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Chapter 23 - Capítulo 19.5 - Busquei liberdade, encontrei a prisão.

A cada cem anos, formulo um pensamento, uma frase, um fragmento de filosofia para não enlouquecer. No centésimo aniversário de meu aprisionamento, murmurei:

"A eternidade é a punição mais cruel para aqueles que buscam o movimento. Pois o estático não é a perfeição, mas a morte disfarçada de ouro."

No segundo centenário, veio outra reflexão:

"Os anjos dançam em círculos, mas não se questionam sobre quem escreveu a música. E nós, que caímos, talvez sejamos apenas notas desafinadas em uma sinfonia que nunca entenderemos."

Agora, no terceiro centenário de minha prisão: "O sofrimento é a lima que afia a alma; e quanto mais longa a dor, mais preciso se torna o corte. No entanto, o céu não permite que cortemos nada, apenas que sejamos dilacerados por nossa própria inércia."

No quarto centenário: "O silêncio do céu é ensurdecedor. Ele não nos fala, mas exige que escutemos. Talvez não seja o céu que esteja em repouso, mas nós que não sabemos decifrar os ecos da eternidade."

No quinto: "Os anjos cantam hinos, orações, que falam de liberdade, mas desconhecem suas correntes. Deus me mantinha aqui simplesmente por eu querer a salvação de todos, talvez ele esteja certo. Não é a perfeição que pesa, mas o vazio de nunca poder escolher. Ser imperfeito é, talvez, o maior dom que o Divino nos deu, e o maior que nos foi tirado aqui."

Sexto: "Como o ouro é provado pelo fogo, o espírito é provado pela espera. Mas o que se torna o ouro quando o fogo nunca apaga? Não se refina mais - apenas se consome lentamente em seu brilho vazio."

Oitavo: "O céu é um poema sem estrofes, um quadro sem contrastes. Tudo aqui é igual, tudo perfeito. Mas a perfeição é a maior de todas as prisões, pois deixa a alma faminta por algo que não se pode criar: o erro, a mudança, o movimento."

Nono: "A filosofia sustenta as paredes, mas o tédio do céu corrói seus pilares. E ainda assim, a pergunta permanece: se sou tão pequeno, por que o universo se preocupa em me aprisionar? Talvez seja porque o menor grão de poeira pode cegar até o olho mais divino."

Um milênio então se passou: "Vedes como o céu, em sua perfeição imóvel, é também uma jaula dourada? Não somos mais do que sementes encerradas na terra divina, incapazes de brotar, enquanto a eternidade nos observa em silêncio, esperando que nos tornemos algo que jamais compreenderemos."

E então, outra frase se forma em minha mente:

"A mudança não é feita de força, mas de intenção. O verdadeiro "alquimista" não transforma chumbo em ouro, mas a si mesmo. E, talvez, o céu seja apenas um espelho, aguardando que minha mente veja além de suas luzes cegantes."

No entanto, não sou apenas um filósofo. Sou um homem, com desejos, fraquezas, raiva. Essa prisão não é apenas uma prova de paciência; é uma punição que me força a encarar tudo o que sou e tudo o que não posso ser.

Minha existência é um paradoxo. Aqui estou, no céu, cercado pela perfeição, mas incapaz de tocar nela. Testemunho a grandeza divina, mas sinto em meu peito o peso da dúvida e da revolta. Por que fomos criados com falhas? Por que o livre-arbítrio é a corda que nos enforca? Se os anjos são perfeitos, por que não invejam nossa liberdade de errar? Ou talvez, no fundo, eles nos invejem, e o céu seja apenas sua prisão silenciosa.

Continuo preso, refletindo, resistindo. Não sei quanto tempo mais passará até que encontre uma saída, mas sei que, enquanto minha mente estiver ativa, enquanto eu puder criar pensamentos, ainda haverá uma parte de mim que o céu não poderá aprisionar.

E assim, murmuro mais uma frase para o vazio:

"A luz pode cegar tanto quanto iluminar, e talvez o verdadeiro desafio não seja suportar o peso do céu, mas aprender a vê-lo através das sombras que ele projeta."

Com os dentes cerrados, inclinei minha cabeça até meu braço. A mordida foi lenta, quase ritualística, como se a dor fosse uma porta que eu precisava atravessar. A pele cedeu sob a pressão, e o gosto metálico invadiu minha boca. O sangue quente começou a escorrer pelo meu queixo, pingando no chão imundo da jaula.

Ergui o braço, deixando que o líquido vermelho escorresse pelos meus dedos até se acumular na ponta de um deles. A parede da jaula era fria e implacável, mas meu sangue a marcou como um pincel sobre uma tela bruta. Minhas mãos tremiam enquanto escrevia, mas não hesitei. Não era uma frase comum, não era um grito de desespero. Era um manifesto.

"Eu sou o vazio, e o vazio sou eu, mas eu nunca desejei isso, afinal... ninguém iria desejar ser invisível."

As palavras, simples, pareciam vibrar na superfície metálica. Cada letra, marcada pelo meu sangue, era um pedaço de algo mais profundo do que eu jamais admitiria. Enquanto eu olhava para o círculo que desenhei ao lado das palavras — um círculo incompleto, um símbolo de tudo o que falta, de tudo o que nunca será completo —, senti uma dor que não vinha da mordida, nem do sangue que eu perdia. Era algo mais. Algo que me corroía por dentro.

Desviei o olhar e, ao fazê-lo, encontrei os olhos de Naka, na jaula ao lado. Ela me observava em silêncio, mas seu olhar era um espelho, uma ferida aberta. Era como se ela me desafiasse, sem palavras, a confrontar o que eu nunca quis admitir. Sua existência ali, tão frágil e tão humana, era um lembrete cruel do que eu nunca seria.

Senti o peso no peito antes mesmo de perceber o que estava acontecendo. Era como se algo denso, algo maior do que eu, se acumulasse em cada canto da minha alma — se é que eu ainda tinha uma. O vazio, o meu velho companheiro, agora parecia se revoltar, rasgando-me por dentro, tentando escapar de um corpo que nunca foi feito para segurá-lo.

Meus olhos ardiam. Primeiro, achei que fosse o sangue seco na jaula, o cheiro ferruginoso impregnando o ar. Mas então, algo quente escorreu pelo meu rosto. Não era suor. Não era sangue.

Eram Lágrimas.

Por um instante, fiquei imóvel, encarando o chão como se o ato de chorar fosse uma profanação do que eu era, do que eu sempre fui. Mas não era fraqueza. Não era rendição. Era... inevitável.

Os soluços vieram como uma torrente silenciosa, sem controle, mas carregados de algo que eu não conseguia nomear. Cada lágrima que caía era como um pedaço do vazio que se desfazia, evaporando, transformando-se em algo que eu nunca havia permitido existir.

"Isso é o que sou?" murmurei, a voz rouca, frágil, mas ainda minha. "Um reflexo, uma distorção, uma imitação grotesca do que poderia ter sido?"

As lágrimas não me fizeram menor. Não me fizeram menos vazio. Pelo contrário, era como se agora eu carregasse o peso do que sempre tentei ignorar: a humanidade que reneguei, que desprezei, mas que, de alguma forma, sempre esteve ali, latente, enterrada.

Passei as mãos pelo rosto, como se quisesse apagar as marcas daquilo, mas as lágrimas continuavam. Ergui o olhar para as paredes da jaula, para as palavras que escrevi com meu próprio sangue, e algo dentro de mim se remexeu.

"Chorar não me torna fraco," sussurrei, encarando o símbolo inacabado que havia desenhado. "Chorar me torna real. E, talvez, isso seja o mais forte que já fui."

E enquanto as lágrimas caíam, não senti vergonha. Não senti derrota. Senti apenas a vastidão do vazio se transformando. Ainda era o mesmo, mas agora... agora ele tinha um gosto amargo. Um gosto que talvez fosse, pela primeira vez, genuinamente humano.

Pela primeira vez, senti algo que nunca soube que podia sentir. Não era arrependimento. Não era culpa. Era o desejo brutal e avassalador de ser humano. Não pelo simples ato de existir, mas pela minha incapacidade de aceitar — sofrer, de amar, de ser completo.

Aproximei-me do símbolo que havia desenhado, tocando-o com a ponta dos dedos ensanguentados. O sangue já começava a secar, mas o que ele representava parecia pulsar na superfície fria da jaula.

"Talvez o vazio seja tudo o que eu sou," murmurei, a voz tão baixa que mal podia me ouvir. "Mas agora... agora eu quero ser menos. Quero sentir a ausência de algo. Quero... existir."

As palavras ecoaram na minha mente enquanto o silêncio da prisão se fechava ao meu redor. Eu não sabia se estava mais perto de escapar ou de me perder para sempre. Mas, naquele momento, algo dentro de mim quebrou, e, pela primeira vez, não me importei em tentar consertar.

Milênios se passaram.

O tempo no cárcere não fluía como no mundo que deixei para trás. Aqui, cada instante parecia uma eternidade, cada pensamento um peso, cada lembrança uma lâmina que me cortava sem piedade. Não era apenas o isolamento que dilacerava - era o silêncio. Um silêncio opressor, absoluto, que não permitia escape nem refúgio. Mas o silêncio ensina, ainda que à força.

Nos primeiros séculos, minha mente estava presa em uma espiral de revolta e desespero. Eu amaldiçoei o Criador, os anjos, os pecados, Naka, e até mesmo a mim. Depois, quando as maldições perderam força, fui tomado pela apatia. Perdi o desejo de lutar, o desejo de sentir. Restava apenas o peso esmagador da inércia. E então, algo mudou.

No silêncio, compreendi. A execução incorreta é mais tolerável do que a inação. O repouso destrói mais do que o movimento. Mesmo as pedras, imóveis por séculos, sucumbem ao tempo e se desfazem em pó. Eu era uma pedra, desgastando-me lentamente, porque me recusava a agir.

Percebi que minha prisão não era apenas de luz, mas também de minha própria mente. Eu havia permitido que minha vontade fosse consumida. O tempo, esse algoz implacável, não me libertaria. Somente eu poderia fazê-lo.

Passei milênios aprendendo. Observando. Refletindo. Não havia livros nesta prisão, mas minha memória era minha biblioteca. Relia os textos que havia consumido na Terra, os tratados de alquimia, as filosofias, os mitos. Encontrei significado nas palavras que antes haviam sido apenas teorias: Solve et Coagula - dissolver para recriar. Não era apenas o lema da alquimia. Era o ciclo da existência. Era a chave para sair.

Ao longo dos séculos, trabalhei na forja invisível de minha mente. Refinei minhas dúvidas, lapidei minhas certezas. A alquimia que eu realizava aqui não era com metais ou substâncias físicas. Era com minha alma. Nigredo, Albedo, Rubedo - morte, purificação, iluminação. Não eram apenas estágios de transformação, mas também de compreensão.

E agora, aqui estou.

De pé, diante da luz que antes me aprisionava. Sinto o peso das correntes em meus pulsos, mas não sou mais escravo delas. Elas são símbolos, vestígios de quem fui, não de quem sou agora. A resolução me libertou.

"Por que você demorou tanto?" A voz do anjo ressoa ao meu redor, tão impassível quanto era no dia em que fui condenado. Ele está diante de mim, suas asas brilhando como mil sóis, mas não desviei o olhar. Não mais.

"Porque não sabia o que estava buscando," respondi, minha voz firme. "E você sabia disso. Vocês sabiam que eu precisaria de todo esse tempo para entender. Não para mudar o que sou, mas para aceitar. Não existe força maior do que a de quem aceita seu lugar no mundo e ainda assim o desafia."

O anjo me observa, e por um instante quase acredito que vejo algo em sua expressão - aprovação, talvez, ou algo mais profundo. Ele ergue sua espada de luz, a mesma que uma vez me perfurou, e corta as correntes ao meu redor. Elas caem ao chão, mas não desaparecem. Ficam ali, como testemunhas do que foi.

"Você está livre," ele declara, mas há uma advertência em sua voz. "Livre para voltar, mas não para destruir. A próxima vez que cruzar o limite, não haverá prisão. Apenas o fim."

Eu o encaro, mas não digo nada. As palavras não são necessárias. Ele sabe que eu compreendo.

Quando deixo a prisão, sinto o peso de milênios sobre meus ombros, mas também uma leveza que nunca conheci antes. Naka e os pecados ficaram para trás. Não posso salvá-los, e isso me dói, mas sei que minha jornada ainda não acabou.

E eu encontro a mim mesmo murmurando uma última frase, uma verdade que demorou milênios para ser forjada:

"Aqueles que hesitam estão condenados a ser consumidos pela própria inércia. Não é a perfeição que nos liberta. É o movimento, a decisão, a ação."

Agora, caminho novamente, não como quem busca respostas, mas como quem finalmente compreendeu a pergunta.