Quanto mais eu voltava meu olhar para Deus, mais Ele, com infinita paciência, me observava, refletindo em mim a luz da Sua presença. Mas, à medida que me voltei para Dite, o próprio Lúcifer, o reflexo da queda e da rebeldia, parecia me encarar com a mesma intensidade, como se, em sua natureza de antítese, também buscasse compreender minha alma. Cada resposta que eu encontrava em minha busca parecia ser acompanhada por um número crescente de perguntas, um turbilhão de incertezas que se alimentavam das certezas momentâneas que eu acreditava possuir. Talvez, no fim das contas, o verdadeiro sentido da existência não resida na busca incessante por todas as respostas, por todo o conhecimento, mas sim na capacidade de ter algo, algo concreto, algo que nos ancore no caos. E eu, perdido na busca por tudo, me vi desprovido de qualquer coisa sólida. Não possuía mais nada, pois estava tão ocupado em procurar tudo, em me perder no infinito, que nada restava para mim além da solidão existencial. Mas, ao refletir sobre isso, me perguntei: quem, afinal, se importa com isso? O que realmente importa na solidão? Eu já não me via como moral ou imoral, pois o que seria a moral senão uma construção ilusória diante da vastidão do nada? Talvez eu tivesse apenas me afastado de mim mesmo, desapegado até dos meus próprios sentimentos, como se estes fossem nada mais do que ecos vazios em um abismo sem fundo...
O fogo continuava a consumir tudo ao redor, engolindo não só os corpos, mas a própria essência daquele círculo de Luxúria, transformando-o em um inferno ainda mais caótico e desfigurado. As chamas subiam em espiral, como se quisessem tocar o céu da perdição, mas nunca conseguiriam alcançar a luz. E naquele incêndio grotesco, algo estava sendo queimado, algo além de carne e óleo: a própria ilusão de poder que Belphegor e Asmodeus haviam construído com suas leis, com sua arrogância. Eles estavam sendo consumidos por sua própria desmesura, e, de alguma forma, isso parecia ainda mais grotesco do que qualquer tortura que eu pudesse ter imaginado.
Belphegor urrava, mas era um som abafado, uma tentativa desesperada de manter sua autoridade em meio ao caos que o cercava. Ele tentava controlar o fogo com movimentos lentos e preguiçosos, como se fosse algo que pudesse ser domado com vontade, mas não. O Inferno não obedece, ele consome. Não há controle no caos. Não há ordem em um mundo de pura destruição. Cada movimento de Belphegor só parecia alimentar ainda mais o inferno que ele mesmo havia ajudado a criar.
Asmodeus, por outro lado, estava visivelmente atordoado. O chicote, que antes representava seu domínio, agora estava apenas balançando em suas mãos, sem a força de antes. Ele se afastava das chamas, como se tentasse encontrar uma maneira de escapar do próprio inferno. Mas não havia escape. Não existia fuga para eles. E mesmo enquanto eles lutavam para se manter de pé, eu percebia que o que eu fizera não era apenas uma reação, mas uma reflexão daquilo que todos no Inferno ignoravam: o poder da humanidade. Não éramos apenas seres de carne e osso, mas de vontade, e com isso, a capacidade de destruir qualquer coisa, até o próprio Inferno.
Eu me levantei lentamente, meu corpo ainda se contorcendo em dor, mas não havia mais medo. O medo tinha sido queimado junto com a carne, com as correntes, com as ilusões. Não havia mais nada além de uma frieza absoluta, uma certeza de que, naquele momento, minha sobrevivência era um reflexo de algo muito mais profundo, muito mais imoral, talvez. Algo que não podia ser questionado, mas entendido. Eu não precisava de escrúpulos. Não precisava de limites. Eu sabia que o Inferno ainda me aguardava, mas naquele breve segundo, eu havia vencido, e essa vitória era o que eu desejava. Não mais uma luta contra demônios, mas contra a própria ideia de moralidade.
"Não percebo senão duas almas aprisionadas em sua própria soberba, transformando-se em parasitas de si mesmas, alimentando-se da ilusão de poder que cultivam", eu sussurrei, minha voz uma sombra do caos. "Não há limites para o que podemos destruir, mesmo que isso nos custe tudo."
Era a pura verdade. A humanidade, em sua essência mais crua, não tem medo de ir até o fim, de consumir tudo ao seu redor, até que não reste mais nada. Até que não reste nem a própria humanidade. E naquele momento, eu era a encarnação disso. Eu não estava em busca de redenção. Eu não estava em busca de justiça. Eu não estava em busca de nada que fosse limitado por um código moral. O que me guiava era algo muito mais profundo, muito mais insano: a ausência de todo e qualquer princípio que pudesse me deter.
As chamas não eram mais apenas fogo; elas eram uma representação do que os demônios temiam mais do que qualquer tortura ou julgamento: a simples e implacável certeza de que, no fim, até mesmo eles poderiam ser consumidos pela própria arrogância que os sustentava. As chamas lambiam o ar, rastejavam pelas paredes do círculo da Luxúria, consumindo tudo, até que a pele dos demônios se desfazia, e suas formas monstruosas começaram a se dissolver no caos.
Asmodeus e Belphegor estavam agora em desespero. Suas tentativas de controlar o fogo e as chamas que os cercavam eram fúteis. Seus corpos eram forçados a se contorcer, e sua fúria só alimentava a destruição que haviam causado. Eu os observava com um olhar vazio. Não havia mais prazer, nem satisfação. A vitória era simples, pura, inevitável. Era a consequência de suas próprias falhas.
Eles se arrastavam, seus corpos derretendo nas chamas, suas vozes transformadas em gritos desesperados, mas, ao mesmo tempo, sem esperança. Nenhum deles tinha a força para lutar contra a inevitabilidade. Tudo o que haviam criado, toda a sua força e poder, era inútil. Eles estavam sendo dilacerados pela destruição que haviam ignorado.
Com um movimento lento, eu me aproximei de Asmodeus, que, agora, estava caído no chão, a pele corroída pelas chamas. Ele olhou para mim, seus olhos cheios de ódio, mas também uma admissão de derrota. Ele não podia mais lutar.
"Você... não entende", ele sussurrou, a voz fraca. "Nós governamos tudo. O Inferno... não pode ser destruído. Você vai se arrepender."
Eu o observei, e então, com uma frieza impassível, respondi: "Nada é eterno, Asmodeus. Não até que você faça a maior das falhas: acreditar que a destruição nunca viria para você."
Ele tentou dizer algo mais, mas a chama que o envolvia o silenciou, e, como o fogo consumindo um pedaço de madeira, ele desapareceu. Não houve resistência. Não houve luta. Apenas o fim.
Eu então me voltei para Belphegor, que estava em um estado ainda mais deplorável, sua forma retorcida e dilacerada, queimando sem cessar. Ele não tinha mais poder para emitir qualquer palavra, seus olhos vazios estavam fixos em mim, e a sombra de sua derrota pairava no ar, espessa e pungente.
E então, como um último ato de ironia, eu falei: "Você sempre foi preguiçoso, Belphegor. Nunca soube quando agir. Agora, você se torna parte daquilo que foi sua criação. O Inferno não perdoa nem mesmo os que governam sobre ele."
Ele não respondeu. Não havia mais nada a dizer. Ele foi consumido, reduzido à cinzas que se espalharam pelas chamas que já tomavam o círculo. Nada restou de sua presença, nem a sua vaidade, nem seu poder. Apenas o fogo. O fogo que, agora, representava a destruição final, não de um círculo, mas de tudo o que haviam sido.
Eu fiquei ali por um momento, em silêncio. O inferno não era mais o mesmo. Ele já não era mais governado por essas duas figuras, mas por algo muito mais profundo: a verdade de que tudo o que foi construído, por mais forte que fosse, estava destinado a ruir. E, com isso, o ciclo se fechava. Não mais as suas leis. Não mais as suas crenças. Apenas a destruição implacável que, no fim, consome até os mais poderosos.
Eu dei um passo atrás, observando as chamas consumir o último vestígio deles. O Inferno era agora uma paisagem irreconhecível, distorcida pelaquilo que eles não podiam compreender: o fim.
A escuridão do Inferno ainda estava ali, mas havia algo de diferente no ar, como se algo fosse mais genuíno, mais real.
Foi então que ela apareceu.
A figura era como um raio de luz em um abismo. Sua presença era tão pura que parecia cortar a escuridão com sua essência. Eu não poderia descrever a perfeição dela com justiça, mas era como se ela emanasse um brilho suave, algo que contrastava com as sombras densas que preenchiam o lugar. Seus olhos, de um azul profundo, estavam fixos em mim, e sua expressão exibia uma calma serena, como se estivesse em um estado de completo entendimento, sem o peso da desesperança que a maioria dos outros seres carregava.
Luxúria, o pecado que havia sido libertado. Não uma sombra, mas uma figura de pura presença, não mais contida pela corrupção, mas representando o oposto: uma sensação de autenticidade, quase etérea. Ela se aproximou com leveza, seus passos não faziam som, como se flutuasse ao invés de caminhar.
Eu não disse nada a princípio. Ficamos em silêncio, mas aquele silêncio estava carregado de uma expectativa que era mais perceptível do que qualquer palavra. Então, ela falou, sua voz suave, mas firme, como a água corrente que modela a rocha com o tempo.
— Você destruiu tudo, não é? — perguntou, sem julgamento, mas com uma compreensão profunda do que acontecera. Ela sabia, como se tivesse visto o todo do que estava acontecendo, e de alguma forma, seus olhos refletiam o peso do que parecia ser uma infinidade de realidades ao mesmo tempo.
Eu não sabia o que responder. Não queria justificar nada. Não era o momento para isso. O que fizera não precisava de explicações. Mas eu disse, quase em um sussurro:
— Eu destrui porque é isso que somos. Não há redenção para os que não querem ver a verdade. Mas não se engane. O que destrui não era real, mas o que resta... isso é.
Luxúria me olhou com um olhar que era mais profundo do que qualquer outra coisa que eu tivesse experimentado ali, mais do que os próprios pecados ou os demônios. Ela parecia não me ver apenas como uma presença no momento, mas como se visse toda a minha existência, como se soubesse de cada passo, cada desejo, cada falha que eu tinha dentro de mim.
— Você não é o que pensam que você é — disse ela calmamente, sua voz doce, mas com uma sabedoria que parecia abarcar milênios de compreensão. — Não é nem mesmo o que você pensa que é.
Eu fiquei em silêncio, porque ela estava certa. Eu não sabia o que era. Cada passo que eu dava, cada escolha que tomava, parecia apenas me afastar mais daquilo que eu esperava ser. Ou seria isso exatamente o que eu buscava? Eu não sabia mais. Não sabia nada.
Ela se ajoelhou diante de mim, e então, pela primeira vez, olhou para os outros pecados que estavam caídos ao nosso redor. Cada um deles, que antes parecia um ser tão imponente, agora estava reduzido àquilo que eram: sombras vazias de poder. Eles estavam inconscientes, espalhados no chão, apenas ecos de suas próprias naturezas. Eu sabia que eles não eram nada sem sua existência corrompida, nada sem sua conexão com o próprio Inferno.
Luxúria se levantou novamente, com a graça que não parecia caber naquele lugar, e com um gesto suave, ela se abaixou e colocou suas mãos sob os pecados caídos. Seus dedos tocaram as sombras como se fossem nuvens, e, como se fosse uma dança, as sombras começaram a se aglutinar, a se condensar e a se erguer, flutuando até suas costas.
— Eles vão comigo — disse ela, e sua voz estava tingida de uma compreensão tranquila. — Não porque mereçam, mas porque eu os levo. Eles foram deixados para trás, mas isso não os torna irremediáveis. Eles precisam entender o que significa ser levado por alguém que ainda tem algo de puro, algo que eles não podem alcançar.
Eu assisti, sem palavras. Apenas me agachei e segurei Naka em meu colo. A figura de Luxúria estava agora carregando todos os pecados nas costas como se fossem fardos invisíveis, mas seus corpos eram sombras, e o contraste de sua presença com a delas era evidente, uma ausência de substância que não podia competir com a plenitude de sua essência.
Quando ela olhou para mim novamente, houve uma leveza em seu olhar, como se ela soubesse que o caminho que se abria não era só dela, mas de todos que ainda pudessem seguir. E então, com uma serenidade quase distante, ela disse:
— Agora, seu fardo é outro. E eu... — ela fez uma pausa, como se estivesse ponderando as palavras, antes de continuar: — Eu não sou o que você pensou ser. Não sou a fantasia que você acreditava existir. Mas sou parte do que você precisa entender.
Com um movimento gracioso, ela se afastou. Sua presença desapareceu na escuridão como uma chama se extinguindo, mas sua luz parecia deixar um rastro de purificação, como se ela estivesse levando as sombras, a podridão de todo o Inferno, para um lugar onde eles finalmente teriam o que mereciam.
Eu então olhei para Naka, que ainda estava em meu colo, e sabia que havia algo além disso tudo. Algo que não se resumia a vingança ou redenção. O que quer que eu fosse, estava além das sombras que me rodeavam. E, por um breve instante, tudo parecia em equilíbrio.