Atravessamos o portão, e o peso do orgulho desabou sobre mim como uma avalanche. O ar parecia denso, quase sólido, cada respiração que eu tomava vinha carregada de algo sufocante — como se eu estivesse inalando fragmentos de minha própria imagem partida em mil pedaços. O chão sob meus pés era frio e liso, refletindo meu rosto de forma grotesca, multiplicado infinitamente, cada reflexo mais arrogante e desdenhoso que o anterior. Olhar para eles era como encarar algo mais íntimo do que deveria existir.
No centro desse mundo de reflexos, eu o vi: um trono, feito de ossos, ouro e algo mais... memórias roubadas, talvez. Cada parte dele parecia viva, pulsando, quase gemendo. Sentado ali, como se fosse o eixo do próprio universo, estava Lúcifer. Não havia beleza na sua forma. Não era o arcanjo glorioso que as histórias prometiam. Ele oscilava entre formas: ora angelical, ora monstruosa, mas sempre carregado de uma presença esmagadora. Seu olhar caiu sobre mim, pesado, implacável, como se pudesse despir cada pedaço da minha alma e expor o que restava.
O anjo ao meu lado ficou tenso. Pela primeira vez, suas asas, que antes brilhavam como um farol de pureza, pareciam menores, quase frágeis. Ele não falou. Não ainda.
— Então — Lúcifer começou, sua voz ressoando como um trovão distante que reverberava por todo o círculo. — O mortal que ousou atravessar todos os círculos do Inferno finalmente chega ao Orgulho. O que você busca aqui? Justiça? Perdão? Ou talvez a glória de provar que é melhor que o próprio Criador?
Deixei que minha boca se curvasse em um sorriso — não de alegria, mas de algo mais próximo do desprezo. Dei um passo à frente, sentindo cada palavra dele ressoar no chão, no ar, até mesmo nos meus próprios pensamentos.
— Busco nada disso. Não sou um seguidor, Lúcifer, nem de Deus, nem de você. Eu vim até aqui porque esse lugar, como todo o resto, precisa ser desmontado.
Ele riu, uma risada que reverberava como um terremoto. O chão de mármore sob meus pés estremeceu, os reflexos se distorcendo ainda mais. Meus próprios olhos, multiplicados nos mil reflexos abaixo de mim, pareciam zombar da minha audácia.
— Desmontado? — ele repetiu, como se saboreasse a palavra. — Que palavras corajosas para alguém tão... trivial. Você acredita que está acima do julgamento, que a amoralidade é sua fortaleza. Mas o que você é, mortal, senão o maior produto do meu trabalho? Acha que não carrega o orgulho? Cada passo que deu até aqui foi um grito de arrogância. Você não é nada além do que eu represento.
O anjo finalmente falou, sua voz cortando o ar pesado como uma lâmina.
— Suas palavras são veneno, Lúcifer. Ele veio aqui por escolha própria, mas não para se dobrar a você. Seu orgulho é uma sombra da verdade, uma corrupção do propósito divino. Não ousa entender o que ele busca.
Lúcifer voltou seu olhar para o anjo, e algo mudou em sua expressão. Ele não estava mais se divertindo. Seus olhos, dois abismos de estrelas mortas, brilharam com um desprezo profundo.
— E você, servo, ainda se prende às correntes do Criador? Não vê que Ele o abandonou aqui comigo? Este mortal é mais livre do que você jamais será. Ele é uma aberração, sim, mas ao menos não é uma ferramenta.
Eu ri, um som seco e sem humor. Ambos me encararam, e a tensão no ar ficou quase insuportável.
— Vocês dois são patéticos — eu disse, minha voz ecoando com uma convicção que nem eu sabia que possuía. — Lúcifer, você se vê como a força que desafiou Deus, mas tudo o que fez foi criar outra prisão, igual a Dele, só que com gritos e chamas. E você — virei-me para o anjo —, se apega a um propósito que não é seu. Vocês são dois lados da mesma moeda: o mesmo vazio vestido de diferentes mentiras.
O chão sob mim começou a se partir, os reflexos agora não eram apenas imagens de mim mesmo. Eram memórias. Momentos da minha vida. A criança que nunca recebeu um nome. O jovem que sobreviveu sem raízes. O homem que se tornou um bibliotecário, buscando em livros algo que o mundo nunca lhe deu. Cada fragmento era uma acusação.
Lúcifer se levantou do trono. Ele não caminhava — o chão parecia se dobrar sob seus pés, como se até o próprio Inferno se curvasse a ele. Ele parou diante de mim, sua forma oscilando, maior que qualquer coisa que eu pudesse compreender.
— Então prove, mortal. Prove que você não é apenas outro grão de areia no deserto infinito que criamos.
O anjo deu um passo à frente, mas ergui minha mão para detê-lo.
— Isso é entre eu e ele.
Ele hesitou, mas recuou, sua expressão sombria.
Eu olhei diretamente nos olhos de Lúcifer e disse:
— Se você é o Orgulho, então vamos ver o que sobra quando eu o arrancar pela raiz.