A terra tremia a cada passo de Gula, e enquanto ele se aproximava, o ar parecia se condensar com a ameaça iminente de sua presença. Eu não poderia demonstrar fraqueza, não ali, não diante dele. No Inferno, o medo é a entrada para a derrota. E eu sabia que ele me via como apenas mais uma alma condenada, algo sem valor a ser devorado. Esse erro seria a chave para minha sobrevivência.
"Você realmente é tudo isso que dizem, não é?" minha voz cortou o silêncio, suave, mas firme.
Gula parou por um momento, um suspiro pesado e sonoro escapando de suas múltiplas bocas, que mastigavam incessantemente e riam ao mesmo tempo. O som era desconcertante, como o murmúrio de mil vozes sufocadas. "E o que dizem sobre mim, pequeno humano?"
"Que você é insaciável," continuei, me aproximando um pouco, enquanto disfarçava a admiração pela monstruosidade dele. "Que nem o tempo é capaz de saciar sua fome."
"Isso é verdade," rugiu Gula, sua voz vibrando como um trovão. "O tempo me serve, assim como todos que aqui chegam."
Me aproximei mais um passo, o risco de proximidade se misturando à curiosidade. Uma fera, quando observada de perto, hesita, e é essa hesitação que transforma o jogo.
"Então é verdade que você consome tudo?" perguntei, minha voz agora baixa, como se estivesse tocando um ponto delicado. "Que nada pode resistir à sua fome?"
Ele sorriu, mostrando dentes afiados como lâminas, e suas bocas se abriram ainda mais, revelando uma escuridão infinita. "Você tenta me lisonjear, mas suas palavras são fúteis. Eu não preciso de sua adulação."
"Não são fúteis," retruquei, meu tom levemente ofendido, mas controlado. "Na verdade, eu tenho algo que você pode consumir. Algo que ninguém mais teria coragem de oferecer."
Havia uma mudança em seu olhar. Um lampejo de interesse surgiu, e ao redor de nós, as árvores pareceram se inclinar, como se o próprio Inferno se curvasse para escutar. Gula abaixou a enorme cabeça em minha direção, seus olhos negros penetrando minha alma, estudando-me como se fosse uma presa.
"Você ousa negociar comigo? Que tipo de tolo acha que tem algo que eu não possa tomar à força?"
"Não é algo que você pode tomar," respondi com confiança, um tom desafiador impregnando minhas palavras. "É algo que só pode ser oferecido. Algo que só se oferece uma vez. Algo eterno."
A palavra "eterno" ecoou pelo vale como um trovão. Por um breve momento, o próprio Inferno parecia suspender sua respiração, aguardando o que eu diria a seguir.
Gula me observava com atenção, suas bocas agora paradas, sua confiança vacilando. Ele era grande, poderoso, mas sua natureza o tornava vulnerável. A fome eterna não conhece limites, mas também não conhece paciência. O que nunca é saciado nunca pode rejeitar a promessa de satisfação.
"Você se gaba de sua fome, mas nunca se perguntou o que realmente busca," comecei, dando um passo a mais, circularmente, como um caçador. "Você consome tudo, mas o que realmente deseja não é comida, é algo mais. É propósito."
"Propósito?" Gula riu, mas havia algo instável em sua risada, uma falha no que antes parecia convicção.
"Você consome porque precisa. Porque é sua natureza. Mas e se houvesse algo que não fosse apenas alimento? Algo que não acabasse nunca? Algo que pudesse satisfazer sua fome para sempre, mas também mantê-la viva?"
Suas bocas começaram a murmurar, palavras desconexas e inquietas, revelando um aumento de dúvida. Eu havia fisgado sua atenção.
"Estou falando de um alimento eterno. Um ciclo sem fim, onde cada mordida se renova antes mesmo de ser consumida. Você não seria mais um simples devorador; seria um criador de fome, um deus entre os deuses."
A ideia estava tomando forma, mesmo que lentamente, na mente de Gula. Ele não queria apenas consumir; ele desejava o poder sobre a própria fome, a capacidade de se tornar mais do que ele era.
"Você fala como se tivesse algo assim," ele disse, sua voz carregada de uma tentação sutil, mas crescente.
"Eu tenho," menti com uma confiança imbatível, sem hesitar. "Algo que só eu posso liberar. Algo além de sua compreensão. Mas para receber isso, você precisa provar que é digno. Não um devorador cego, mas alguém que consegue dominar sua própria fome."
Gula não poderia resistir a essa ideia. A fome eterna, por mais que ilimitada fosse, nunca saberia se saciar sem um propósito. Ele precisava acreditar que havia algo mais, algo que ele não possuía.
"Prove-me," ele rosnou, suas bocas se abrindo todas em sincronia, a saliva negra escorrendo.
Levantei as mãos como se estivesse invocando um ritual, como se, de alguma forma, o ar ao redor se transformasse em algo. Claro, não havia nada, mas no Inferno, aparência é tudo.
"Você precisa se purificar," disse com uma voz solene, como a de um sacerdote preparando um fiel para a salvação. "Você precisa se livrar do excesso, abrir espaço para o alimento eterno. Só quando se desfizer do que já consumiu poderá participar do verdadeiro banquete."
Gula hesitou, suas inúmeras bocas tremendo em um silêncio que parecia mais sufocante do que qualquer grito. "Purificar?" Ele riu, mas era uma risada carregada de incerteza, um eco de sua própria fragilidade. "Eu sou Gula. Eu não perco, eu conquisto. Eu ganho. Sempre ganho."
"Não, você consome," retruquei, minha voz baixa e incisiva, enquanto continuava a circular ao seu redor como uma sombra inevitável. "E consumir não é poder, é fraqueza. Você chama isso de vitória? Você é uma poça rasa que nunca transborda, uma ferida aberta que nunca cicatriza. Você se alimenta de tudo, mas nunca se alimenta de si mesmo. Não vê? Você é sua própria prisão. O carcereiro e o condenado."
Gula tentou se recompor, mas havia algo em minhas palavras que o corroía, algo que ele não podia simplesmente engolir como fazia com tudo o mais. Suas bocas, que outrora devoravam sem fim, começaram a se fechar, uma por uma, como flores murchando sob o peso de um inverno interminável.
"Você fala de ganho, mas nunca teve nada que fosse realmente seu," continuei, parando à sua frente. "Você consome o mundo para preencher um vazio que nunca se sacia. É isso que você é: um vazio. Um buraco sem fundo, um eco que nunca encontra sua origem. E sabe por quê? Porque a fome que o define é a mesma que o destrói. Sua existência é uma piada cruel, uma ironia divina. Você é o reflexo mais puro de Deus, e por isso mesmo é o mais patético. Ele criou você à sua imagem: faminto, insaciável, arrogante."
A hesitação de Gula tornou-se uma sombra de dúvida, e essa dúvida, como uma rachadura em uma estrutura imensa, começou a se expandir. Ele se contorceu, como se minhas palavras fossem lâminas que cortavam algo profundo, algo que ele nunca ousara confrontar.
"Você acha que devorar é poder? Então me diga, Gula, o que sobra quando você consome tudo? O que você é quando o mundo está vazio? Nada. Menos que nada. Porque a fome não pode se alimentar de si mesma. Você é um poço seco que não entende sua própria inutilidade. Você, Gula, não é um predador. Você é uma vítima. Uma vítima de sua própria natureza, criada por um Deus tão faminto quanto você."
As palavras pareciam atravessar sua carne, perfurando não apenas seu corpo, mas a ideia de si mesmo. Gula começou a cair de joelhos, esmagado pelo peso de um conceito que ele não podia suportar. As bocas restantes tremiam, mas não podiam se abrir. Não havia mais nada a devorar, nem palavras, nem substância, nem significado. Ele era um corpo vazio tentando lutar contra o inevitável.
"Você nunca foi invencível," sussurrei, olhando-o de cima. "Você só era cego. Cego para o fato de que o verdadeiro poder não está em consumir, mas em recusar. E você, Gula, nunca recusou nada. Porque para recusar é preciso ser mais do que fome. É preciso ser completo. E você nunca será completo. Você é, e sempre será, menos do que o nada que teme."
A dúvida agora o consumia, tão voraz quanto ele consumira tudo ao seu redor. Ele era o eterno devorador, mas, naquele momento, percebia que a fome não era um dom. Era uma maldição. E não a maldição de Deus, mas a maldição de sua própria essência. Uma essência que nunca poderia escapar de si mesma.