O aroma do chá recém-preparado preenchia o ar, suave e reconfortante, enquanto Renier dava um gole da xícara branca, ornamentada com delicadas flores. Era um dos jogos de chá que pertenciam ao seu avô, e o sabor do chá, leve e floral, se espalhava pela sua boca, quase como uma lembrança de tempos passados. "O chá dela é muito bom… e o cheiro é tão agradável," pensava ele, deixando que o calor da bebida acalmasse sua mente, afugentando os pensamentos inquietos.
O cheiro de pão assando no forno começava a se espalhar pela casa, e o ambiente, em sua quietude, trazia uma sensação de conforto incomum. Era notável a habilidade de Rikyu, sua atenção meticulosa aos detalhes, sua dedicação em manter a casa exatamente como fora deixada. "Nada mudou, nada foi tocado pelo tempo," refletia Renier, sentindo-se quase como um espectador em um cenário que transcende o presente.
— O mundo mudou bastante desde que você ficou isolada aqui — comentou Renier, olhando para ela por cima da borda da xícara. — Uma grande evolução aconteceu enquanto você estava, digamos, desinformada sobre o que estava acontecendo lá fora.
Rikyu assentiu lentamente, seu olhar sereno e pensativo enquanto segurava sua própria xícara de chá com as mãos delicadas.
— Entendo... Os humanos, hoje em dia, desconhecem o sobrenatural. — A voz dela carregava um tom de aceitação, como se já estivesse acostumada com essa realidade. — Sua família ficaria satisfeita ao ver essa pequena mudança, essa trégua temporária... Mas, não deve ser algo duradouro.
Renier refletiu por um momento, observando-a atentamente, antes de fazer uma pergunta que o inquietava há algum tempo.
— A propósito... Por que minha família, o clã Kanemoto, era tão importante para o mundo sobrenatural? — indagou ele, lembrando-se dos documentos antigos que havia encontrado no quarto trancado há tanto tempo, um mistério que agora parecia ainda mais distante e importante.
Rikyu se endireitou um pouco, seu olhar se tornando mais sério e introspectivo. Quando ela respondeu, sua voz estava carregada de um conhecimento ancestral.
— O Guardião Negro... — Ela fez uma pausa, como se as palavras pesassem mais do que o normal. — Era um título reservado para aqueles que herdavam o sangue primordial do demônio. Esse sangue concedia os Olhos Demoníacos, que agora são conhecidos como os Olhos das Revelações. Aqueles que nascem com esses olhos têm um destino especial. O sangue demoníaco é um legado, e quem o carrega é destinado a manter o equilíbrio entre o mundo sobrenatural e o mundo dos humanos.
Renier sentiu um calafrio percorrer sua espinha. "Então é isso o que significa... Um legado." A ideia de carregar um destino tão grandioso, mas também tão pesado, começou a se formar em sua mente. O peso da responsabilidade parecia maior do que ele havia imaginado, mas ele manteve o olhar focado, não deixando transparecer nenhuma dúvida.
Rikyu fez uma pausa, seu olhar profundo e pensativo, como se estivesse escolhendo as palavras com extrema cautela.
— Em cada geração, ao menos um membro da sua família nascia com os Olhos das Revelações. Mas o destino deles nunca foi apenas o de ser um simples guardião. Muitos desapareceram ao longo do tempo… — A voz dela se suavizou, e um silêncio pensativo se instalou entre eles. — Não posso dizer o que aconteceu com eles, nem o que acontecerá com você, Renier. Você é o novo Guardião Negro, mas o que o espera é algo que nem mesmo eu posso prever.
Renier permaneceu em silêncio, processando as palavras dela. O peso do título, o fardo do legado que carregava, parecia se expandir a cada segundo. O destino incerto, os mistérios que ainda estavam por vir... Ele sabia que sua jornada seria difícil, mas algo em seu interior, talvez a mesma força que herdou de seu sangue demoníaco, lhe dizia que ele poderia enfrentá-los.
O que o aguardava era maior do que qualquer coisa que ele já tivesse imaginado, e ao mesmo tempo, tão imprevisível quanto o próprio universo.
Continua…