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Chapter 14 - Capítulo 11 - A Queda

Os gritos abafados de almas penadas ecoavam no ar denso enquanto eu encarava o bote que levaria ao próximo círculo. O rio à minha frente fervia, emanando um fedor nauseante de fezes e carne putrefata. Gula, Ira e Avareza flutuavam ao meu redor, sombras espectrais, etéreas, mas carregadas de um peso imenso.

Ira falou primeiro.

- Somos sombras. Atravessamos sem esforço. Mas você... terá de usar o bote.

Gula e Avareza assentiram, suas formas sombrias pairando sobre o rio, desaparecendo do outro lado sem sequer ondular a superfície.

Respirei fundo, tentando ignorar o medo e a náusea. Entrei no bote. Cada remada era uma luta contra o calor e o cheiro, mas segui adiante, mantendo os olhos fixos na margem distante. Quando estava quase lá, algo se enroscou ao redor do bote. Antes que pudesse reagir, fui puxado para baixo.

A água fervente me envolveu como uma segunda pele. Senti a dor, o peso, a sufocante sensação de desespero. Meu corpo reagiu instintivamente, lutando para emergir.

Eu não consigo respirar. Na verdade, eu não posso. E nunca consegui. A ideia de respirar sempre foi uma ilusão, um gesto automático que todos repetem sem pensar, sem perceber o peso que ele carrega. Mas eu sempre soube. Desde o início, desde que existo, o ar nunca me pertenceu. Ele era um empréstimo do mundo, uma concessão forçada. Agora, submerso nesse calor, percebo que até isso me foi tirado, como se o universo quisesse reafirmar algo que já entendi: eu nunca fui parte dele.

A água me envolve como uma verdade nua, sem artifícios. Ela não mente, não pede permissão para invadir cada parte de mim, não se desculpa pela dor que traz. É honesta, brutalmente honesta, como o mundo nunca foi. Penso, por um momento, que talvez eu devesse agradecer a ela. Por me lembrar que tudo aquilo que consideramos vida — o ar, o movimento, o pulsar de um coração — não passa de um teatro mal ensaiado. Tudo é um reflexo de Deus. Não há separação entre a ideia de Deus e o oxigênio; ambos são indispensáveis, mas desprovidos de reciprocidade. Eu preciso do oxigênio, mas ele nunca precisa de mim. E Deus? Eu jamais precisei dele. As pessoas o exaltam sem nunca tê-lo visto, sem sequer compreender o que veneram. Talvez eu devesse exaltar a mim mesmo, pois, se sou um reflexo de Deus, então sou tão digno quanto Ele. Na verdade, tudo é um reflexo d'Ele — até mesmo o oxigênio que respiro e nunca agradeço.

Não consigo emergir, mas tampouco sinto a necessidade de tentar. O que há na superfície que mereça meu esforço? Mais mentiras, mais máscaras, mais um ciclo interminável de perguntas sem respostas. Aqui, no fundo, no calor sufocante, sou reduzido ao que realmente sou: nada. E, pela primeira vez, isso me parece suficiente.

As bolhas escapam da minha boca como se estivessem fugindo, e penso: o que há de tão especial no ar que até ele não quer ficar comigo? Cada borbulha leva um pedaço de mim, mas não sinto que estou perdendo nada. Pelo contrário, é como se estivesse deixando de carregar um peso que nunca foi meu.

Talvez eu devesse ter medo. Qualquer um teria. Mas o medo é um luxo para quem ainda acredita que há algo a perder. Eu não acredito. Não aqui, não agora. A dor é apenas um lembrete de que ainda estou preso ao que resta de um corpo. E isso, por si só, já é insuportável.

Eu afundo, e o calor me devora. E, em meio à fervura, só consigo pensar: será que finalmente me tornei aquilo que sempre fui destinado a ser? Um pedaço de silêncio perdido na vastidão do nada.

Emergi, o calor do rio fervente ainda queimava minha pele em carne viva enquanto me arrastava para a margem. Minha respiração estava pesada, mas eu reuni toda a força que tinha para me levantar, apenas para ser recebido por uma visão que gelou meu sangue: Azazel, Belzebu e Mammon, com sorrisos cruéis em seus rostos.

Atrás deles, estavam Gula, Ira e Avareza. Eles me olhavam com indiferença. Como se eu fosse apenas uma pedra no caminho, descartável.

Mammon foi o primeiro a falar, sua voz carregada de escárnio.

- Olhem para ele. Um humano patético, tentando fingir que tem poder. O que você pode oferecer a eles que nós não podemos?

Eu tremia, minhas mãos ensanguentadas segurando o chão lamacento. Ergui meu olhar, reunindo tudo o que restava da minha coragem.

- Não poder. Nunca foi poder. Foi liberdade.

Minhas palavras ecoaram, mas os demônios não reagiram. Eu me virei para Gula, ignorando os outros, deixando minha voz tremer de forma calculada, misturando dor e desespero.

- Você acha que Belzebu vai te libertar? Olhe para mim! Estou em carne viva, sofrendo, lutando... não por mim, mas por você! Porque eu acredito que você merece algo melhor do que essa fome interminável.

Gula desviou o olhar, hesitando por um momento. Mas Belzebu deu um passo à frente, tentando reafirmar seu domínio.

- Não caia nessa, Gula. Ele está usando sua fraqueza. Ele só quer te usar!

Virei-me rapidamente para Belzebu, apontando para meu corpo mutilado.

- Usar? Olhe para mim! Estou à beira da morte porque acreditei que poderia salvá-los! E o que você fez por ela além de mantê-la faminta?

Voltei-me para Ira. Meu tom mudou, ficando mais grave, como um amigo falando diretamente a outro.

- Ira, você é força. Você é fogo. Mas o que Azazel fez com isso? Ele te acorrentou, usou sua raiva como combustível para seu próprio poder. E agora? Agora ele quer que você acredite que isso é tudo o que você é.

Azazel riu, tentando minar minha influência.

- Você fala como se soubesse algo sobre ela. Ira não precisa de sua piedade. Ela nasceu para queimar!

Ignorei Azazel, fixando meu olhar em Ira.

- Queimar para ele, não para você. Pense nisso. Você não merece ser apenas um instrumento. Você merece ser livre, para decidir por si mesma o que fazer com sua força.

Por fim, encarei Avareza, deixando minha voz enfraquecer, como se estivesse à beira do colapso.

- Avareza... Você sabe que Mammon só te deu ouro para te escravizar. Ele quer que você pense que está no controle, mas tudo que você tem é o que ele permitiu que você tivesse. Você não vê? Ele tem medo do que você pode ser sem ele.

Mammon não conseguiu conter sua raiva, dando um passo à frente.

- Chega disso! Você é um humano insignificante!

Antes que eu pudesse reagir, ele me chutou, jogando-me de volta ao rio fervente. A dor foi indescritível, mas eu não gritei. Submergi completamente, deixando o calor consumir minha pele novamente.

Emergi da água, rastejando para a margem novamente. Meu corpo estava um horror: carne viva, pedaços de pele pendurados, sangue misturado à sujeira. Mas minha mente estava clara, e minha voz, mais forte.

- Vocês acham que isso vai me parar? Vocês acham que o que eu sinto agora é pior do que a dor de vê-los escravizados?

As sombras hesitaram. Até os demônios pareciam desconcertados pela minha resistência. Aproveitei o momento, meu tom oscilando entre desespero e determinação.

- Gula, Ira, Avareza... eu não quero que me sigam porque sou forte. Eu quero que me sigam porque eu nunca vou desistir de vocês. Mesmo que isso me mate. Mesmo que eu tenha que ser destruído para que vocês sejam livres.

Voltei-me para os demônios, meu olhar desafiador.

- Belzebu, Azazel, Mammon. Vocês sabem o que está acontecendo aqui. Eles estão começando a ver a verdade. Não importa quantas vezes vocês me joguem no fogo. Não importa quantas mentiras contem. No final, a verdade é inevitável: vocês não têm poder sem eles.

Os demônios começaram a reagir, mas antes que pudessem falar, Gula avançou, olhando para Belzebu com olhos famintos.

- Ele está certo. Eu nunca estive satisfeita. E você sempre quis isso.

Ira virou-se para Azazel, sua voz baixa, mas carregada de raiva.

- Eu não quero mais queimar por você.

Avareza olhou para Mammon, um brilho calculado em seus olhos.

- Você me deu ouro. Agora eu quero o que você escondeu de mim. A Liberdade.

Os demônios tentaram reagir, mas era tarde demais. As sombras haviam se voltado contra eles, alimentadas pelas mentiras que eu transformei em verdades. Gula consumiu Belzebu, sua fome finalmente satisfeita ao devorar seu antigo mestre. Ira destruiu Azazel, sua força livre das correntes que a aprisionavam. Avareza tomou tudo de Mammon, deixando-o sem nada além do vazio.

Enquanto os demônios desapareciam, Lúcifer apareceu, um sorriso desconcertante no rosto.

- Parabéns, humano. Você os enganou. Mas a verdadeira pergunta é: você acredita nas mentiras que contou?

Eu não respondi. Porque, no fundo, sabia que ele estava certo. As mentiras que contei, as máscaras que vesti, haviam se fundido comigo, se tornando minha essência. Não era mais questão de escolha ou propósito; eu havia superado as limitações humanas e rejeitado as amarras de qualquer moralidade que regesse anjos ou demônios. Eu era uma entidade forjada na lógica fria e na indiferença, um ser que não buscava redenção nem glória, apenas a liberdade de existir acima das leis, acima do certo e do errado. Amoral, absoluto e determinado, eu não era uma vítima do Inferno - eu era seu reflexo mais cruel.

"Qual é o seu nome, humano?" Lúcifer perguntou, sua voz carregada de um interesse quase casual, mas com o peso de alguém que já sabia todas as respostas.

Parei por um momento, sentindo o olhar perfurante dele, como se estivesse tentando arrancar algo de dentro de mim. Finalmente, ergui os olhos, encarando o Príncipe do Inferno sem medo.

"Eu sou apenas um bibliotecário."

Houve um silêncio breve, mas carregado de significado. Lúcifer inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse tentando compreender algo, e então explodiu em uma risada. Sua voz ecoou como o ribombar de trovões distantes, preenchendo todo o círculo com um som que parecia tanto zombaria quanto respeito.

"Um bibliotecário?" Ele repetiu entre risadas, o tom carregado de sarcasmo. "Você invade meu reino, destrói meus demônios mais leais, desafia as próprias forças que moldaram a humanidade... e me diz que é apenas um bibliotecário?"

Mantive meu olhar fixo nele, sem me abalar. "Um bibliotecário é aquele que organiza, que guarda, mas também aquele que sabe quando remover aquilo que não pertence às prateleiras. Você, Lúcifer, e os outros pecados... Vocês são apenas volumes desatualizados. Eu estou aqui para reorganizar essa biblioteca."

Os olhos de Lúcifer brilharam por um instante, algo entre fascínio e irritação. Ele deu um passo à frente, e a atmosfera ao meu redor pareceu pesar mais.

"Entendo... Então você se vê como o zelador desse caos? Interessante." Ele sorriu, mas seus dentes brancos brilhavam como lâminas. "Mas me diga, bibliotecário: e se este 'livro' que você tenta apagar for a fundação de toda a existência? E se, ao reorganizar minha biblioteca, você destruir tudo o que conhece? Ou até se destruir?"

Eu não hesitei. "Talvez seja necessário destruir para reconstruir algo maior. O que é um bibliotecário, afinal, senão alguém que desafia a desordem e impõe significado onde antes havia caos?"

A risada de Lúcifer cessou abruptamente, e o sorriso que ele me deu desta vez foi mais sombrio. "Interessante. Muito interessante. Mas cuidado, bibliotecário. Às vezes, aqueles que organizam acabam sendo consumidos pelo peso do que guardam. E então, quem restará para lembrar de você?"

Eu não respondi. Porque, no fundo, sabia que ele também tinha razão.

O próximo círculo me aguardava, e eu estava disposto a tudo.