Gula caiu de joelhos, o peso de sua própria essência esmagando-o. Aquilo aparentava ser comum acontecer, suas bocas, que antes estavam famintas, agora estavam em silêncio absoluto.
"Humanos..." comecei, caminhando em círculos ao redor de Gula, que permanecia de joelhos, os olhos baixos, como se não pudesse mais me encarar. "São tão pateticamente iguais a você. Sempre famintos, sempre querendo mais. Mais comida, mais poder, mais amor, mais significado. Eles chamam isso de ambição, como se essa palavra justificasse o abismo dentro deles."
Gula tentou levantar a cabeça, mas o peso de sua própria essência parecia mantê-lo preso ao chão.
"E sabem o que é mais irônico?" continuei, minha voz mais fria agora. "Eles acreditam que essa fome os torna especiais. Que é um traço divino, uma centelha da criação. Mas é uma mentira. Deus — se é que ele existe — criou um ciclo perfeito, mas falhou miseravelmente naqueles que deviam governá-lo. Humanos são uma falha grotesca, uma criatura incapaz de equilíbrio. Eles devoram o mundo ao redor e depois clamam por redenção. Vocês não veem? A fome nunca foi só física. É espiritual, moral, existencial."
Gula levantou os olhos para mim, como se quisesse responder, mas não o fizera. Eu ri, um som seco e amargo que reverberou no silêncio.
"E sabe o que é pior? Eles fazem isso em nome d'Ele. 'Deus me fez assim', eles dizem, como se essa desculpa barata pudesse justificar a destruição. Como se a fome, a ganância, o desejo insaciável fossem parte de um plano maior. Mas eu lhes digo — se Deus é o arquiteto disso tudo, ele é tão culpado quanto os famintos que rastejam por aí."
Eu me abaixei, aproximando meu rosto de Gula. "E você, Gula, o que acha disso? Você, que devora, que consome sem nunca se saciar. Acredita mesmo que sua fome é uma maldição, ou será que é um reflexo daquele que o criou? Se Deus existe, talvez ele esteja faminto também. Faminto por adoração, por obediência cega. Não seria Ele o maior dos glutões?"
As bocas de Gula tremeram, mas nenhum som saiu. Eu me ergui novamente, olhando para o horizonte vazio ao redor. "No fim, tudo isso — você, os humanos, até mesmo Deus — é apenas fome. E fome não merece adoração. Só merece silêncio."
Sabia que a verdadeira batalha nunca fora contra a fome. A luta sempre fora contra a arrogância, a crença de Gula de que sua insaciabilidade o tornava superior. Agora, ele se via refém dessa mesma fome, aprisionado na teia da dúvida que eu havia criado. Ele não percebeu a armadilha até ser tarde demais.
Ele levantou a cabeça, e seus olhos, antes ardendo de fúria, agora estavam imersos em um brilho de agonia. "Eu não posso..." Ele murmurou, como se as palavras saíssem com dificuldade, engasgando-se na própria garganta.
"Não pode o quê?" Perguntei, minha voz suave. "Não pode resistir ao impossível? Ou será que não pode mais enfrentar o que sempre temeu? A sua própria impotência?"
O olhar de Gula vacilou. Ele queria resistir, mas algo dentro dele já havia quebrado. Seu maior medo não era a fome. Era o medo de que nunca seria capaz de controlar sua natureza. Ele estava preso em um ciclo que o escravizava. E agora, ele começava a entender isso.
"Eu não posso viver sem ela..." Gula sussurrou, a voz quebrada pela frustração. Ele se levantou, suas mãos tremendo, mas não de raiva. Era medo. Medo de perder a única coisa que lhe dava uma falsa sensação de controle.
"Você não precisa viver sem ela", eu disse, minha voz ecoando como uma promessa. "Mas precisa entender que nunca terá paz enquanto se entregar a ela sem limites. A verdadeira liberdade vem de escolher não ser governado por sua própria natureza."
Ele parecia absorver minhas palavras, suas bocas começando a se fechar, uma a uma, como se sua fome estivesse sendo preenchida por algo que ele não compreendia. Ele queria acreditar, mas não sabia mais o que queria. Estava perdido, agora prisioneiro de sua própria incerteza.
"Você pode ser mais do que isso, Gula", continuei, dando um passo para ele. "A verdadeira saciedade não vem de devorar sem fim, mas de escolher o que alimentar dentro de si. Não se trata de negar o que você é, mas de aprender a não ser escravo disso."
Ele ficou em silêncio, suas bocas fechadas e sua expressão revelando um conflito interno. Por um longo tempo, ele ficou ali, preso em sua angústia. Algo estava mudando dentro dele, mas a resposta ainda não estava clara.
Esse vazio, esse espaço em sua essência que ele tentava desesperadamente preencher, era a chave. Ele, que passou a existência consumindo sem parar, começava a perceber que a verdadeira satisfação não estava em consumir, mas em aceitar a falta - a ausência que, ao contrário do que pensava, o tornava humano. O pecado não era apenas a busca desenfreada por prazer, mas a incapacidade de encontrar um propósito em um ciclo interminável.
"Eu... eu preciso pensar", Gula disse, sua voz agora mais fraca.
"Claro", respondi, minha expressão impassível. "Pense, Gula. Mas saiba que a verdadeira liberdade vem de dentro. Não do que você consome, mas do que você decide deixar de lado."
Semear a dúvida é o mesmo que fazer alguém a agarra-la.
Deixei-o ali, mergulhado em seu próprio tormento, enquanto o Inferno ao nosso redor permanecia imutável. Ele estava em sua própria confusão, e eu sabia que essa era a única maneira de vencê-lo. Gula, aquele que passara a eternidade buscando satisfação através do consumo, agora começava a enfrentar a verdade que eu lhe entregara: a verdadeira liberdade não reside em seguir cegamente o desejo, mas em ser capaz de controlá-lo.
Gula ainda precisava de tempo. No Inferno, tudo leva tempo. Cada decisão, cada escolha, tem um custo, e Gula precisaria pagar o seu. Mas a dúvida que eu criara era mais perigosa do que qualquer tentação. Ela iria corroer sua essência até que ele fosse forçado a fazer a escolha.
Eu sabia que minha missão estava longe de terminar, mas esta batalha estava quase ganha. Quando ele finalmente se confrontasse com a verdade que eu lhe revelei, o que restasse de sua essência seria muito mais fácil de manipular.
Eu continuaria a caminhar pelas profundezas do Inferno, guiando-o como um mestre de marionetes até o momento em que ele não pudesse mais fugir da escolha que eu havia imposto. Gula estava perdido. E agora, ele só precisava se convencer disso.
Satisfeito, dei mais um passo em direção ao meu objetivo. Cada movimento meu o aproximava de sua queda, e cada pecado que ele enfrentava tornava minha vitória mais certa.
No final, o que restaria de Gula seria uma sombra do que ele fora. E essa sombra, agora frágil, eu poderia facilmente manipular a meu favor.