Chereads / Geena (Português) / Chapter 9 - Capítulo 6 - Dançando Com a Fúria

Chapter 9 - Capítulo 6 - Dançando Com a Fúria

O círculo da Ira era uma fornalha de caos. Não um fogo literal, mas um calor opressivo que emergia da violência incessante. Gritos se transformavam em ecos, que batiam nas paredes deformadas como punhos invisíveis. A terra parecia pulsar sob meus pés, movida pela intensidade da raiva. Não havia descanso aqui. Nenhum momento de pausa, apenas uma energia desenfreada que consumia a todos - e a si mesma.

As almas ao meu redor se digladiavam, seus olhos queimando com uma fúria que não tinha rosto nem causa. Apenas existia.

E lá estava Gula, sentado em uma rocha grotescamente moldada por restos humanos, mastigando lentamente algo que não consegui identificar. Ele me observava com desinteresse, como se minha presença fosse apenas mais um movimento insignificante dentro do caos que ele ignorava.

"É irônico," comecei, olhando para as almas ao nosso redor. "Aqui, o ódio é rei, mas não tem trono. É puro, sem objetivo, sem barreiras. Só destrói. É por isso que este lugar existe. Um reflexo perfeito do que somos."

Gula olhou para mim de soslaio, mastigando ainda mais devagar, e falou com uma voz arrastada, quase preguiçosa: "Eu não me importo com eles. Nem com este lugar. Não há sabor na ira, só aspereza. Mas você... você gosta de falar, não é? Gosta de ver o vazio e dar nome a ele. O que você acha que está provando aqui, mortal?"

Eu ri, um som seco que quase se perdeu no caos ao nosso redor. "Provar? Não. Eu não estou aqui para provar nada. Estou aqui porque o vazio não precisa de razões. Não busca sentido, nem direção. Ele só existe."

"Então por que não se joga nessas chamas?" Gula questionou, apontando preguiçosamente para uma das almas que se despedaçava contra uma rocha antes de renascer em agonia. "Se você é o vazio, se nada importa, por que não se dissolve como eles? Talvez você esteja fingindo mais do que imagina."

"Eu não finjo," respondi, olhando diretamente para ele. "O vazio não precisa se dissolver porque ele já é a dissolução. Eu não sou como essas almas. Elas gritam, quebram e renascem porque acreditam que a raiva é tudo o que resta para justificar sua existência. Mas eu? Eu não preciso justificar nada."

Gula mastigou por um longo momento antes de responder, como se minhas palavras fossem uma refeição indigesta. "Você fala do vazio como se fosse liberdade. Mas me diga: se o vazio é tudo o que você diz, por que você ainda está aqui, conversando comigo? Por que ainda se prende a palavras, a ideias? Não será o vazio mais puro o silêncio absoluto?"

Eu sorri, sentindo o calor aumentar ao meu redor. "O silêncio absoluto é o vazio perfeito, sim. Mas você está errado em pensar que isso me nega. Porque o vazio também fala. Ele murmura no espaço entre as palavras, no intervalo entre os gritos, no som da mastigação que nunca termina. Eu sou esse som, Gula. E você, mesmo com toda a sua fome, nunca poderá consumi-lo."

Ele inclinou a cabeça, finalmente interessado, mas ainda apático. "E o que você faria, então, com este círculo? O que você vê aqui, que eu deveria devorar e não consigo?"

Eu olhei para as almas novamente, para os gritos e o ódio que nunca terminavam. "Eu vejo a humanidade como ela é, sem máscaras. Aqui, não há mentiras, não há justificativas. Apenas a verdade: que somos criaturas pequenas, frágeis, que se alimentam da própria dor porque não sabem o que fazer com o silêncio."

"E você, mortal?" Gula perguntou, com um brilho quase imperceptível nos olhos. "O que você faz com o silêncio?"

"Eu o deixo existir," respondi, firme. "Porque o silêncio é tudo o que resta quando até mesmo o ódio se cansa."

Gula não respondeu. Apenas mastigou, devagar, e o caos ao nosso redor continuou como se nossa conversa nunca tivesse acontecido.

Avancei pelo terreno irregular, meus olhos fixos no coração desse tumulto. Não era a paisagem que me impressionava, mas a ferocidade daqueles que habitavam o círculo. Eles se atacavam com um ódio insaciável, suas formas distorcidas pela raiva que os definia. Homens e mulheres, agora caricaturas grotescas de si mesmos, engalfinhavam-se em batalhas que não tinham propósito ou fim. Sangue escorria de feridas abertas, mas eles continuavam, movidos por algo maior do que a dor.

Parei diante de um vale onde a fúria parecia ter atingido seu ápice. Ali estava ele. O governante deste círculo. Não um ser humano ou demônio, mas uma manifestação viva de ira, um monólito pulsante de destruição. Sua forma era instável, uma mistura de carne e fogo que parecia mudar a cada instante. Seus olhos eram buracos negros, sugando a luz e emanando uma presença esmagadora.

Ele não disse nada a princípio, mas sua presença era um grito em si. O chão rachava sob seus pés, o ar vibrava com a força de sua raiva. Ele era o círculo encarnado.

- Quem ousa pisar aqui? - Sua voz não era sombria, mas quente e cortante, como ferro em brasa sendo moldado. - Um mortal? Você é tolo ou apenas cansado de viver?

Não respondi imediatamente. Em vez disso, observei-o. Não havia medo em mim, nem raiva. Apenas um vazio. Ele era uma força bruta, mas já vi forças assim desmoronarem sob seu próprio peso.

- E se for os dois? - respondi, minha voz quase casual. - Talvez eu seja tolo. Ou talvez eu apenas entenda algo que você não consegue.

Ele riu, um som oco e metálico. Um terremoto acompanhou a gargalhada, como se o inferno estivesse rindo junto.

- Entender? - rugiu ele. - Não há nada para entender. A ira é a força mais pura. Ela consome tudo e todos. Inclusive você.

- É exatamente isso que a torna patética. - Dei um passo à frente, meu tom tão calmo que parecia deslocado ali. - Algo que consome sem criar. Que se alimenta sem propósito. A ira é só uma chama, e chamas sempre se apagam.

Ele avançou, rápido como uma tempestade. Seu punho, envolto em fogo, desceu sobre mim com força suficiente para esmagar um exército. Mas eu já não estava lá. Meu corpo havia se movido antes que ele agisse. Não por reflexo, mas por antecipação. A raiva é previsível. Ela grita seus movimentos antes de agir.

- Você corre? - Ele girou para mim, sua voz ecoando com desprezo. - É assim que enfrenta a força?

- Não estou correndo. Só não vou desperdiçar esforço desnecessário. - Dei outro passo, mais próximo agora. - Sua força é impressionante, mas você já percebeu que não pode me tocar.

A verdade o atingiu mais fundo do que qualquer golpe. Ele hesitou por um instante, e foi nesse instante que eu vi. O cansaço. A fúria é poderosa, mas exaure quem a carrega. Ele podia rugir e se debater, mas cada movimento custava mais a ele do que a mim.

- Você acha que palavras podem me derrotar? - rugiu, sua forma oscilando entre humano e besta. - A Ira não precisa de lógica, apenas de força!

- E onde está a sua força agora? - repliquei, frio. - Olhe para si mesmo. Você já está se fragmentando. Está tão consumido pela raiva que nem percebe que está morrendo por dentro.

Ele avançou novamente, desta vez com mais desespero do que raiva. Seus golpes eram caóticos, brutais, mas desprovidos de precisão. Eu me movia ao redor dele como um vulto, sempre fora de alcance, estava dançando entre seus golpes, enquanto ele gastava tudo o que tinha.

No final, ele parou. Seu corpo, outrora imenso, agora parecia menor, mais instável. O fogo que o envolvia diminuía. Seus olhos ainda ardiam, mas não com ódio. Com medo.

- O que você fez comigo? - Ele mal conseguia falar, suas palavras entrecortadas por suspiros pesados.

- Nada. - Fitei-o nos olhos. - Você fez isso consigo mesmo. A Ira é uma chama, e toda chama se extingue quando não tem mais o que queimar.

Ele caiu de joelhos, seu corpo se desintegrando em brasas. Por um momento, pensei que ele diria algo. Um último grito, talvez. Mas não. A ira não tem palavras no final. Apenas silêncio.

Quando ele desapareceu , o círculo pareceu mudar. A violência ao redor diminuiu, como se a ausência do monstro tivesse roubado sua energia. Eu permaneci ali por um momento, observando o vazio onde ele estivera.

A besta, antes um furor incontrolável, agora se desfez diante de minha paciência. A fúria da Ira era como um fogo que, sem combustível, se extinguia lentamente, deixando apenas a cinza e o cheiro de destruição no ar. Mas não era o fim da dor. No rescaldo da batalha, outros ecos, mais profundos e mais sombrios, começaram a emergir.

Ao meu lado, Gula estava ali, observando a cena com um silêncio que só ela sabia carregar. Ela não era uma sombra mais distante, uma mera fome impessoal. Gula estava ali, agora em uma forma mais tangível, uma figura que refletia sua própria tragédia com uma intensidade que poderia ser tocada. Seus olhos estavam vazios, como se soubesse que nada mais a saciaria. Ela não estava em busca de comida, mas de algo muito mais profundo - o preenchimento de um vazio que ela jamais encontraria.

"A raiva, no fim, se apaga", disse Gula com uma voz fria, quase mecânica, quebrada pela experiência. "Mas a fome... a fome nunca se extingue. Ela só cresce. Ela se transforma. E sempre pede mais."

Eu a olhei. Era difícil ver além da figura de uma mulher consumida por algo tão impessoal como a fome. Mas, ali, diante de mim, ela estava compartilhando uma verdade amarga. A fome de Gula não era simplesmente o desejo de comer, de saciar uma necessidade física. Era a fome de preencher um vazio que não poderia ser preenchido. Um vazio gerado por anos de busca e desesperança.

"Eu não sou apenas comida, você sabe", ela continuou, cada palavra carregada com a dor de sua própria condenação. "Eu sou o reflexo de um vazio que ninguém pode ver. Eu sou o desejo insaciável de ser algo mais, de preencher algo que não tem nome, uma necessidade que nunca acaba."

Eu entendi. O Inferno que ela habitava não era apenas fogo e fome. Era um lugar onde a dor de não ser suficiente, de nunca ser preenchido, se manifestava em uma busca incessante por saciar algo que nem ela sabia o que era. Gula não era um monstro, ela era a representação de uma tragédia pessoal. Ela foi moldada por uma vida em que o excesso se tornou a única coisa que a definia. Mas esse excesso nunca trouxe a satisfação que ela procurava.

"Eu tentei", ela disse, a voz quebrando. "Tentei de tudo, cada vez mais. Comi, bebi, dancei... mas tudo isso só me tornou mais vazia. Eu nunca soube o que estava procurando. Eu só sabia que precisava mais. E agora... agora eu sou apenas essa sombra. Essa fome que nunca será saciada."

Ela abaixou a cabeça, e o silêncio que se seguiu era mais pesado do que qualquer palavra que eu pudesse dizer. Gula não procurava redenção. Ela não queria ser salva. Ela queria ser compreendida, mas nem mesmo eu poderia dar isso a ela. Ela era o reflexo de algo que não podia ser consertado - uma existência marcada pela busca insaciável, pela dor de nunca encontrar o suficiente.

E então, como se a dor de Gula se fundisse com a do próprio Inferno, e de repente um ser aparece, a Ira. A tempestade interna da fúria não tinha se dissipado completamente. Ela ainda estava ali, com seus olhos flamejantes, mas a ira agora estava silenciada, transformada em algo mais... quieto. Mais introspectivo.

"Eu sou a raiva", disse a Ira, sua voz agora carregada de uma calma sombria. "Mas você não entende. Eu não nasci assim. Eu fui criada pela perda. Pela dor que ninguém quis ver. Eu sou a resposta do mundo a uma criança que nunca soube o que era amor verdadeiro. E, quando esse amor se foi, o que restou foi a raiva. Não é apenas o desejo de destruir. É o desejo de nunca mais sentir a dor da perda. De nunca mais ser deixada para trás."

A Ira não havia sido criada com fúria. Ela era como Gula, uma alma que foi transformada pelo sofrimento. Ela fora moldada pela dor de perder aquilo que mais amava, de ser descartada por um mundo que a rejeitou. E, assim como Gula, ela se tornou uma sombra, mas uma sombra de fúria, que nunca se apagava, mesmo que a raiva fosse finalmente esfriando.

"Você acha que a raiva é o fim de tudo", disse a Ira, com um sorriso amargo. "Mas a raiva não se apaga, não desaparece. Ela vive dentro de você, se alimenta das suas feridas, até que você não saiba mais quem você é sem ela. E, quando você acha que está tudo acabado, você percebe que a raiva nunca se foi. Ela apenas... espera."

Ambas, Gula e Ira, estavam presas em ciclos que não poderiam quebrar. O Inferno, de fato, não era um lugar para redenção. Era um lugar de tragédias sem fim, de almas que haviam se perdido nas suas próprias necessidades e dores. Cada círculo que eu atravessava me mostrava uma face da mesma moeda - um reflexo distorcido de uma existência que se tornara mais sombra do que ser.

Elas estavam condenadas. E, no fim, eu também estava.

Eu não sabia como poderia libertá-las, ou se isso seria possível. Mas uma coisa era certa: o Inferno não era apenas um lugar de fogo e tormento. Era o lugar onde as tragédias se tornavam eternas. Onde a dor, o desejo e a raiva se transformavam em monstros, e esses monstros estavam além de qualquer redenção.

E eu, que procurava respostas, estava cada vez mais perdido neste abismo.