O Inferno não era apenas horrível; era um pesadelo tangível, desenhado para engolir a alma lentamente. Cada fragmento deste lugar era uma afronta à humanidade. O chão era uma rede de ossos estilhaçados, afiados como lâminas, que se cravavam em cada passo, libertando gritos abafados de corpos esquecidos. Cada crânio que olhava para mim não tinha vida, mas suas órbitas vazias ainda carregavam a dor de quem foi esquecido antes de terminar o sofrimento.
As "paredes", se é que podemos chamar assim os abismos à minha volta, eram feitas de carne pulsante e negra, como se o Inferno fosse um organismo vivo, respirando em um ritmo insano, pronto para devorar tudo que se atrevesse a tocá-lo. Rios de lava não corriam; eles escorriam, como sangue coagulado, serpenteando sobre montanhas de corpos entrelaçados, cujos membros se torciam e retorciam em uma dança de agonia, suas bocas abertas em gritos silenciosos, como se até mesmo o som fosse um luxo negado a eles.
O céu? Uma piada cruel. Um turbilhão de chamas e sombras que se formavam em rostos distorcidos por um instante, apenas para se desfazerem em um grito abafado, como se a própria morte fosse incapaz de satisfazer o desespero que permeava o lugar. Olhares furtivos me caçavam, olhos que em um segundo buscavam consolo, mas se perdiam na explosão de fogo que os consumia.
O ar era pesado, impregnado com o cheiro nauseante de carne podre queimada, como se cada molécula do Inferno fosse uma lembrança fétida, teimosa, impossível de escapar. Não era o tipo de cheiro que se dissipava. Era o tipo de odor que se cravava na pele, que se afundava na carne e na mente, como uma tortura que nunca cessa.
E então, ali estava eu, caminhando com um vazio no peito que nenhum sofrimento poderia preencher. Cada passo era mais uma confirmação: este lugar era uma obra, uma cruel obra de arte, e eu não estava ali para ser a vítima da história. Eu seria o executor.
Mas então, tive um pensamento, sobre o que era eu, o que eu significava, o que eu sou?
O inferno é uma lição crua que nenhum livro jamais conseguiu me ensinar. Aqui, não existem metáforas, não há espaço para abstrações elegantes ou significados ocultos. Tudo é visceral, direto, e cruelmente honesto. É o mundo despido de máscaras, de ilusões, de ideais. Cada passo que dou neste chão pulsante, cada respiração que trago para dentro dos pulmões, é um lembrete de algo que sempre evitei admitir: nada tem valor.
Valor. Uma palavra que antes parecia sólida, carregada de propósito, mas que agora se dissolve como sangue nas águas pútridas ao meu redor. O que significa valor aqui? A carne que mastigo tem valor porque sustenta minha vida, ou porque era parte de algo que um dia respirou, que um dia pensou? Essa pergunta me assombra, mas a resposta é sempre a mesma: nada vale mais que a fome que carrego. Não existe intrínseco, não existe superioridade. Existe apenas o vazio e a luta para preenchê-lo com qualquer coisa — mesmo que seja sangue, carne, ou mentiras que conto a mim mesmo.
Minha mente se contorce em busca de significado, mas quanto mais tento encontrar algo, mais percebo que o significado é uma construção frágil, algo que inventamos para não enlouquecer diante do caos absoluto da existência. Aqui, onde as paredes respiram e o ar é carregado com a podridão da eternidade, toda filosofia que carreguei parece uma piada. Pensadores que passaram suas vidas buscando verdades universais nunca pisaram neste lugar. Nunca sentiram a fome que rasga as entranhas, nunca precisaram escolher entre mastigar carne humana ou morrer. E como podem então falar sobre moralidade? Sobre propósito? Sobre valor?
Eu não acredito mais neles. Não acredito em suas palavras. Aqui, o único propósito é continuar. Continuar, mesmo quando o corpo quer desistir. Continuar, mesmo quando a mente grita que tudo isso é inútil. Continuar porque parar é admitir a derrota, e derrotar-se é se perder completamente no vazio que espreita em cada canto deste inferno.
E talvez o vazio seja a única verdade. Ele está em tudo. Está em mim. Sempre esteve. É ele quem devora o significado das coisas, quem transforma a vida em um jogo sem regras ou final. E quando tudo é vazio, o que resta? Moralidade? Filosofia? Essas são luxos, artifícios criados por aqueles que nunca precisaram enfrentar o grotesco, o absoluto, o real.
Eu não sou mais um homem de moral. Talvez nunca tenha sido. Mas aqui, no meio de sangue e carne, percebo que até o conceito de moralidade é algo a ser arrancado, descartado, como uma pele morta. Se a moralidade é o que nos define, então o que somos quando ela é retirada? O inferno me deu a resposta: somos apenas sobreviventes. Animais que fingem ser mais do que isso, mas que, no fundo, são guiados pelos mesmos impulsos básicos. Fome. Medo. Dor.
Mas então, se somos todos apenas sobreviventes, o que nos diferencia? A verdade cruel é que não existe diferença. Não há superioridade em ser humano, em ser consciente, em pensar. Pensar não nos salva. Sentir não nos redime. Só o ato de continuar — mesmo rastejando, mesmo sangrando, mesmo mastigando algo que outrora foi vivo — é o que nos mantém. Não porque isso tenha valor, mas porque é tudo o que podemos fazer.
E eu? O que sou agora? Um bibliotecário? Um homem? Ou apenas mais uma manifestação do vazio que governa este lugar? A única certeza que me resta é que a amoralidade não é uma escolha; é a condição natural. Aqui, não há certo ou errado, apenas necessidade. Não há bondade ou maldade, apenas ação. E talvez, no final das contas, seja essa a verdade que sempre evitamos: a vida é um abismo sem moralidade, e nós dançamos na beira, fingindo que há algo mais do que o nada
O inferno não me mudou. Ele apenas removeu o véu.
Ao longe, uma voz gutural me atingiu, como se fosse feita de mil ecos distorcidos, um rugido sibilante que fazia o ar vibrar. Vinha de um vale onde a terra parecia se desintegrar, absorvendo tudo o que se aproximava, como se fosse um buraco negro de decomposição.
"Ele está perto," a sombra ao meu lado murmurou, surgindo do nada.
Era o demônio que me havia recebido na entrada, com seus olhos vermelhos como carvões incandescentes e um sorriso que mais parecia um corte profundo.
"Quem?" perguntei, sem desviar os olhos do horizonte.
"O primeiro pecado. Gula."
A palavra soou como um aviso, mas não senti medo. Sentia apenas um fervor crescente, uma antecipação do que estava por vir. A Gula não era apenas um desejo insaciável por comida. Era a voracidade de tudo o que se podia consumir. O desejo de engolir não apenas o corpo, mas a essência, a alma. E eu sabia: neste lugar, cada pecado era mais do que um conceito. Era carne e sangue. Era uma monstruosidade viva.
"O que ele é?"
O demônio inclinou a cabeça, como se se divertisse com minha dúvida. "Gula é uma fome que nunca se sacia. Um desejo infinito, insano. Ele vai devorar o que você é, não o que você tem. Ele vai tomar sua alma, sua essência, até você se tornar nada."
"Ganhar de um pecado capital, talvez não seja tão difícil," murmurei, minha voz fria, indiferente ao aviso.
O demônio riu. "Você tem confiança, rapaz. Isso vai torná-lo ainda mais saboroso para ele."
Ignorei a provocação. Olhei para minhas mãos, sentindo os dedos se esticarem, em busca de uma força que não existia. Não precisava de armas; a mente sempre foi mais afiada que qualquer lâmina.
"Como derroto algo que nunca se satisfaz?"
"Você não derrota," disse ele, com uma satisfação doentia. "Você negocia. Você engana. Ou você se deixa consumir, mas ninguém nunca conseguiu isso."
Eu sabia que ele queria que eu cedesse, que fosse engolido pelo desespero deste lugar. Mas não era uma vítima. Não estava aqui para jogar segundo as regras do Inferno.
"Então me mostre o caminho."
O demônio estendeu a mão, apontando para o vale à frente. A terra ali se movia, derretendo em uma gordura viscosa e fétida, escorregadia como as trevas que permeavam o ar. Estruturas grotescas de ossos e carne se erguiam, retorcidas, como árvores mortas em um bosque de dor. No centro, uma forma colossal se movia, uma sombra que se misturava com a névoa, ainda indistinta, mas com sua presença monstruosa.
"Ele sabe que você está vindo," o demônio disse, um sorriso cruel se desenhando em seu rosto. "E ele está... esperando."
Sem mais palavras, comecei a descer. O calor era insuportável, o ar quente como a respiração de um predador. O terreno abaixo me sugava a cada passo, tentando engolir meus pés como se fosse um aviso do que estava por vir.
Enquanto me aproximava, uma voz baixa e faminta ecoou em minha mente. Não era a do demônio, nem a minha, mas uma voz primitiva, um murmúrio de desejo insaciável que me gelou por dentro:
"Você já é meu. Você sempre foi meu."
Sorri, sentindo a tensão crescendo. "Veremos quem vai devorar quem."
Estava ansioso, era a primeira vez que iria lutar contra um pecado capital, isso não acontece todo dia!