Enquanto caminhávamos rumo ao terceiro círculo, o calor sufocante da ira deu lugar a um frio insuportável. O ar era denso e opressor, como se carregasse o peso de todas as riquezas que essas almas acumularam em vida. Sob nossos pés, o chão estava coberto por uma camada de gelo irregular, translúcida e traiçoeira, refletindo como espelhos deformados as expressões de ganância eternamente congeladas nos rostos das almas presas ali.
O fogo e o gelo se entrelaçam em um espetáculo de agonia incessante, o castigo dos avarentos se desdobra de forma implacável e aterradora. Os pecadores, cujas vidas foram marcadas pela obsessão pelo ouro e pelo poder, agora são os escravos de suas próprias ambições, condenados a um sofrimento tão absoluto quanto sem fim.
Lá, no rio de fogo que serpenteia por um deserto de cinzas e dor, as chamas lambem incessantemente as carnes dos avarentos. Seus corpos, outrora arrogantes e cheios de desejo, estão agora mutilados, queimados até que a carne se desfaz em cinzas e carne viva. Suas mãos, que sempre estavam estendidas para acumular riquezas, agora estão cravadas em correntes de ferro fundido, forçadas a segurar pedras flamejantes, tão pesadas e escaldantes quanto suas próprias almas. O calor que emana de cada pedra é como o fogo infernal, queimando suas peles e ossos até não restar mais nada senão dor e desespero.
Esses infelizes, em sua ânsia de poder, foram jogados em uma tempestade incessante de chamas e cinzas que caem do céu. O fogo é tão intenso que seus olhos ardem até se desfazerem, seus gritos são abafados pela força do vento de fogo que rasga suas gargantas, ecoando pelo infinito da noite eterna. Seus rostos são distorcidos em expressões de dor absoluta, os músculos rígidos pela tortura constante de não poderem escapar da sua prisão de fogo e ferro.
Cada passo que dão é uma luta. Empurrando com toda a força as enormes pedras de ouro e prata que antes consideravam seus maiores tesouros, agora se tornam suas maldições. A cada movimento, a rocha que empurram pesa mais e mais, esmagando-os sob o peso de sua própria avareza. As pedras cortam sua pele, deixando rastros de sangue que se misturam à terra ardente. Eles são forçados a arrastar esses fardos eternamente, sem alívio, sem descanso. As pedras, como fantasmas do que desejaram em vida, nunca param de se mover, nunca param de esmagar, enquanto o fogo ao redor os queima até que não se saiba mais onde a carne começa e onde o tormento infinito continua.
Em sua busca insaciável, os avarentos agora estão presos àquele tormento eterno, onde o ouro que antes os guiava é agora o peso de seu castigo. O fogo que ardia em seus corações agora consome suas almas, consumindo toda a sua humanidade, até que não reste mais nada, senão a chama eterna que queima de forma impiedosa.
Figuras se arrastavam pelo gelo, lutando para segurar moedas brilhantes que se desfaziam em pó ao toque. Outras cavavam desesperadamente o solo congelado com unhas ensanguentadas, como se esperassem encontrar um tesouro enterrado. Mas tudo o que encontravam eram as próprias falhas.
Parei diante de uma dessas almas. Era um homem magro e encurvado, os dedos retorcidos agarrando-se a uma pilha de objetos que pareciam ser feitos de ouro. Seus olhos, fundos e vazios, brilhavam com uma obsessão animalesca. Ele olhou para mim por um momento, como se eu fosse mais uma coisa a ser possuída, antes de voltar ao seu acúmulo inútil.
- Eles estão presos em um ciclo, incapazes de entender - murmurei, mais para mim do que para as figuras que me acompanhavam.
Ira riu. Era um som cortante, quase cruel, mas não desprovido de ironia. - Entender? Eles nunca entenderam nada. Nem em vida, nem agora. A ganância deles os trouxe aqui, e agora isso é tudo o que são. Você acha que eles querem ser salvos? Eles só querem *ter*.
Olhei para Gula, que permanecia em silêncio. Seu semblante parecia mais sombrio, como se ela absorvesse o sofrimento ao nosso redor. Quando finalmente falou, sua voz tinha um peso que até Ira respeitou.
- Não é só desejo. É um vazio tão profundo que se tornou a essência deles. Eles não estão acumulando para possuir. Estão acumulando porque é tudo o que sabem fazer.
Uma das almas ergueu-se com dificuldade, o gelo quebrando sob seus pés frágeis. Seu rosto estava retorcido, misturando fúria e súplica. Ela avançou na minha direção, as mãos estendidas como se tentasse agarrar algo invisível.
- Por favor! - sua voz era rouca, um grito abafado. - Eu fiz tanto! Acumulei tanto! Por que estou aqui? Eu mereço mais!
Dei um passo para trás, não por medo, mas por repulsa. Havia algo profundamente perturbador na fome em seus olhos. Ela não queria redenção, apenas a ilusão de possuir mais uma vez.
- Você nunca terá o suficiente, não é? - perguntei, meu tom gelado como o ar ao nosso redor. - Você está aqui porque nunca entendeu que tudo o que acumulou não era realmente seu. Nem mesmo sua alma.
A alma hesitou, como se minhas palavras tivessem perfurado o véu de sua obsessão. Mas apenas por um instante. Em seguida, ela gritou, um som cheio de desespero, antes de se lançar de volta ao gelo, cavando freneticamente.
Gula suspirou. - Não há esperança aqui. Só reflexos de uma fome que nunca será saciada.
"Deixe-me aqui," disse Gula, sua voz agora mais firme. "Eles não têm mais nada. Nem mesmo a esperança."
"Por que você vai ficar?"
Gula não respondeu.
Ira sorriu, e o sorriso dela era como o sorriso de uma loba, cínica e satisfatória. "Eles nunca entenderão. Mas isso faz o Inferno mais interessante. É por isso que adoro o Inferno. Sempre há uma nova forma de fracasso humano para admirar."
Enquanto caminhávamos pelo círculo da Avareza, o gelo sob nossos pés parecia gemer de desespero, como se carregasse o peso das almas que se recusavam a soltar aquilo que nunca realmente possuíram. O ar era congelante, mas o frio não vinha apenas do ambiente; era um vazio gelado que se infiltrava na alma, um reflexo da ganância incessante que consumia tudo ao redor. Ira seguia ao meu lado, com o mesmo sorriso cínico de antes, observando o cenário como um predador observa sua presa.
"Você sente isso?" ela perguntou, a voz carregada de desprezo. "Esse gelo? É feito de promessas quebradas e esperanças que nunca se realizaram. Cada rachadura, cada som que escutamos sob nossos pés, é uma memória de algo que eles tentaram agarrar e nunca puderam segurar. É lindo, não é?"
"Lindo?" perguntei, com um tom seco. "Você encontra beleza na repetição do fracasso? No desejo insaciável que nunca se sacia?"
Ela riu, um som áspero, quase animalesco. "É claro que sim. Não é isso que define os humanos? Eles sempre querem mais. Mais do que precisam, mais do que podem carregar. E quando finalmente têm tudo, percebem que o vazio dentro deles continua o mesmo. Então, acumulam mais, como se empilhar coisas pudesse preencher o buraco que chamam de alma."
"Você parece admirar isso," retruquei, observando as almas presas no gelo ao nosso redor. Algumas estavam encolhidas, segurando pedaços de ouro que se despedaçavam em suas mãos. Outras lutavam, tentando arrancar joias imaginárias das profundezas congeladas, enquanto o gelo as consumia lentamente.
"Admiração? Não," Ira respondeu, os olhos dela brilhando com um fervor cruel. "Eu desprezo isso. Mas o desprezo tem sua própria forma de fascínio, não acha? É como assistir uma tragédia interminável, sabendo que o desfecho nunca muda, mas ainda assim incapaz de desviar o olhar. Humanos são previsíveis. Patéticos. Mas são tão deliciosamente criativos em sua destruição."
Eu parei, encarando-a diretamente. "E você? O que é você, senão uma extensão desse mesmo ciclo? Você se alimenta do ódio que eles criam, mas não o provoca. Você é apenas um reflexo, assim como este gelo. Não cria nada. Apenas consome."
Ela estreitou os olhos, o sorriso se alargando como o corte de uma lâmina. "E você? O que é você, senão um homem que fala do vazio como se fosse um deus? Você gosta de pensar que está acima disso, mas está aqui, comigo, neste inferno. Você caminha entre os pecados porque, no fundo, é tão vazio quanto eles. Talvez até mais."
"Você está certa," respondi, sem hesitar. "Eu sou vazio. Mas o vazio não se desespera. Não se apega. Ele não precisa de ouro, de poder ou de destruição para justificar sua existência. O vazio aceita o que é, enquanto vocês — você e todos os outros neste lugar — lutam contra o que são. É por isso que eu estou aqui e ainda sou livre, enquanto vocês estão presos às suas próprias naturezas."
O sorriso dela desapareceu por um momento, apenas para retornar ainda mais afiado. "Livre? Que ilusão doce. Você caminha por este círculo, mas não é livre. Você está preso ao seu vazio como eles estão presos ao gelo. Você apenas encontrou uma maneira mais inteligente de se enganar."
"Talvez," admiti, olhando para uma alma próxima que segurava um pedaço de gelo como se fosse o objeto mais precioso do mundo. "Mas o vazio não precisa de correntes. Ele é leve, Ira. Leve como o ar que escapa de um suspiro final. Você pode continuar admirando o fracasso humano, mas eu vou caminhar por este círculo e sair dele sem levar nada, porque nada é o que sou. E nada é o que preciso ser."
Ela riu novamente, mas desta vez havia um tom mais sombrio em sua voz. "Você é fascinante. Uma criatura do nada tentando desafiar o tudo. Espero que você encontre o que está procurando, mas eu duvido. No final, o vazio não é um deus. É apenas outra forma de prisão."
"Talvez," murmurei, enquanto continuava a caminhar, deixando-a para trás. "Mas se o vazio é uma prisão, ao menos é uma em que não preciso de chave."
Ira continuava a me observar com aquele sorriso cruel, mas sua atenção foi interrompida quando, sem aviso, parei no meio do caminho. O silêncio entre nós ficou pesado, quebrado apenas pelo som do gelo estalando sob meus pés.
"Você parou de andar. Alguma reflexão filosófica profunda dessa vez?" ela perguntou, com sarcasmo evidente.
"Não," respondi, minha voz calma enquanto abria o manto que vestia. "Eu só… preciso mijar um pouco."
Ela piscou, confusa. "Você… o quê?"
Antes que ela pudesse reagir, eu já estava virado de costas para ela, liberando um jato que imediatamente começou a derreter o gelo sob mim. O som inconfundível ecoou pelo círculo da Avareza, um contraste bizarro com os gritos de agonia e o murmúrio dos desesperados ao nosso redor. Enquanto fazia minha necessidade cantarolava um pouco.
"Entra na minha casa, entra na minha vida, meche com minha estrutura, sara todas as feridas..."
Ira ficou boquiaberta, claramente sem palavras pela primeira vez desde que a encontrei. "Você está mijando… no círculo da Avareza?"
"Sim," respondi, sem me virar, como se fosse a coisa mais natural do mundo. "Achei que fosse apropriado. Afinal, tudo neste lugar é um ciclo de desperdício, não é? Por que não contribuir para a estética?"
Ela começou a rir, uma risada genuína, quase descontrolada. "Você… é inacreditável! Estamos literalmente no coração do Inferno, e sua resposta é… isso?"
"O Inferno pode esperar," murmurei, meu tom completamente sério enquanto terminava e ajeitava meu manto. "Mas a bexiga, Ira, não espera por ninguém. Nem mesmo por Lúcifer."
Ela riu ainda mais alto, segurando o estômago como se não pudesse acreditar no que via. "Você é o vazio encarnado e, ainda assim, consegue transformar o horror absoluto em… isso. Sabe, mortal, talvez você seja ainda mais absurdo do que qualquer alma condenada aqui."
Eu dei de ombros, sem me importar com o julgamento. "Se o vazio não tem limites, Ira, por que não deveria ter um senso de humor? Até o Inferno merece um pouco de humanidade de vez em quando."
Ela me acompanhou enquanto retomávamos a caminhada, ainda rindo e balançando a cabeça. "Você é um paradoxo ambulante, sabe disso?"
"Eu prefiro o termo 'revolução ambulante'," corrigi, com um leve sorriso. "Mas você pode me chamar do que quiser, desde que me deixe marcar território."
O absurdo da situação parecia pendurar no ar, como uma pequena vitória contra o peso opressor do círculo. Talvez até o Inferno precisasse de momentos como aquele – momentos que não faziam sentido, mas quebravam o ciclo de miséria, mesmo que apenas por um instante.
Quando Eu e Ira seguimos em frente, senti o peso do círculo se intensificar. A avareza não era apenas o desejo de possuir. Era o medo de perder, a necessidade de controlar o incontrolável. Cada passo sobre o gelo fazia um estalo sob meus pés, como se o chão pudesse se partir a qualquer momento, engolindo tudo ao redor.
E então, ao longe, vislumbrei uma figura distinta. Ela estava de pé, imóvel, em contraste com o caos das outras almas. Seu corpo era magro, quase esquelético, mas seus olhos brilhavam com uma intensidade que fazia meu sangue gelar mais do que o frio ao redor.
Avareza. A personificação do terceiro círculo.
Enquanto nos aproximávamos, uma coisa ficou clara: ela não precisava falar para impor sua presença. O vazio ao seu redor já dizia tudo. E a verdade que eu estava buscando parecia mais próxima. Mas, ao mesmo tempo, mais aterrorizante.