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Chapter 18 - Capítulo 15 - Sodoma e Gomorra

O chão de carne e lodo da preguiça começava a se transformar gradualmente em algo ainda mais grotesco. As paredes do inferno ao nosso redor tremulavam, pulsando como um organismo vivo. Correntes de sangue negro escorriam pelas fendas das rochas, exalando um cheiro azedo e metálico que fazia o estômago de todos embrulharem. Mas eu? Nada. Acho que me tornei a amoralidade em pessoa. Minha fome corroía minhas entranhas, mas, por dentro, tudo parecia entorpecido, morto.

Naka caminhava ao meu lado, seu rosto tão impassível quanto uma máscara, mas os olhos traiam um brilho de cálculo frio. De vez em quando, ela deixava o olhar vagar para os corpos que jaziam pelo caminho. Alguns ainda estavam vivos, gemendo e se contorcendo, enquanto outros eram apenas carcaças secas, abandonadas como lixo. Restos de almas que fracassaram na tentativa de prosseguir. Um fracasso que parecia, a cada passo, um destino mais provável para nós mesmos.

Ela parou de repente, os olhos fixos em um corpo que ainda não havia perdido sua frescura. A pele do cadáver era quase rosada, como se a morte tivesse acabado de reclamá-lo. Era um contraste perturbador contra o fundo cinzento e sanguinolento ao redor.

- Esse aqui parece promissor, - disse ela, ajoelhando-se ao lado do cadáver, como um açougueiro inspecionando mercadoria. Seus dedos apertaram a carne do braço com uma curiosidade mórbida. - Você vai querer um pedaço ou vai continuar fingindo que ainda pode escolher?

Hesitei por um momento. Não pela moralidade-essa já tinha sido abandonada há muito tempo-mas porque a visão ainda me causava um desconforto irracional. No entanto, quando o cheiro de carne invadiu minhas narinas, algo primal dentro de mim tomou controle. Eu me ajoelhei ao lado dela sem dizer uma palavra, puxando a faca improvisada que tínhamos feito de um pedaço de metal retorcido.

O corte foi limpo, embora o metal estivesse cego e enferrujado. O sangue jorrou em fios grossos e quentes, escorrendo pelos meus dedos. A visão deveria ser nauseante, mas naquele momento parecia quase... normal. Levei o pedaço de carne à boca e mordi, tentando ignorar a textura fibrosa e o gosto ferroso que enchia minha boca.

- Não esperava me acostumar com isso tão rápido, - murmurei entre mordidas. Não era verdade. Eu ainda não estava acostumado. Só estava resignado.

Naka riu, mas sua risada não tinha calor algum. Era fria, quase musical, como uma melodia mórbida.

- Aqui, ou você se adapta ou morre. Não tem espaço para questionar nada. Só coma, bibliotecário. Precisamos de forças para o que vem a seguir.

Eu olhei para o rosto dela enquanto mastigava. Ela parecia tão à vontade, como se estivesse jantando em um restaurante caro.

- Você parece gostar disso. - Minha voz saiu mais acusadora do que eu pretendia.

- Gostar? - Ela arqueou uma sobrancelha enquanto cortava um pedaço do peito do cadáver. - Não seja tolo. Não é questão de gosto. É questão de sobrevivência. Você quer viver? Então coma.

Suspirei e dei mais uma mordida. Talvez ela estivesse certa. Talvez ela fosse tão errada quanto tudo ao nosso redor. Mas, no final, o resultado era o mesmo: ou nos adaptávamos, ou morríamos.

Enquanto nos alimentávamos, os outros pecados observavam de longe, suas expressões variando entre nojo e curiosidade. Ira foi a primeira a falar, seu tom carregado de desprezo.

- Vocês dois parecem selvagens. - Ela cruzou os braços, embora não tirasse os olhos da carne que segurávamos. - Não toco nisso nem morta.

- Morta você já está, de certa forma, - retrucou Naka, limpando o sangue da boca com as costas da mão. - Então não faz muita diferença, faz?

Avareza se aproximou, sempre com sua sacola de quinquilharias firmemente presa ao peito. Ele olhou para o cadáver com um interesse calculado, como se estivesse avaliando um investimento.

- A carne é fresca? - perguntou ele, a voz cheia de hesitação.

- Fresca o suficiente para te manter de pé, - respondi, sem paciência para suas dúvidas.

- Tô fora, - resmungou Gula, se afastando com uma expressão de desgosto. - Não é do meu gosto.

- Claro que não, - ironizou Naka, rolando os olhos. - Porque o que você quer nunca está disponível, não é?

- Chega disso, - interrompeu Ira, apontando adiante com um movimento brusco. - Precisamos continuar. O próximo círculo não vai esperar por nós.

Limpamos nossas facas e seguimos em frente, deixando o cadáver para trás como mais uma lembrança de nossa degradação. O chão sob nossos pés começou a mudar novamente, tornando-se mais sólido, mas o cheiro continuava piorando.

As paredes pulsavam ainda mais intensamente agora, como se um coração monstruoso estivesse enterrado em algum lugar, alimentando aquele lugar com sua energia grotesca. O ar estava mais pesado, saturado de calor e umidade. Cada passo parecia nos puxar para baixo, como se o inferno estivesse tentando nos engolir vivos.

- Isso está piorando, - comentei, sentindo o suor escorrer pelo meu rosto.

- Bem-vindo ao inferno, - respondeu Naka com um sorriso irônico.

Eu a ignorei e continuei andando.

A trilha diante de nós começava a se estreitar, apertando como a garganta de um monstro. Rochas escarpadas projetavam-se para os lados, e mãos de ossos surgiam das paredes, como garras tentando nos agarrar a cada passo. O ambiente pulsava ao nosso redor, vivo e hostil, um aviso silencioso de que aquilo era apenas o começo do horror.

Avareza, que vinha mais atrás, estacou e apontou com o queixo para algo adiante, seus dedos agarrados à sua preciosa sacola, como se temesse que o inferno roubasse seu tesouro.

- Olhem para frente, - disse ele, a voz baixa e cautelosa.

Todos paramos. O caminho estava bloqueado por uma visão que era um pesadelo encarnado: uma massa grotesca de corpos entrelaçados. Eles se fundiam uns aos outros, criando algo que parecia vivo e morto ao mesmo tempo. Braços magros e pálidos saíam da massa como tentáculos, agarrando qualquer coisa que ousasse se aproximar. Rostos deformados emergiam da carne, gemendo, chorando, gritando. Alguns tentavam se arrastar para fora daquele inferno de carne, mas eram puxados de volta por mãos esqueléticas, presas em um ciclo sem fim de agonia.

- Isso... isso não pode ser real, - murmurou Gula, embora seus olhos brilhassem com algo mais do que medo. Ela lambeu os lábios, quase salivando. - Eles ainda estão vivos...

- Nem pense nisso, - interrompi, cortando o pensamento antes que ela pudesse terminá-lo. - Precisamos passar, não nos envolver.

Ira, impaciente como sempre, deu um soco em uma das rochas ao lado, fazendo ecoar um som surdo pelo corredor.

- E como diabos vamos passar? - gritou ela, apontando para a monstruosidade. - Vamos esperar que se movam sozinhos?

Naka se aproximou, a faca improvisada já em sua mão. Ela observava a massa como um predador avaliando sua presa, os olhos estreitos e calculistas.

- Se eles não saem, podemos obrigá-los, - disse ela, quase casualmente.

- Você tá falando sério? - Avareza perguntou, incredulidade em sua voz. - Isso vai nos atrasar!

- Ah, pelo amor de... - Gula revirou os olhos. - Alguém quer fazer alguma coisa ou vamos ficar aqui até virarmos parte disso também?

Antes que uma decisão fosse tomada, a massa se moveu. Os corpos entrelaçados começaram a se erguer, criando algo que parecia uma parede viva. Braços e pernas se esticavam, formando barreiras móveis. Rostos giravam para nos encarar, suas bocas distorcidas emitindo gemidos e gritos que arrepiavam até os nervos mais entorpecidos.

- Lutem ou corram! - gritei, segurando minha faca com força.

Sem outra opção, atacamos.

A luta foi um caos absoluto. Cada vez que cortávamos um braço ou uma perna, outro tomava seu lugar. Sangue negro jorrava de cada ferida, cobrindo nossas roupas e tornando o chão ainda mais escorregadio. O cheiro de carne podre e sangue coagulado era sufocante.

- Isso é inútil! - gritou Ira, esmagando um crânio com sua barra de ferro, apenas para ser agarrada por outra mão logo em seguida.

- Continue cortando! - retruquei, avançando contra a coisa.

No meio do tumulto, uma das criaturas me agarrou pelo braço. Seus dedos ossudos penetraram minha carne, e senti uma dor aguda, mas algo dentro de mim permanecia frio, quase indiferente. Girei a faca com força e enfiei-a no olho vazio da criatura, torcendo até que ela soltasse.

- Vocês acham que podem nos vencer assim? - Naka gritou, sua voz carregada de sarcasmo. Ela lutava com uma precisão quase elegante, sua faca cortando carne e ossos como se fosse uma dança macabra.

- Não vai acabar nunca! - berrou Ira, agora lutando com duas criaturas ao mesmo tempo.

- Melhor morrer tentando do que virar parte disso, - respondi, ofegante, minha faca deslizando pelo pescoço de uma das formas humanas que bloqueavam o caminho.

Finalmente, depois do que pareceram horas, conseguimos abrir caminho pela barreira. Ofegantes, cobertos de sangue e carne, atravessamos para o outro lado. Ninguém comemorou. Ninguém disse nada. O silêncio era pesado, quebrado apenas por nossa respiração irregular.

Mais à frente, encontramos um poço. O líquido que borbulhava dentro não era água. Era sangue, espesso e quente.

- Não acredito nisso, - murmurou Gula, seus olhos fixos no poço. - Até isso parece um banquete agora.

Naka não hesitou. Ela se ajoelhou ao lado do poço, mergulhando as mãos no líquido e bebendo como se fosse água fresca.

- Você é doente, - disse Avareza, dando um passo para trás.

- Doente? - Naka limpou a boca com o braço, seus olhos brilhando com um misto de sarcasmo e desafio. - Doente é quem acha que pode continuar aqui sem isso.

Minha garganta estava seca, cada respiração parecia um corte. Não gostava da ideia, mas minha sede falou mais alto. Ajoelhei-me ao lado de Naka, enchendo minhas mãos com o sangue quente e levando-o à boca. O gosto era metálico e amargo, mas trouxe alívio imediato.

- É isso que nos tornamos agora, não é? - perguntei a ela, mais para mim mesmo do que esperando uma resposta. - Animais, monstros... tanto faz.

Naka deu de ombros.

- Estamos vivos. É o que importa.

Avançamos novamente, e finalmente o círculo da Luxúria surgiu diante de nós. O ambiente era ainda mais perturbador. Homens e mulheres deformados por seus desejos caminhavam em grupos, suas peles brilhando como se cobertas de óleo. Cada movimento era lascivo, mas grotesco, como se fossem uma paródia de sensualidade.

No centro do círculo, duas figuras enormes nos encaravam. Homens de estatura colossal, suas lanças de metal negro brilhavam à luz sinistra que emanava do chão. Seus olhos ardiam com uma fúria que parecia ter atravessado eras.

- Bem-vindos ao círculo da Luxúria, mortais, - disse um deles, sua voz reverberando como um trovão. - Vocês não passarão. Este é o domínio de Sodoma e Gomorra, e nós guardamos seus portões.

Ira avançou um passo, sua barra de ferro em mãos, os olhos brilhando com a promessa de violência.

- Se acham que podem me deter, que tentem.

Naka sorriu de canto, girando sua faca nos dedos.

- Parece que o divertimento vai recomeçar.