O mundo sempre me pareceu um palco miserável, onde a poeira encobria os holofotes e os atores não passavam de sombras sem alma. As palavras trocadas eram réplicas de um roteiro gasto, desprovido de qualquer autenticidade. O riso, a raiva, o amor - tudo soava falso, ecoando uma falsidade que me sufocava. Mas a biblioteca era diferente. Ali, as mentiras perdiam seu eco. Não por causa das histórias impressas nas páginas, mas porque os livros, em sua quietude, ofereciam algo que o mundo não podia: silêncio verdadeiro. Não os amava, tampouco os odiava. Apenas os respeitava, porque, ao contrário das pessoas, não fingiam ser o que não eram.
Desde pequeno, compreendi que a verdade era um fardo, pesado demais para se carregar sem cair. Preferi as mentiras - flexíveis, maleáveis, instrumentos perfeitos para moldar a realidade ao meu gosto. Não era uma busca por poder ou reconhecimento. Não ansiava por justiça nem redenção. Eu queria controle, um domínio absoluto sobre um mundo que insistia em me enganar. A mentira era minha arte, minha arma e meu escudo.
Meu dia começava sempre da mesma forma, uma rotina meticulosamente calculada, onde cada gesto era mais uma peça do teatro que eu dirigia para mim mesmo. Eu acordava no exato momento em que a luz da manhã começava a insinuar sua presença pelas frestas da cortina, não por necessidade ou vontade, mas por hábito. O despertar não era marcado por sonhos ou devaneios; era seco, como uma página virada sem propósito.
No banheiro, o espelho me devolvia um reflexo que nunca parei para observar com cuidado. O rosto, cansado mas não desgastado, trazia marcas de noites maldormidas e pensamentos incessantes. Escovava os dentes sem pressa, olhando para o vazio, enquanto a água corria pela pia como um rio sem destino. O banho vinha em seguida, não para purificar o corpo, mas para anestesiá-lo temporariamente, abafando os ruídos internos com o som da água caindo.
O café da manhã era um ritual sem prazer. Não havia pressa nem indulgência, apenas a funcionalidade de manter o corpo em movimento. O pão, o café preto, o ocasional pedaço de fruta - tudo mastigado mecanicamente, sem gosto ou relevância. Era como abastecer uma máquina para que ela continuasse funcionando, sem importar o tipo de combustível.
Depois, vestia-me com a mesma monotonia. As roupas eram sempre neutras, sem cor ou estilo que denunciassem personalidade. O mundo podia ser um palco, mas eu preferia ser um figurante invisível. No entanto, antes de sair do quarto, havia um momento de hesitação. Um instante em que eu olhava ao redor, observando a cama desarrumada, os livros empilhados no chão, e o copo vazio deixado na mesa da noite. A sensação era de estar perpetuamente à beira de algo, mas nunca saber o quê.

Na biblioteca, o mundo enfim calava sua barulhenta farsa. Era ali que eu respirava, mesmo que de forma superficial. Minha mesa era uma fortaleza particular: de madeira escura, com marcas do tempo que narravam histórias que eu nunca ouviria. Sobre ela, havia uma pilha de livros escolhidos com precisão, um caderno de anotações que raramente usava, e uma taça de vinho quase sempre ao lado. O vinho, durante anos, fora uma constante, uma pequena indulgência que tornava a leitura mais suave. Mas naquele dia, enquanto lia *Ego e Arquétipo*, percebi que ele não me dava mais nada. A taça, com seu líquido rubro, parecia um acessório vazio, um símbolo de um prazer que eu já não reconhecia.
Tomei um gole, tentando forçar uma lembrança do sabor, mas ele era apenas ácido e sem propósito. Empurrei a taça para longe e, com um gesto quase irritado, peguei o copo de água que estava ao lado. A simplicidade da água parecia mais honesta. Ela não fingia ser algo que não era, ao contrário do vinho, que prometia um prazer que nunca chegava.
Voltei ao livro. As palavras de Jung dançavam na página, e, por um momento, perdi-me nelas. O conceito do "Self" como um todo maior que o ego era uma ideia que me provocava. Era possível existir algo além das máscaras que vestimos? A resposta parecia escapar, como todas as verdades. Mas eu não estava ali para encontrá-la. Estava ali porque o silêncio dos livros me lembrava que, enquanto eu lesse, o mundo do lado de fora continuaria preso em sua performance grotesca, sem mim. E isso era suficiente.
Em uma noite, como tantas outras, a biblioteca estava vazia. Não havia nada além do zumbido constante das luzes fluorescentes, iluminando fileiras de prateleiras que pareciam erguer-se até o infinito. Meus passos ecoavam em um espaço que já conhecia tão bem que chegava a ser enfadonho. Catalogar livros era uma tarefa quase automática, uma dança repetitiva sem música, sem propósito, mas era minha rotina. Até que ele apareceu.
O livro não tinha presença, mas era impossível ignorá-lo. Estava ali, no centro de uma mesa esquecida, como se sempre tivesse pertencido àquele lugar e, ao mesmo tempo, não. Sua capa de couro negro parecia algo retirado de um sonho febril, pulsando com uma vitalidade que desafiava a razão. Não havia título, autor ou marca de origem. Era um enigma que parecia me observar, mesmo sem olhos.
Aproximar-me não foi uma escolha. Foi uma necessidade. Um ímã que me puxava, não pela curiosidade, mas por algo mais profundo, quase visceral. Meus dedos hesitaram por um breve segundo antes de tocar aquela superfície quente, quase viva. E no instante em que o fiz, o mundo ao meu redor colapsou.

Não há metáfora que capture o que aconteceu. Foi como ser rasgado em fragmentos, cada pedaço de mim atravessando um turbilhão de escuridão e fogo. Memórias que eu havia enterrado foram arrancadas de seu túmulo. Segredos que eu mal sabia que existiam vieram à tona, como monstros emergindo de um lago negro. O livro não me transportava; ele me devorava.
Quando finalmente abri os olhos, o chão não era mais sólido. Eu estava no Inferno. Não um inferno figurativo ou psicológico, mas o verdadeiro. As chamas dançavam ao meu redor, e o ar tinha o peso de mil condenações. Não estava com medo, estava ansioso sobre o que estava prestes a acontecer, a resolução para uma vida monótona é a surpresa.
O chão era um cemitério exposto, coberto de ossos secos que estalavam sob meus pés. No horizonte, rios de sangue e lava corriam entre montanhas negras, cujos cumes desapareciam em um céu feito de fogo pulsante e tempestades de cinzas. O ar era denso, carregado de um calor que queimava os pulmões, misturado ao cheiro de carne podre e enxofre.
As almas estavam por toda parte, retorcidas, gritando, lutando umas contra as outras em ciclos intermináveis de violência. Homens e mulheres, ou o que restava deles, se atacavam com uma brutalidade que ultrapassava qualquer coisa que eu pudesse conceber como humana. Cada ação parecia impulsionada por algo mais profundo do que desespero-era como se a própria essência dessas pessoas estivesse contaminada, reduzida a puro instinto predatório.
Vi um homem, ou o que parecia ter sido um homem, arrancar os olhos de outro com as próprias mãos. Ao lado, uma mulher de cabelos desgrenhados devorava um pedaço de carne humana ainda sangrando, enquanto ao longe um grupo se reunia em um frenesi ritualístico, dançando em torno de uma pira onde algo gritava, sendo consumido pelo fogo.
E no meio disso tudo, eu estava extremamente calmo, estava acostumado com a dor e o quão grotesco a humanidade era cruel, eu não era uma pessoa comum, era amoral, não me importava com normas comuns, as pessoas me viam como um monstro normalmente.
"Bem-vindo," disse uma voz.
Virei-me e vi uma figura saindo das sombras. Seu corpo era uma amalgama grotesca de formas, mudando a cada instante, mas seus olhos permaneciam constantes: dois poços de fogo que pareciam penetrar minha alma.
"Você sabe onde está," continuou ele, um sorriso surgindo em seu rosto mutante.
"Sim," respondi, sem pestanejar.
"Deus o escolheu," disse ele, sua voz ecoando como trovão. "Você foi escolhido por ele, você têm a honra-ou a maldição-de estar aqui. Mas a pergunta que importa não é por que você foi escolhido. É o que fará agora. O Primeiro Circulo dos Sete é a Gula."
Olhei para os portões que se erguiam ao longe, colossais e terríveis. Esculpidos com cenas de dor e pecado, eles pulsavam como se fossem vivos.
"Esses portões levam ao coração do Inferno," disse a figura. "Lá, cada pecado que já habitou um coração humano toma forma. Eles são sua tarefa. Libere as almas que eles aprisionam, se puder. Mas lembre-se: aqui, toda escolha tem um preço. E você não é menos vulnerável do que as almas que pretende salvar."
Senti algo frio atravessar minha espinha. "E se eu não quiser salvar ninguém?"
O sorriso da criatura se alargou. "Então será apenas mais uma peça neste tabuleiro, destinada ao mesmo destino que as outras. Morte, dor, eternidade-não faz diferença para nós. Mas para você..." Ele apontou para os portões, que começaram a ranger, abrindo-se lentamente.
O som que veio de dentro era uma cacofonia de gritos e risos, tão intensa que parecia ameaçar minha sanidade. O calor que emanava dali era sufocante, e ainda assim, meus pés começaram a se mover.
Eu não hesitei. Não porque era corajoso, mas porque sabia que hesitar significava fraqueza, e fraqueza nunca foi uma opção.
Enquanto os portões se abriam completamente, engoli em seco e murmurei para mim mesmo:
"Se o Inferno quer me consumir, que tente. Mas não serei um joguete neste lugar."
E com isso, dei meu primeiro passo no Inferno.
Atravessar o Círculo da Gula foi como descer aos abismos da autossabotagem humana, onde o pecado se reflete não apenas na forma do castigo, mas na carne e no espírito dos condenados. Cada passo que eu dava me aproximava mais de uma realização dolorosa: a gula não é apenas um ato de consumir em excesso, mas de ser consumido até a total aniquilação.
O primeiro ser que encontrei foi Esaú, um homem que trocou sua herança espiritual por um prato de lentilhas. Ele estava sentado no chão, rodeado por uma pilha imensa de lentilhas fervendo em uma caldeira infernal. As lentilhas se contorciam como vermes, mas o mais grotesco era o fato de que, a cada vez que Esaú tentava pegar um punhado, elas borbulhavam e explodiam em chamas. A pele de Esaú, já coberta por queimaduras, se abria em carne viva sempre que ele tocava as lentilhas. Sua fome insaciável, que no mundo mortal o levou a desprezar sua bênção, agora o consumia de dentro para fora. "Eu desejei uma satisfação momentânea", ele disse, sua voz rasgada pela dor. "Agora, sou um prisioneiro de minha própria necessidade, e ainda assim, nunca sacio minha fome." Cada lentilha que ele tentava comer se desintegrava em cinzas, apenas para se regenerar em uma infinita repetição de dor. A gula, que uma vez foi um desejo passageiro, agora era um tormento sem fim, o levando a um ciclo de auto-sabotagem que refletia a escolha de desprezar o que realmente importava.
Ao seguir adiante, encontrei Balaão, o profeta corrompido pela ganância e pelo desejo de recompensas materiais. Ele estava em uma mesa coberta por montes de ouro sujo e pilhas de moedas. No entanto, cada vez que ele tentava pegar um punhado de ouro, as moedas se derretiam, escorrendo por suas mãos como se fossem líquidas, se transformando em uma substância viscosa e podre que se infiltrava sob sua pele. Ele estava encharcado de uma substância dourada que o queimava por dentro, mas ele continuava tentando pegar mais. "Eu busquei o ouro, mas o ouro agora me devora", ele murmurou, com os olhos quase cegos de tanto tentar agarrar o vazio. "A ganância que alimentei me consome, como se eu fosse apenas um reflexo de minha própria cobiça." As moedas não traziam a riqueza prometida, apenas a destruição. Sua boca estava cheia de uma substância pegajosa, impossível de engolir, forçando-o a vomitar repetidamente, mas ainda assim, ele não parava de tentar engolir o vazio que havia se tornado seu único desejo.
À medida que me afastava, uma sensação de desconforto crescente me envolvia, até que dei de cara com Tântalo,que estava de pé, cercado por um lago de água turva. À sua frente, frutas doces pendiam das árvores, mas estavam sempre além de seu alcance, flutuando em um espaço que parecia um pesadelo em movimento. Toda vez que Tântalo tentava se inclinar para beber, a água recuava, se afastando de sua boca. Quando ele tentava alcançar as frutas, elas se moviam para o alto, como se estivessem zombando dele. Ele se agitava, seu corpo fincando na lama do lago, as raízes das árvores cravando-se em sua carne, como se cada tentação fosse uma nova dor a ser sentida. "Por que me atormentam com desejos que nunca posso alcançar?" Tântalo gritou, sua voz desesperada e cheia de frustração. "Eu cometi um erro horrível, matei meu próprio filho para alimentar os deuses, mas agora sou prisioneiro da minha própria fome, incapaz de tocá-lo, incapaz de saciar o vazio que me consome." Ele parecia um esqueleto, sua pele quase se desfazendo, a fome tendo comido até mesmo sua identidade. A eterna distância entre o que ele desejava e o que nunca poderia ter era o seu castigo eterno, um sofrimento mais profundo do que a simples privação: ele desejava, mas nunca seria capaz de possuir, de saciar-se.
Enquanto me afastava de Tântalo, uma figura ainda mais monstruosa apareceu. Cérbero, o cão de três cabeças, estava devorando tudo o que via pela frente. Mas o mais horrível era que, por cada pedaço de carne que ele engolia, o próprio corpo de Cérbero se desintegrava, como se a gula tivesse se tornado um veneno que corroía até sua carne. Uma das cabeças rosnava enquanto mastigava humanos, outra engolia rochas e pedras, e a terceira, com um apetite insaciável, devorava o próprio fogo ao seu redor. Seus olhos queimavam com uma fome que nunca poderia ser saciada, e sua carne se dilacerava, sem nunca ser preenchida. "Eu sou a fome", Cérbero rosnava, sua voz sendo um eco das três bocas. "Eu devoro tudo, mas nunca me alimento. A fome que sinto é minha eternidade, uma eternidade sem fim." Sua boca parecia uma fenda no inferno, cada pedaço de carne que ele devorava apenas aumentava sua agonia, levando-o cada vez mais à destruição de seu próprio corpo. Ele era uma representação grotesca do apetite insaciável que, quanto mais saciado, mais se distanciava de sua própria identidade, do sentido de quem ele realmente era.
Mais adiante, encontrei Nabucodonosor II, o rei que, em sua arrogância e gula, foi levado à loucura e transformado em um ser bestial. Ele estava no campo, comendo "capim" como uma vaca, mas seu corpo estava distorcido de forma grotesca. Sua pele estava coberta de pelos grossos e suas mãos, que um dia seguraram cetros, estavam agora em forma de patas, mastigando a terra composta de restos mortais. "Eu me entreguei à vaidade, ao poder, ao luxo", disse ele, sua voz profunda e abafada pela "terra" que ele comia. "E agora, sou reduzido a isso. O que busquei, agora me consome, e meu apetite nunca será saciado. Fui desfeito pela minha própria fome de poder." Ele olhou para mim com um olhar vazio, como se não fosse mais um homem, mas apenas uma sombra de sua própria culpa. A imagem do rei transformado em besta era uma advertência, a perda de todo poder quando se entrega à gula do ego, ao desejo incessante por mais.
Por fim, encontrei Henrique VIII, o rei que se entregou a banquetes luxuosos e excessos sem fim. Ele estava rodeado por uma mesa interminável, repleta de carnes em decomposição e pratos que se desfaziam em podridão. Ele tentava comer, mas cada pedaço que colocava na boca se desintegrava instantaneamente em sujeira e decomposição. "Eu vivi para o prazer, para os banquetes, para a satisfação momentânea", ele disse, sua voz abafada pela gordura que cobria sua garganta. "E agora, sou consumido por minha própria gula. O que busquei com tanto empenho, agora me devora." Cada pedaço de comida que ele tentava ingerir se transformava em uma massa de podridão, envenenando-o, tornando-o mais repulsivo a cada segundo. O banquete nunca se acabava, mas o prazer que ele buscava estava sempre além de seu alcance, consumindo-o lentamente, tornando-o um reflexo da própria decadência que ele havia buscado em vida.