O vale não era apenas um reflexo do Inferno; ele era o Inferno em sua essência mais pura e horrível. A gordura derretida, uma massa viscosa que formava o chão, borbulhava com uma violência quase orgástica, espirrando líquido fervente que queimava a pele como se o próprio ar estivesse sedento de dor. O cheiro era insuportável: carne queimando, podridão e um odor metálico que impregnava tudo-cada respiração um esforço, cada movimento uma provocação.
As árvores não eram árvores, mas ossos vivos que se retorciam em agonia. Cada uma delas tinha corpos humanos entrelaçados, seus membros esticados até a fratura, seus olhos mortos e apodrecendo, mas ainda assim gritando em silêncio, como se estivessem condenados a um sofrimento eterno. O gemido delas não era um som qualquer; era o som da dor nunca aliviada, o som de vidas que nunca terminaram. Via algumas pessoas abrindo o crânio de outras somente para se alimentar do cérebro deles, achando que devorando o cérebro da outra pessoa eles iriam ganhar a inteligência do mesmo. O ar estava denso, pesado como uma prisão invisível, tornando cada passo uma batalha contra o próprio peso do lugar.
Insetos gigantes, sua carapaça escura como carvão, rastejavam pelas árvores, roendo a carne de quem havia sido transformado em parte delas. A cada movimento, sangue e vísceras do inseto jorravam sangue e pedaços humanos saíam de suas feridas, haviam centenas de pernas feitas como tentáculos que se contorciam, tentando resistir à fome interminável dos vermes. Não havia misericórdia, nem descanso.
E eu estava no meio disso tudo, respirando a podridão, sentindo o chão devorar cada pedacinho de mim que ainda desejava escapar. Mas eu não tinha medo. Não aqui. Não agora.
Pelo caminho, eu atravessava um lago raso com restos de detritos humanos com cheiro de podridão, meus pés estavam lamacentos pelo sangue que corria ali, era como se os restos mortais estivessem me puxando para dentro do lago.
À medida que avançava, uma figura monstruosa se tornou visível à distância, como uma miragem de carne e desespero. Gula era uma entidade, não um ser. Seu corpo era uma montanha de carne inchaçada, coberta com centenas de bocas que mastigavam freneticamente, algumas já sem alimento, outras vomitando sangue, órgãos, vísceras corrosivas humanas e expelindo cabeças e pernas humanas como se o ser não gostasse do sabor delas, tudo se espalhava pelo chão em uma poça repulsiva. Cada boca emitia um som constante, como um murmúrio baixo de insaciabilidade, mas nada parecia ser suficiente para apaziguar sua fome.
Seus olhos-se é que podiam ser chamados de olhos-eram buracos profundos, vazios, que absorviam qualquer coisa que ousasse se aproximar. Cada olhar que ele lançava era como uma punhalada fria em minha mente, arrancando pedaços de mim sem que eu sequer pudesse perceber.
"Você veio até mim," a voz de Gula se arrastou pelo vale, reverberando das bocas em seu corpo. Cada palavra parecia um fardo, como se fosse extraída à força de uma garganta sufocada. "Não sabe que tudo aqui me pertence?"
Então sorri, deixando a ironia fluir. "Pertencer é um conceito flexível. Talvez eu esteja aqui apenas para testar a sua coleção."
Ele riu, mas o som que emitiu não foi uma risada de prazer. Foi um grito de poder, um som que fez o chão tremer, como se o próprio Inferno estivesse ouvindo e aguardando. "Você acredita que pode negociar comigo, mortal? Eu não negocio. Eu consumo."
"Consome tudo, menos o vazio que você carrega dentro de si," disse eu, avançando com passos lentos.
O ambiente respondeu a essas palavras, como se estivesse em sintonia com Gula, como se tudo ali vivesse para amplificar sua fome. As árvores gemeram mais alto, o solo borbulhou com uma intensidade crescente, e o ar ficou insuportavelmente pesado. Mas não recuei. Não agora. Cada passo que eu dava só reforçava a minha convicção: ele não era invencível. Ele era a própria essência da fraqueza.
"Você acha que entende o que eu sou?" Gula rugiu, levantando-se de seu trono, fazendo o chão se estilhaçar sob seu peso. Sua forma monstruosa se erguia diante de mim, ainda maior, uma massa de carne pútrida e repulsiva que parecia se expandir a cada movimento. "Eu sou a fome infinita. O apetite que nunca cessa. O desejo que consome até o próprio universo."
Com um movimento grotesco, ele apontou para além do vale. Pela primeira vez, consegui ver a verdadeira extensão de seu domínio: um labirinto interminável, sem fim ou limites, onde o pecado estava vivo, alimentando-se de tudo e todos. Muralhas de dentes se erguiam como portões do próprio tormento, fechando-se e abrindo-se com um ritmo insano, como se estivessem mastigando o ar. Todos que desafiavam a irs para tentar passar pelo inferno para parar com este tormento era dissecado pelos dentes de gula para o eterno sempre. Ilhas flutuantes continham cenas de sofrimento indescritível: almas presas em banquetes eternos, consumindo-se até explodirem, apenas para recomeçar, sem descanso. Fontes jorriam sangue, vinho, e uma substância escura e viscosa, criando um lago de agonia onde gritos abafados se misturavam com os sons da dor.
"Este é o meu domínio," disse Gula, sua voz carregada de um orgulho grotesco, como se aquele inferno fosse sua criação divina. "E você... é apenas mais uma refeição."
— Apenas mais uma refeição? — respondi, deixando escapar um riso abafado, seco, quase um espasmo de desprezo. — É isso que você vê? Um prato que será devorado, mastigado, reduzido a nada? Você errou. Eu já sou o nada. Já sou aquilo que não pode ser consumido, porque sou o vazio que não sacia, o eco que não pode ser engolido.
Os olhos de Gula, ou o que quer que fossem aquelas órbitas famintas e insaciáveis, fixaram-se em mim, perplexos. Ele tentou rir, mas sua risada parecia engasgada, como se até seu orgulho fosse pesado demais para ser expelido.
— O vazio... — ele murmurou, quase zombando. — Palavras vazias de alguém que está prestes a ser devorado. Você não entende o que está diante de você. Este é o meu reino, meu apetite. Aqui, tudo tem um fim.
Dei um passo à frente, sem hesitar, sentindo o chão feito de gordura se contorcer sob meus pés. O cheiro de podridão enchia o ar, mas para mim era nada além de mais um lembrete da ruína que ele representava.
— O que é fome, Gula? Um buraco sem fundo que você tenta preencher com o mundo. Mas aqui está o segredo que você nunca quis admitir: você não devora porque é poderoso. Você devora porque é fraco. Um escravo do próprio vazio que não entende. Você vê esse labirinto? Esse inferno que você chama de lar? É uma piada.
Os dentes nas muralhas mastigavam com mais força, como se fossem uma extensão da raiva de Gula. Ele cerrou as mãos, mas não respondeu.
— Você construiu tudo isso como um reflexo da sua própria essência, mas esqueceu de uma coisa — continuei, aproximando-me até que nossos rostos quase se tocassem. — Eu vejo o vazio como ele realmente é. Não tento preenchê-lo, não corro dele. Eu o abraço. Você? Você é só uma criança assustada, tentando encher um buraco que nunca se fecha.
— Cale-se! — Gula rugiu, sua voz ecoando como uma tempestade.
— Por que deveria? — rebati, meu tom permanecendo calmo, quase frio. — Você não pode me tocar, Gula. Não porque eu sou forte, mas porque eu não sou nada. O nada não sangra, o nada não teme, e o nada não alimenta. Pode mastigar tudo o que quiser. No fim, será você quem será devorado pelo seu próprio desejo.
Ele hesitou, sua figura grotesca vacilando por um instante. Eu sorri, cruel e sereno, enquanto apontava para as almas presas em banquetes eternos, condenadas a explodir e recomeçar.
— Olhe para eles. Seu reflexo. Eles comem, explodem, recomeçam. Uma ilusão de saciedade, um ciclo eterno de sofrimento. Mas sabe o que eles não entendem? Que no fundo, você é exatamente como eles. Não importa o quanto consuma, o quanto se alimente. Você nunca será completo.
— E você acha que é diferente? — ele respondeu, tentando recuperar o controle.
— Não sou diferente, Gula. Sou pior. Porque, ao contrário de você, eu não busco preenchimento. Eu aceito o nada. Eu sou o vazio que você tenta negar. E quando você finalmente perceber isso, verá que eu já ganhei. Porque o vazio não luta. Ele apenas existe.
Os dentes nas muralhas começaram a ranger, mais violentos, e o ar ao nosso redor parecia vibrar com a tensão. Mas eu não parei.
— Então, devore-me se puder. Mas saiba disso, Gula: ao me consumir, você consumirá o nada. E o nada é a única coisa que pode engolir o próprio infinito.
O monstro avançou, cada passo seu como o trovão que antecede o colapso. O chão estremeceu, e as árvores se curvaram, como se a própria terra tivesse sido corrompida por sua fome. Mas eu não recuei. Eu sabia o que estava fazendo. Não era uma batalha física. Não era sobre força. Era sobre a mente, sobre desmantelar o símbolo da sua existência.
"Se você é tão poderoso, por que estou aqui, desafiando você?" perguntei, meu tom desdenhoso.
Houve um momento de pausa, um vacilo. Não era dúvida, mas sim um desconcerto. Gula não conseguia entender meu desafio. Ele pensava que eu era mais uma alma a ser consumida, mas eu não estava aqui para ser mais um prato.
"Você não veio desafiar," ele disse, com uma risada cheia de desprezo. "Você veio implorar."
"Implorar?" Ri, e minha risada ecoou por todo o vale, desafiadora. "Você me confunde com as suas vítimas. Eu não imploro. Eu negocio. E mais importante, eu venço."
Seus olhos se incendiaram com raiva. "Então prove, mortal. Mostre-me como você pensa que pode derrotar a fome eterna."
Enquanto ele rugia, o mundo ao nosso redor pareceu se distorcer ainda mais, como se o próprio Inferno estivesse em sintonia com a raiva dele. As árvores se curvaram mais, o chão se contorceu, e as chamas da lava se ergueram como serpentes. Ele estava trazendo tudo para o jogo. E isso era exatamente o que eu queria.
Eu sabia que para derrotá-lo, não bastava destruí-lo fisicamente. Eu tinha que arrancar dele o próprio significado de sua existência, fazê-lo consumir a si mesmo. Não havia espaço para heroísmo ingênuo. Não no Inferno.
Respirei fundo, e, com um sorriso, preparei-me para destruir a fome eterna.