O desejo de destruir aquela última chama de bondade que ela representava foi maior do que qualquer outra coisa. Sem uma palavra, sem um gesto de aviso, eu me levantei e a puxei para perto de mim. Ela não reagiu, não entendeu. Ela pensava que era um gesto de confiança, de conexão, mas eu a puxei para a escuridão de meu próprio vazio.
A faca, que eu já segurava em minha mão, entrou em seu corpo com uma precisão implacável. O impacto foi tão repentino que ela não teve tempo de gritar, de entender. O sangue jorrou em um fluxo espesso e quente, manchando minha pele, a parede, o chão. O brilho de seus olhos se apagou em um instante. Ela se contorceu, tentando se afastar, mas não havia escapatória.
Eu a observei enquanto sua vida se esvaía, enquanto o corpo dela se tornava uma massa de carne e sangue, com as vísceras expostas, a carne rasgada. Mas eu não sentia nada. Nenhum arrependimento. Nenhuma emoção. Nenhum prazer. Apenas o vazio, maior do que nunca.
Quando o último suspiro de Clara escapou de seus lábios, o silêncio se arrastou pela sala, denso e sufocante. O som da sua morte ainda ecoava em minha mente, mas a sensação era a mesma de antes. Nada. Eu não havia sentido absolutamente nada. Eu não havia encontrado o que eu procurava.
O que me restava, então, era apenas o cadáver de Clara, estirado no chão, as suas vísceras espalhadas como um quadro grotesco, como algo que jamais poderia ser remendado.
Quando os gerentes do orfanato chegaram, o choque foi imediato. Os gritos ecoaram pelo orfanato quando os funcionários me encontraram, coberto de sangue, com Clara aos meus pés, seu corpo disforme espalhado pelo chão. Eles ficaram imóveis, olhando para mim com os olhos arregalados, sem acreditar no que viam. Eu estava coberto de pedaços de carne, órgãos e vísceras expostas que já não pareciam parte de um ser humano. Os gritos deles foram abafados pela minha apatia, como se eu não fosse realmente parte do que estava acontecendo. Eles corriam de um lado para o outro, tentando entender o horror, mas eu não sentia a pressão de suas palavras ou da agitação. Nada havia mudado dentro de mim. Eu era ainda a mesma coisa, a mesma sombra.
"Você... você é um monstro!" A mulher gerente gritou, mas sua voz tremia de medo. "O que você fez?!"
A única coisa que vi foi o rosto de Clara, com seus olhos arregalados, fixos em mim como se, de alguma forma, ela tivesse me compreendido até o fim, até o ponto onde ninguém mais chegaria. A luz em seus olhos se apagou, e o som de sua respiração desapareceu como uma vela que se apaga subitamente. Quando ela morreu, não houve dor, nem arrependimento. Apenas um eco vazio dentro de mim. Se havia uma lição para aprender, ela se dissolveu tão rapidamente quanto a vida dela se foi.
Eles me expulsaram imediatamente, como se o próprio orfanato soubesse que já não havia nada mais a ser feito comigo. Não houve palavras de condenação, não houve acusações. Apenas um empurrão violento pelas portas, e a sensação do concreto frio sob meus pés quando fui lançado para fora. Os funcionários me ignoraram como se eu fosse um animal rejeitado, uma aberração para a qual eles não podiam mais oferecer nenhuma ajuda. Não me importava. Não me importava com o que pensavam, com o que sentiam. Só restava mais uma vez a rua, essa velha conhecida.
Eu estava de volta à mesma paisagem de decadência que havia conhecido antes. O céu estava cinza, carregado de nuvens pesadas que pareciam refletir o vazio em mim. Eu andava pelas ruas desertas, em busca de algo que nem eu sabia o que era. As luzes da cidade piscavam, falhas e enfraquecidas, como as almas que eu cruzava. Eu não as via como seres humanos. Elas não eram nada além de sombras.
Cada passo que eu dava nas ruas era um passo mais profundo no abismo. Os olhares das pessoas se encontravam com os meus, mas não havia nada mais para ver. Quando passavam por mim, algumas sussurravam, algumas olhavam com medo, mas nada parecia verdadeiro. Eu era invisível, mas ao mesmo tempo, um monstro à vista. O mundo ao meu redor estava tomado por um vazio que parecia engolir tudo à sua volta, e eu caminhava como um espectro, flutuando entre a escória humana.
Passei dias vagando, com o corpo abatido pela fome e pelos restos de minha humanidade. Meus pés estavam cortados, ensanguentados, e o cansaço me consumia, mas eu não sabia parar. Não sabia o que significava descanso. O mundo ao meu redor era uma massa de podridão, e eu estava determinado a encontrar um lugar ainda mais profundo, mais insuportável, onde minha alma pudesse se afundar sem mais nenhuma tentativa de salvação.
Foi numa rua quase deserta que encontrei a biblioteca. Não era um lugar bonito, não era um santuário. Era um prédio velho, seus muros cobertos de mofo e a porta de entrada rangendo como se estivesse à beira do colapso. Mas algo naquela edificação me atraía, algo insidioso que me chamava de volta para a escuridão.
Entrei sem hesitar. A biblioteca estava silenciosa, escura, como se o tempo tivesse parado ali dentro. O cheiro de poeira e livros velhos invadiu minhas narinas, mas não me incomodou. A escuridão era o que eu buscava. Era lá que eu me sentia mais vivo, mais real, mais próximo de algo. O silêncio ecoava, preenchendo o vazio de minha alma de forma mais sufocante do que qualquer palavra ou gesto humano poderia fazer.
O bibliotecário, um homem idoso e frágil, estava lá, curvado sobre as prateleiras. Ele me olhou, mas não disse nada. Sua expressão era vazia, como a minha. Ele não precisava falar. Sabia o que eu era, sabia que nada mais poderia me tocar.
Eu comecei a arrumar os livros, sem pressa, sem emoção. Meus movimentos eram mecânicos, e a cada livro que eu tocava, parecia que uma parte de mim se desintegrava, deixando para trás uma camada fina de poeira. Eu não lia, não pensava. Apenas organizava, como se isso fosse minha única forma de existir. Os livros eram mais do que apenas palavras. Eles eram ecos de algo que havia sido, algo que nunca seria novamente.
O bibliotecário morreu depois de alguns meses. Não houve despedida, não houve dor. Ele simplesmente desapareceu, como tudo o que restava de minha humanidade. Fiquei sozinho na biblioteca, o guardião dos livros, mas ainda a sombra de um homem que nunca foi.
Ali, no silêncio abafado das páginas amareladas, onde as palavras se desfazem como memórias esquecidas e as histórias, agora distorcidas pelo tempo, se perdem no abismo da indiferença, a apatia se infiltrou em mim, tomando conta de cada célula, até que eu já não fosse mais senão a sombra do homem que um dia fui. Eu não era mais uma presença, não era mais nada. Não havia sentimentos, nem ânsia, nem desejo de preencher o espaço vazio que se abria dentro de mim, como um abismo eterno. Eu era uma nulidade, uma existência sem valor, vagando sem direção, em busca de um propósito que jamais encontraria. Os livros, outrora repletos de vidas e experiências, se tornaram os únicos companheiros dessa jornada interminável. Mas o que eu procurava neles? Uma verdade perdida? Uma esperança que sequer soubesse mais o que era? Não, eu não buscava nada. Apenas o eco de um vazio que já não tentava ser preenchido, mas que me consumia como um fogo sem chama. Pois o vazio não se preenche, ele se apodera e nos redefine como a própria ausência de tudo.