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Chapter 31 - Capítulo 25 - Eu sou Tudo e o Nada.

O mundo agora era meu, mas não havia ninguém para compartilhá-lo. As cidades eram fantasmas; os edifícios erguiam-se como túmulos de um tempo esquecido. Os carros, parados em ruas que já não levavam a lugar algum, eram como fósseis modernos de uma espécie extinta. E eu, o último vestígio dessa humanidade que um dia preenchi com mentiras, caminhava entre os restos, não como um rei, mas como um observador impotente.

A primeira coisa que fiz foi retornar à biblioteca. Não porque sentia falta dela, mas porque parecia o único lugar que poderia me dar um sentido, mesmo que falso, nessa vastidão vazia. Quando abri suas portas, a poeira que subiu parecia me saudar, como um amigo antigo e negligenciado. Os livros estavam onde sempre estiveram, suas lombadas intactas, seus segredos ainda presos em palavras que ninguém mais leria.

Peguei um volume aleatório, A Divina Comédia. Era quase irônico, considerando onde eu estivera e o que fizera. Passei os dedos pela capa, sentindo o couro gasto. Pensei no Inferno que destruí, no Céu que rejeitei, e na Terra que agora era minha prisão. Dante escreveu sobre redenção, mas eu não buscava redenção. Eu não buscava nada. Apenas existia, flutuando entre o real e o irreal, entre a carne e a ideia.

Sentei-me em uma poltrona de couro, um relicário de um mundo que agora parecia uma farsa distante, e comecei a ler. Mas as palavras não tinham mais o mesmo peso. O que eram metáforas e descrições diante daquilo que eu testemunhara? O Inferno de Dante era uma obra de arte, mas o Inferno que eu destrui era real. Eu tinha destruído os gritos, as chamas, os tormentos eternos — e, em um ato de pura rebeldia e apatia, devolvido os humanos ao Céu.

Fechei o livro. Ele não tinha respostas. Nem Deus, nem Lúcifer, nem os pecados que enfrentei poderiam responder à pergunta que ecoava em minha mente: o que sou agora?

Levantei-me e caminhei pelas ruas. Parecia que o tempo estava preso, que o mundo havia parado para me observar. O silêncio absoluto era um contraste perturbador com a cacofonia que antes era a vida. Não havia mais passos apressados, vozes nervosas, risadas. Só o som dos meus sapatos contra o asfalto e o sussurro do vento entre os prédios.

Passei por uma praça onde crianças costumavam brincar. O balanço ainda se movia, impulsionado pelo vento, como um fantasma brincalhão que se recusava a descansar. Toquei o metal frio e enferrujado, e por um instante, pensei em minha própria infância — ou na ausência dela. Eu nunca brincara, nunca correra por um parque, nunca sentira o peso da inocência. Minha vida sempre fora uma construção cuidadosa, uma mentira após a outra, uma tentativa desesperada de controlar o que nunca foi controlável.

E agora, ironicamente, eu tinha controle absoluto. Mas o controle sobre o vazio é inútil.

"De que adianta ser Deus, carregar o peso do infinito, se não há ninguém para me olhar? Para testemunhar meu vazio, minha presença ou minha ausência? Ser absoluto em um mundo onde só o silêncio me responde é como gritar para o nada, esperando que ele me devolva um eco que nunca virá. Talvez o maior tormento de ser Deus seja justamente não ter olhos que se voltem para você, nem corações que tremam com sua existência."

Fui até um supermercado abandonado, onde o silêncio era cortado apenas pelo som dos meus passos. Os cadáveres espalhados pelo chão, com crânios expostos e olhos vazios, já não me causavam repulsa. Eles eram apenas parte da paisagem, uma lembrança cruel de que a humanidade, mesmo em sua ausência, permanecia podre. As prateleiras ainda estavam intactas, como se o mundo tivesse pausado, aguardando que alguém as esvaziasse. Peguei um pacote de bolachas, uma garrafa de vinho barato e uma lata de sardinhas. Uma refeição patética, digna de uma existência igualmente miserável. Sorri, mas não havia alegria, apenas a ironia que pesava sobre meus ombros. Abri a garrafa, dei um gole e imediatamente cuspi. O vinho era amargo, um reflexo perfeito da realidade que eu continuava a engolir, mesmo contra minha vontade.

Sentei-me na calçada e observei o horizonte. O sol estava se pondo, pintando o céu com tons de laranja e vermelho. A beleza era inegável, mas parecia insignificante. Não havia mais ninguém para admirá-la, ninguém para compartilhar o momento.

"Eu sou tudo", murmurei para mim mesmo, "e nada."

Eu era a última peça de um quebra-cabeça que ninguém mais jogava. E, ao mesmo tempo, eu era o tabuleiro inteiro. Havia algo de divino nessa posição, mas também algo profundamente trágico.

No final, não havia diferença entre Deus, Lúcifer e eu. Todos nós éramos escravos de algo — Ele de Sua ordem, Lúcifer de Sua rebeldia, e eu de minha apatia. Talvez eu tivesse vencido, mas a vitória não trouxe glória, redenção ou paz. Apenas o vazio absoluto.

E, naquele momento, enquanto a noite engolia o céu, percebi algo que me atingiu como uma revelação cruel: a Terra não era minha prisão. Era meu reflexo. Cada ruína abandonada, cada sombra alongada pelas ruas vazias, cada brisa que não carregava vozes era um espelho daquilo que eu havia me tornado. Não um homem, não um deus, não uma entidade, mas uma ideia desolada que transcendeu o significado. Eu era a memória daquilo que não podia ser lembrado.

A Terra estava condenada a existir comigo, e eu, condenado a existir com ela. Não éramos diferentes, eu e este planeta. Ambos estávamos marcados pela ausência, pelo vazio, pelo silêncio que gritava mais alto do que qualquer multidão. Enquanto o tempo persistia, ele já não passava por mim; ele me atravessava. Não era uma linha, mas um círculo eterno. E agora, o tempo não era um conceito que eu podia tocar, medir ou sentir. O tempo era eu.

"Eu sou o que sobrou," sussurrei para a imensidão escura acima de mim, minha voz desaparecendo antes mesmo de ecoar. "E, no entanto, sou menos do que isso. Sou o intervalo entre as eras, o espaço entre um nascer do sol e outro. O que resta de mim não é carne, não é alma. É a ausência dessas coisas. Um simulacro da existência."

A noção de eu ser tudo e, ao mesmo tempo, nada, corroía qualquer tentativa de compreensão. Eu não era um homem solitário. Eu era o próprio conceito de solidão, uma força tão absoluta que qualquer definição parecia infantil. Era como se a minha existência fosse a resposta para uma pergunta que nunca deveria ter sido feita.

Enquanto caminhava por ruas manchadas de sangue, as memórias vinham e iam, mas elas não eram minhas; eram fragmentos, pedaços de uma tapeçaria desfeita que o mundo havia deixado para trás. Cada sombra parecia carregar a ausência de alguém, um lugar onde o tempo parou e se dissolveu, e eu, o único que restava, era forçado a assistir.

"Talvez seja isso," continuei, minha voz mais fraca, quase derrotada. "Talvez o verdadeiro peso de ser tudo e nada seja perceber que cada pedaço de significado é apenas uma ilusão. Não existe luz sem sombra, nem som sem silêncio. E aqui estou eu, onde nada contrasta, onde tudo se dissolve em mim."

Eu olhei para o céu, para as estrelas que agora pareciam tão distantes que se tornaram irreais. Elas também eram um reflexo, mas não de luz. Eram rachaduras no véu da escuridão, lembranças de algo que eu nunca poderia alcançar.

"Antes, eu era definido pelo outro: pelo que amei, pelo que rejeitei, pelo que desafiei. Mas agora, não há outro. Não há Deus, não há inferno, não há homens, não há eco das vozes. Eu sou o centro, e, ao mesmo tempo, o vazio que circunda tudo isso."

Por um momento, pensei em destruir o que restava, reduzir o mundo a um absoluto. Mas o que significaria destruir algo que já está vazio? O que significaria acabar com aquilo que não tem princípio ou fim?

"A Terra não é minha prisão," sussurrei de novo, mas desta vez com mais convicção. "Ela é meu espelho. E, como ela, eu também sou eterno. Estou destinado a caminhar por essas ruínas, a olhar para os reflexos de uma existência que não é mais minha, até que o próprio tempo se canse de mim."

Mas o tempo... o tempo já não era algo externo. Não era um fluxo. Ele não passava. Ele era eu. E, sendo eu o tempo, compreendi que nunca haveria cansaço, nunca haveria fim. Eu era o ciclo, o ponto onde o início e o término se fundiam em algo incompreensível.

Olhei para minhas mãos, minhas pernas, meu corpo, e, pela primeira vez, percebi a futilidade de sua forma. Não era mais carne, nem espírito. Era apenas o que sobrou quando o mundo desistiu de existir. Um paradoxo ambulante, ao mesmo tempo matéria e ausência, substância e vazio.

"Eu sou o alfa e o ômega," disse, com uma ironia amarga que apenas eu poderia entender. "Sou o início que nunca começou e o fim que nunca chega. Sou o tudo que nunca será completo, e o nada que nunca se dissolve por inteiro."

A noite continuava a engolir o céu, mas eu não sentia medo. Não havia espaço para medo em algo como eu. Medo exigia contraste – vida e morte, luz e escuridão. E, nesse estado absoluto, eu era ambos e nenhum.

"Sou um conceito," murmurei, enquanto a vastidão do universo me engolia com sua quietude. "Sou o conceito de existência sem significado. E, enquanto houver algo para ser, eu serei. Porque não posso desaparecer, pois sou a própria ideia daquilo que persiste."

Eu caminhei pela cidade, como sempre fazia, mas agora ela era um reflexo de mim mesmo: deserta, sem propósito. Os prédios, antes testemunhas da vida, agora eram cascas ocas, sombras de algo que nunca existiu de verdade. Meu corpo se movia automaticamente, mas minha mente estava em outra parte. Um eco distante me dizia que eu não pertencia a lugar nenhum.

"Eu sou o último," murmurei para o vazio. "O que significa ser o último? Significa ser tudo... e nada. Significa carregar a essência do mundo e, ao mesmo tempo, não ter mais mundo algum."

Parecia óbvio, mas não havia ninguém para ouvir, ninguém para confirmar ou questionar. Apenas eu, as ruas e o silêncio opressor. Passei por uma vitrine estilhaçada e vi meu reflexo em um fragmento de vidro. Meu rosto era um borrão, distorcido e desfigurado.

"É isso que me tornei?" perguntei ao reflexo, que não respondeu. "Um fantasma de algo que nunca foi real. Uma ideia sem forma, uma existência sem substância."

Peguei o fragmento de vidro e o observei. A borda cortante brilhava sob a luz pálida da lua. Passei o dedo pela superfície, sentindo o frio, a dureza. Era tangível, real, mas ao mesmo tempo vazio de significado.

"Você é como eu," falei ao pedaço de vidro. "Cortante, mas sem propósito. Existo, mas não para nada. Não sou servo de Deus, nem rebelde como Lúcifer. Sou o intervalo entre ambos, o espaço onde nada vive. E, ainda assim, estou aqui."

Continuei andando até chegar à biblioteca. Entrei, como tantas outras vezes, e o cheiro dos livros velhos me envolveu. As estantes me olhavam como se soubessem o que eu estava prestes a fazer. Peguei um volume ao acaso, abri-o e deixei que as palavras fluíssem para mim. Mas elas não significavam nada. Não mais.

"O mundo sempre buscou significado," murmurei, fechando o livro com um estalo seco. "Sempre implorou por histórias, por respostas. Mas o significado é uma mentira que contamos a nós mesmos para suportar o vazio. E agora, sem ninguém para mentir, o que sobra?"

Eu me sentei no chão, entre pilhas de livros que antes me confortavam. Peguei um caderno vazio e comecei a escrever. Não era um desejo de registrar algo, mas um hábito. Minhas palavras eram tortas, desalinhadas, mas isso não importava. Eu escrevi sobre o silêncio, sobre a ausência, sobre o paradoxo de ser tudo e nada ao mesmo tempo.

"Eu destruí o Inferno," sussurrei, como se fosse uma confissão. "Liberei os humanos. Entreguei-os ao Céu. Dei-lhes o que eles sempre desejaram: salvação. Mas, no processo, tornei-me a única coisa que não pode ser salva."

Meu corpo tremia levemente. Não de frio, mas de algo mais profundo: a ausência de um propósito, a ausência de limites. Era como flutuar em um abismo infinito, sem chão, sem paredes, sem fim.

"Se não há propósito, então por que eu ainda existo?" perguntei em voz alta. A biblioteca não respondeu, mas o eco das minhas palavras parecia zombar de mim.

Levantei-me, o caderno ainda em mãos, e fui até a janela. O mundo lá fora era tão vazio quanto aqui dentro. Eu ri, um riso seco, sem vida.

"O que é a existência, afinal?" perguntei ao vazio. "Se eu sou tudo e, ao mesmo tempo, nada, então o que significa continuar? Continuar para onde? Para quê?"

Peguei o fragmento de vidro que havia trazido e o segurei contra a luz. Ele refletia minha imagem distorcida, como se o universo estivesse rindo de mim. Passei o dedo pela borda afiada novamente, sentindo o leve arranhão na pele.

"Não quero morrer," falei, mais para mim mesmo. "Não há medo aqui. Não há desejo de fim. Mas, talvez, seja isso que significa ser amoral. Não querer, não sentir, não ser... apenas fazer."

Olhei para o vidro e para o céu lá fora. O vazio era absoluto, e eu era o epicentro dele. Fechei os olhos por um momento, respirando fundo.

"Se sou tudo e nada, então minha existência é apenas mais uma farsa," sussurrei. "E farsa alguma pode durar para sempre."

Sem hesitar, pressionei o vidro contra minha pele. Não havia dor, apenas uma curiosa sensação de libertação. Não era suicídio no sentido humano; era uma rendição ao inevitável. O sangue escorreu, quente e silencioso, mas eu não sentia arrependimento.

"Talvez o universo esteja se corrigindo," murmurei, enquanto minha visão começava a escurecer. O mundo ao meu redor parecia suspenso, como se a própria existência estivesse segurando a respiração, esperando o inevitável. "Um erro não pode continuar indefinidamente. Nem mesmo um erro perfeito como eu."

Senti o chão frio contra meu corpo enquanto caía, o vidro em minhas mãos refletindo um último brilho fugaz, como um fragmento de luz lutando para sobreviver na escuridão. A dor era inexistente, mas a consciência, esta permanecia, cruel e penetrante. Não havia alívio em ser tudo, nem conforto em ser nada. E ali, naquele momento final, percebi que não havia escolha a fazer, porque escolhas exigem opostos, e eu era a fusão de ambos.

"Fui o princípio e o fim," sussurrei, minha voz quase engolida pelo peso do silêncio ao meu redor. "Mas nunca fui o meio. Nunca fui o que existia entre as extremidades. Apenas uma ruptura. Um paradoxo. Uma mentira tão perfeita que se tornou a verdade."

O mundo não choraria por mim. Não haveria lamentações, nem memórias deixadas para trás. Até mesmo as ruínas que percorri eram agora indiferentes à minha ausência. Mas isso não era tragédia. Era harmonia. O universo não precisa de observadores para existir. E eu, ao final, não passava de um observador.

"Talvez eu tenha entendido errado," continuei, minha respiração se tornando mais rasa, cada palavra arrancada de um lugar mais profundo. "Não era o inferno que eu queria destruir, nem o céu que eu queria rejeitar. Era a necessidade de que qualquer um deles existisse. Eu não era contra Deus ou contra Lúcifer... Eu era contra a necessidade de haver algo além de mim."

O silêncio crescia ao meu redor, mas desta vez ele não era vazio. Era pleno. Eu o compreendi finalmente. Não era ausência; era conclusão. Era a soma de tudo que já existiu e de tudo que jamais existiria, fundindo-se em algo indivisível, algo que não precisava de explicação.

"Talvez," murmurei, enquanto minha visão escurecia, a linha entre existência e ausência finalmente se apagando, "o universo precise de silêncio. E talvez... eu seja o silêncio que ele esperava."

Deixei o vidro cair, seus cacos espalhando-se como estrelas mortas sobre o chão. Meu corpo, agora imóvel, parecia parte da paisagem, uma extensão natural de tudo que eu era. E pela primeira vez, senti que fazia parte disso. Não era mais uma interrupção, não era mais uma nota fora da melodia. Eu era o silêncio. E o silêncio era tudo.

E então, não restava mais nada. Eu me tornara o ponto final de uma história que o universo escreveu para si mesmo.

O último homem no mundo olhou para o nada, e então; nada o restou.