No silêncio que se seguiu, enquanto as sombras de Gula e Ira se dissipavam ao meu redor, uma ideia surgiu em minha mente, uma ideia que eu não poderia mais ignorar. O Inferno era um lugar de tormento e tragédia, mas também era um lugar de escolhas. Eu havia visto aquilo em cada um dos pecados capitais, em suas dores e culpas. Elas não haviam nascido para ser aquilo. Elas haviam sido moldadas, distorcidas por suas próprias tragédias. Mas, mesmo assim, havia algo em mim que se recusava a acreditar que tudo estava perdido. Mesmo ali, mesmo no fundo do Inferno, ainda havia uma centelha de algo que poderia ser redimido.
Eu não era um homem de fé. Não me via como alguém que rezaria por uma solução divina. Mas, naquele momento, enquanto o eco da fúria se dissipava e a fome de Gula se afastava como um espectro distante, uma pequena voz, quase como um suspiro, me fez pensar no único ser capaz de fazer algo.
*Jesus*. Aquele nome reverberou na minha mente. Não era a resposta para tudo, mas era, sem dúvida, a última esperança que eu tinha.
"Jesus", eu murmurei, mais para mim mesmo do que para qualquer outro. Aquelas palavras saíram pesadas, carregadas de uma mistura de ceticismo e uma esperança vaga. Se alguém pudesse tirar essas almas do abismo, era Ele.
Eu fechei os olhos por um momento, tentando convocar algo maior que eu, algo além da dor e da raiva que me cercavam. O silêncio tomou conta do espaço, e por um instante, eu quase acreditei que uma resposta viria. A expectativa, por um breve segundo, foi tangível. Mas, como sempre, as expectativas do Inferno são frustradas.
Nada aconteceu.
Nada, exceto um som suave, quase inaudível. Era o som da risada. Mas não uma risada de zombaria, como a que a fúria da Ira poderia ter em sua voz. Era uma risada tranquila, calma, mas ainda assim carregada de uma dor profunda. Era a Ira, que agora, de alguma maneira, havia encontrado um tipo de leveza que eu não imaginava ser possível.
"Você acha que Ele viria por nós?" A voz de Ira, agora mais suave, mais próxima, ressoou em meus ouvidos. Eu me virei para ela, e a vi sorrindo, não com o sorriso de raiva que eu esperava, mas com algo mais... humano.
"Acredite", continuou ela, a voz carregada com uma espécie de melancolia que antes não existia. "Eu não esperava que Ele viesse. Nem que Ele nos tirasse daqui. Mas, talvez... Talvez seja isso que eu precise entender. Não é sobre ser salva. Não é sobre ser perdoada. É sobre aceitar que não há retorno. Somos o que somos agora, não importa quanto tempo passemos aqui."
Gula, que até aquele momento parecia se afundar em seu próprio vazio, ergueu o olhar para mim. Seus olhos estavam vazios, mas havia uma espécie de compreensão neles, uma aceitação silenciosa da sua condição.
"A salvação não é para todos, não é?" Gula disse com uma voz calma, como se finalmente tivesse se resignado à sua eterna busca. "Eu busquei por algo que nunca poderia encontrar. Nunca houve nada que preenchesse o buraco dentro de mim, porque esse buraco é parte de quem eu sou."
Eu as observei, agora completamente diferente de como as havia visto antes. A Ira, que antes era uma tempestade, agora estava mais tranquila. Mais carismática, como se tivesse descoberto a importância da aceitação de sua própria natureza. Gula, que antes era uma sombra faminta, agora parecia uma alma que compreendia a extensão de sua própria dor.
Eu havia invocado Jesus, e o que eu esperava era uma solução divina. Mas o Inferno, como sempre, me mostrou uma verdade mais crua: nem todas as almas são feitas para serem salvas. Algumas são moldadas pela dor, pela fome, pela raiva, e talvez isso fosse tudo o que restasse para elas. Talvez fosse isso o que elas eram para sempre.
A ausência de Jesus foi um golpe que não me permiti sentir. Em vez disso, observei as duas figuras diante de mim. Elas haviam sido moldadas por suas tragédias, e não seria minha intervenção ou a presença de um ser divino que as mudaria. Eles, talvez, já fossem a forma mais verdadeira do que a humanidade poderia alcançar. E, por mais que eu quisesse acreditar em uma redenção para elas, a realidade do Inferno era uma lição difícil e impiedosa: a salvação não era para todos. Algumas almas já estavam além de qualquer esperança.
Eu não sabia se me sentia aliviado ou condenado por essa verdade. O que restava para mim agora era seguir em frente, adentrar ainda mais fundo no abismo que me cercava, tentando encontrar algum sentido entre as ruínas que o Inferno me apresentava. O Inferno era um lugar de tragédia, e as almas que lá habitavam estavam presas em ciclos que ninguém mais poderia quebrar.
Mas eu continuaria. Eu sempre continuaria. Porque, mesmo no Inferno, não há fim para o que está perdido.
O Segundo Círculo se estendia diante de nós, o vento quente que parecia não parar nunca mais, como se fosse uma dor sem fim. As almas luxuriosas, presas ao seu próprio desejo, lutavam entre si em uma chuva de corpos entrelaçados, sem poder se libertar da tempestade eterna. Mas, ao contrário da tempestade impiedosa que se desdobrava ao nosso redor, algo mais estava se formando em minha companhia. A Ira e a Gula, que haviam sido figuras tão imponentes e ferozes, estavam agora em uma estranha mudança.
Ira, com seus olhos flamejantes, havia perdido aquela intensidade de raiva cega. Ela parecia mais... pacífica, por um estranho paradoxo, e seus passos, antes pesados, agora eram leves, como se ela tivesse desistido de carregar o fardo da explosão. Havia uma curiosidade nela, algo que estava começando a brilhar através de sua máscara de furor.
Gula, por outro lado, estava... quieta. O vazio em seu olhar não parecia tão faminto quanto antes. Ela caminhava como uma sombra, com um olhar distante, como se estivesse perdida em pensamentos que não podiam ser alcançados. Mas havia algo de humano nela, algo que me fazia lembrar que nem todo vazio era insaciável.
"Já disse, você não vai nos convencer", disse Ira, quebrando o silêncio enquanto caminhávamos. Sua voz, embora suave, ainda tinha um tom de desafio. "Você acha que pode nos tirar daqui, não é? Que o céu nos receberia de volta. Você é patético."
Eu olhei para ela, um sorriso irônico no rosto. "Não se engane. Eu não estou tentando salvar ninguém. Não sou um herói, como você imagina. Não sou salvador. Apenas estou tentando entender o que aconteceu com vocês."
Gula, caminhando ao meu lado, deu uma risada baixa, mas cheia de amargor. "Entender? Como você acha que vai entender um buraco tão grande? Um vazio tão profundo que nem mesmo o inferno pode preencher?"
Eu balancei a cabeça. "Acho que vou tentar mesmo assim."
"Ah, o paladino da empatia," Ira zombou. "Sabe, você deve se dar um prêmio por tentar entender os condenados. Vai ganhar o título de 'Filósofo do Inferno' em algum lugar."
"Quem precisa de um prêmio quando se pode simplesmente rir de tudo?" retruquei, sem muita paciência para mais um jogo de palavras. "O que é mais divertido: tentar preencher o vazio ou admitir que ele nunca vai ser preenchido?"
Ira sorriu, mas não era uma expressão de raiva. Era uma diversão, como se a perspectiva do sofrimento alheio tivesse se tornado algo quase... divertido para ela. "Ah, eu diria que a diversão é perceber que estamos aqui por um motivo, mesmo que nem sempre entendamos. E esse motivo não tem nada a ver com justiça, ou perdão. Tem a ver com... o que fazemos quando não conseguimos mais viver com nós mesmos."
"É, é engraçado", Gula interrompeu, com um sorriso irônico. "Quando você acha que o inferno vai te dar uma resposta, você descobre que o inferno é apenas uma parte do seu próprio espelho quebrado."
Eu olhei para as duas, um tanto cético. O que restava de Ira era uma peça curiosa. Ela não era mais aquela fúria cega que explodia a cada provocação. Ela agora ria de tudo. Ela aceitava que a raiva tinha perdido seu poder, e com isso, encontrou algo mais estranho - talvez até mais perigoso - que antes.
"Você acha que essa 'paz' de raiva é uma vitória?" perguntei.
Ira riu novamente, mas de uma maneira que parecia mais uma reflexão do que uma zombaria. "Não. É uma lição. Uma lição de que podemos controlar o que sentimos, mas nunca podemos escapar do que somos. Eu... eu sou a raiva, sim. Mas, olha, não é divertido sempre berrar. Às vezes, apenas rir das desgraças dos outros é o que me mantém viva."
"Então é isso?" Eu disse, tentando entender a mudança. "Vocês simplesmente aceitam tudo? Fica fácil assim?"
"Não, não é fácil." Gula falou com uma intensidade estranha, sua fome quieta, mas ainda pulsante em suas palavras. "O vazio nunca se sacia. E não importa o quanto você coma, sempre estará incompleto. Isso é algo que você nunca vai entender."
Eu olhei para ela, agora mais humana, mais triste, e percebi que, talvez, a aceitação de Gula fosse a mais desesperada das todas. O vazio não era apenas uma busca por prazer, mas uma busca por algo que nunca poderia ser alcançado. Uma fome eterna.
"Vamos seguir em frente", eu disse, o tom mais sério agora. "O caminho à frente não vai ser fácil. E não sei se algum de nós vai sair daqui... não de uma forma que valha a pena."
"É, o que mais poderia sair dessa caminhada senão mais dor?" Ira respondeu com um sorriso cínico, mas havia algo diferente nela. Talvez fosse o gosto de liberdade na maneira como ela falava. Ela já havia aceitado que não era mais o que costumava ser, e isso a tornava quase... atraente, de uma forma desconcertante. "Mas isso não significa que vamos desistir de brincar com isso, não é?"
Gula levantou os olhos, como se estivesse começando a despertar de algum tipo de torpor. "Brincar com o sofrimento, brincar com a dor... é isso o que o inferno nos ensina, não é? O que o céu... ou qualquer outra coisa que exista... nunca vai nos dar."
A viagem continuava, e mesmo com os ecos dos outros pecadores ao fundo, havia algo no ar que nos unia. Não éramos amigos, nem inimigos. Éramos apenas três almas perdidas, vagando pelo abismo, tentando encontrar algo que sequer sabíamos o que era.
Mas talvez, só talvez, fosse exatamente isso que o Inferno realmente significava: a jornada de tentar entender as próprias sombras.