O gelo sob nossos pés estalava, cada rachadura carregando o som de algo quebrando dentro de Avareza. Ela se contorcia, agarrando-se aos montes de ouro que desabavam ao seu redor como uma tempestade de areia dourada. Seu desespero, uma força que emanava dela em ondas enquanto tentava, em vão, manter controle sobre o que já estava perdido.
- Vocês não entendem! - ela rugiu, seus olhos brilhando como lâminas de ouro fundido. - Tudo isso é meu! Eu construí isso! Eu sou isso!
Avareza ainda não sabia, mas a verdadeira batalha havia começado. O jogo que ela sempre controlara agora pertencia a outro.
"Avareza, o que busca não é nada além de valor, quando se tem tudo, o resto se perde o valor a sua visão, o que você precisa é somente suprir necessidade, não exalar ela."
"Voce não entende, o ouro é tudo que tenho." Avareza suplicou.
Ira não estava a suportar mais a ganância de Avareza e a sua busca pelo o que não se tem valor real.
Gula emergiu das sombras como uma presença inevitável, carregando consigo um exército de almas condenadas. Eram os avarentos, aqueles que, como Avareza, haviam sido consumidos pela ganância. Suas formas eram translúcidas, disformes, mas seus olhos brilhavam com uma intensidade feroz, como se cada um carregasse o fardo de uma existência arruinada por sua própria obsessão.
Gula avançou lentamente, seu rosto uma máscara de serena determinação. - Você sempre acumulou, mas nunca deu. Sempre tomou, mas nunca ofereceu. Agora, Avareza, veja o que você realmente criou.
As almas dos avarentos começaram a se mover, como uma maré que rodeava Avareza. Seus sussurros ecoavam pelo ar gelado, uma cacofonia de lamentações e acusações.
- Foi você, sua ignorância não nos deu o que tinha...
- Sua ganância nos arruinou...
- Sua fome pelo ouro nos consumiu, agora eu quero isso!
Avareza recuou, seus olhos arregalados de puro pavor. Ela tentou agarrar o ouro ao seu redor, mas cada pedaço que tocava se dissolvia em poeira. O amor e apego ao valor material começava a se dissolver. As almas a cercaram, cada vez mais próximas, estendendo mãos espectrais que a atravessavam como facas, arrancando fragmentos de sua essência.
- Não! - ela gritou, sua voz agora um misto de fúria e desespero. - Isso não é justo! Vocês me seguiram! Vocês escolheram a ganância!
Gula inclinou a cabeça, um sorriso gélido. - E quem os conduziu? Quem os inspirou? Você é a fonte, Avareza. E agora, será devorada pelo que criou.
As almas avançaram, penetrando a figura de Avareza como uma tempestade de sombras. Ela se debatia, gritando, mas era inútil. Cada toque das almas arrancava mais de sua forma, revelando algo frágil, quase humano, escondido sob sua fachada monstruosa.
- Eu... Eu sou tudo isso! - Avareza sussurrou, sua voz agora enfraquecida. - Sem isso... eu não sou nada.
Eu a observei em silêncio, enquanto Gula se aproximava. Com um gesto, ela comandou as almas a cessarem. Elas se afastaram, formando um círculo ao redor de Avareza, agora ajoelhada no gelo, tremendo.
- Você não é nada porque escolheu ser nada além de ouro - disse Gula, sua voz suave como uma lâmina. - Mas há uma escolha. Sempre houve.
Avareza ergueu o olhar, os olhos cheios de lágrimas douradas que escorriam por seu rosto. - Eu posso mudar?
Ira não intervia, estava se divertindo.
Gula ficou observando ela, encarando-a com uma intensidade quase maternal. - Pode, mas não será fácil. Essas almas são suas. Você as fez o que são. E agora, sua redenção será guiá-las.
Avareza hesitou, mas, lentamente, ergueu uma mão, tocando a sombra de uma das almas que a haviam devorado. A alma parou, e por um momento, os sussurros cessaram. Ela parecia compreender, talvez pela primeira vez, o peso do que carregava.
Quando me aproximei, Gula, olhando para mim com um misto de exaustão e satisfação. - Ela ainda é um reflexo do pecado, mas agora carrega algo mais.
Avareza então replicou.
- Eu, que criei o desejo insaciável. Eu, que moldava os corações com as mãos trêmulas da cobiça. Eu, que era a voz sussurrante nos ouvidos, a sombra que sugava a luz da alma. Eu... fui a responsável por tudo isso. Cada vez que alguém olhava para o ouro e via não riqueza, mas um abismo que se alargava. Cada vez que uma vida se desfazia em busca de algo que nunca seria suficiente. Fui eu. Eu os ensinei a desejar, a nunca estar satisfeitos. E agora... agora me vejo aprisionada em meu próprio reino de vazio.
- Ela olha ao redor, as mãos tremendo ao tocar as riquezas que ainda a cercam, e então solta um riso amargo.
Não... não era assim que eu sonhei. Eu queria mais. Queria ser mais. O poder, a beleza do controle... Pensava que tinha encontrado a chave para tudo. Que havia uma felicidade oculta atrás de cada ouro, cada joia que eu acumulava. Mas... o que eu criei foi um pesadelo. Não vejo mais rostos humanos. Não vejo mais mãos dispostas a compartilhar, nem olhares de carinho. O que eu fiz? Transformei todos em sombras, todos sedentos por mais, e, no fim, o que resta? Um vazio imenso. Um buraco que nada preenche. Nem mais ouro. Nem mais diamantes.
Quando vi aquelas almas, antes cheias de esperança, se perderem, eu não percebi. Eu estava tão obcecada em conquistar, em acumular, que não vi o que estava acontecendo. Eles deixaram para trás a humanidade, deixaram para trás o amor, a amizade... por mim. Pela minha falsa promessa. Pela minha mentira disfarçada de poder.
Eu pensei que o ouro fosse tudo. Pensei que o dinheiro, a posse, o controle fossem a verdadeira essência da vida. Mas agora... agora vejo que era tudo uma prisão. Eu aprisionei a todos em uma ilusão, e ao final, eu mesma estou presa aqui, no meu próprio castelo de riquezas. E o que é um castelo sem vida? Sem cor? Sem o calor de um abraço? Sem a risada de um amigo? O que é o ouro sem um coração para compartilhá-lo?
Eu criei monstros. Eu criei criaturas que só sabem consumir, que vivem para acumular sem entender que nada do que buscam pode realmente preenchê-los. Eu os fiz acreditar que a felicidade estava nas coisas... e agora, vejo que a verdadeira riqueza está naquilo que nunca lhes ensinei: o afeto, a compaixão, o sacrifício por algo maior do que nós mesmos.
Eu... eu criei este mal. E o que mais posso fazer senão me arrepender? Não posso mais corrigir as feridas que causei, não posso trazer de volta os corações partidos, mas... talvez, só talvez, ao menos possa tentar salvar o que restou de mim. Talvez ainda haja uma chance para aqueles que se perderam, se eu mostrar o caminho de volta. O caminho da generosidade. O caminho do amor.
- Ela olha para cima, com um leve suspiro de esperança.
Eu me arrependo. E, talvez... esse arrependimento seja o primeiro passo para a cura. Não para mim, mas para todos os que toquei. Que eu aprenda, enfim, o que é ser verdadeiramente rica... no que é eterno.
Me desculpe.
Avareza ficou de pé, cambaleando, mas algo nela havia mudado. Não era mais a figura imponente e monstruosa que havia enfrentado. Agora, era apenas uma sombra, carregando consigo as almas que a haviam definido, mas com um olhar que, talvez, pela primeira vez, mostrava arrependimento. De acordo que o tempo passava, sua forma fisica perdia forma e cada pedaço se dissolvia como areia.
- A travessia não acaba aqui - murmurei, encarando-a. - O que você fez te seguirá. Mas o que você fará agora?
Avareza não respondeu. Apenas deu um passo à frente, suas almas ficaram para trás, se deleitando as moedas de ouro. Atravessaríamos juntos, mas ela, agora, carregava o peso de sua transformação. Virou uma sombra, assim como Ira e Gula.
"Qual seu nome?" Avareza perguntou, após virar uma sombra.
"E isso faz alguma diferença? Você tem algum nome para chamar de seu? Seu nome não tem o mesmo significado de antes, você não é mais a Avareza, assim como Ira e Gula. Não preciso de um nome ou algum arquétipo pra eu ser eu."
"Não me importo mais com nada, o que eu era antes não reflete mais o que sou hoje; eu era vivo, mas fiquei preso às minhas próprias palavras e deixei o tempo me levar. Agora, sou apenas um eco do que fui, forjado por minhas próprias escolhas e pelas consequências que, em minha cegueira, nunca temi. O passado não tem mais poder sobre mim, e o futuro é apenas uma ilusão distante. O que resta de mim é a solidão de quem se perdeu na busca incessante por um propósito que nunca existiu. Agora, sou a sombra do que imaginei ser, livre das amarras que um dia me prenderam, mas também vazio, sem direção, sem razão para continuar. O único significado para mim agora é livrar essas almas de seus pecados. O único significado que ainda me resta em vida, se é que ainda estou vivo."