Olhando para trás, constantemente luzes desciam do céu, anunciando a chegada de novas almas ali, que Deus iria fazer o julgamento divino.
O Inferno era uma galeria de horrores humanos. Não era apenas o resultado do sofrimento, mas um reflexo ampliado e distorcido das obras mais sombrias da humanidade. As paredes de carne pulsante não eram apenas orgânicas, eram feitas de corpos vivos, costurados à força, em um ciclo eterno de regeneração e destruição. Homens e mulheres se fundiam, retorcidos como esculturas feitas por um deus louco. Alguns ainda respiravam, gemendo em agonia, enquanto mãos despedaçadas emergiam das costuras tentando se libertar.
Um pântano viscoso de matéria em decomposição. A terra é escura e lamacenta, engolida por uma névoa densa de podre e putrefação. O chão, coberto por restos de alimentos putrefatos, é aclamado pelos condenados, que são engolfados por uma fome desesperada e cruel. Mas os condenados não podem se saciar, porque a comida é sempre mutável, sempre escorregadia, fugindo de suas mãos como uma cruel zombaria. Eles lutam uns contra os outros, se arrastando por entre as imundícies, para morder pedaços de carne podre ou tragar líquidos sujos que os torturam.
Os corpos dos pecadores são deformados e inchados, como balões de carne e gordura, suas faces distorcidas pela fome infinita. Seus estômagos estão dilatados e caídos, mas continuam a arder em uma fome que nunca cessa, porque o ciclo da gula é eterno, uma tortura que nunca é saciada. Eles engolem sem cessar, mas não encontram prazer algum, apenas um vazio mais profundo, uma sede que se aprofunda a cada tentativa frustrada de consolo.
Enquanto eu andava pelo circulo da gula, diversos homens vinham a me atacar, tentando devorar minha carne. Que por sorte saí ileso, e no fundo eu escutava. Sons brutais: os estalos dos ossos sendo quebrados, o som nauseante de gargantas sendo dilaceradas pela tentativa de engolir, os gritos abafados de desesperança e frustração. Em alguns momentos, as criaturas grotescas se alimentam de seus próprios membros, comendo e regurgitando, regozijando-se na decadência de seus próprios corpos. A carne que consomem não oferece mais alívio, apenas um ciclo de autodestruição, como se cada pedaço ingerido fosse uma punição ainda mais severa.
Entre essas figuras grotescas, um grupo de crianças apareceu, ou melhor, o que restava delas. Seus olhos vazios refletiam não mais inocência, mas uma dor ancestral, uma perda que transcendia a morte. Eram corpos esquálidos e deformados pela fome, com ossos à vista e pele esticada, que mal cobria suas estruturas quebradas. As feições eram irreconhecíveis, e seus pequenos dedos, agora garras, estendiam-se em direção a mim com uma ânsia que ultrapassava os limites da razão. Elas não eram mais crianças, mas ecos do sofrimento. Havia algo profundamente filosófico em sua existência: elas haviam sido consumidas antes mesmo de morrer, eram de algum manicômio ou orfanato? Tanto faz... como almas que pertencem ao abismo, que nunca conheceram a saciedade e, agora, se tornaram pedaços de carne ambulantes, ávidas para engolir o que restasse de vida.
Elas se lançaram sobre mim, uma massa frenética de ossos e vísceras, com um rosnado inumano que ecoava por todo o círculo. Não havia diferença entre elas e as bestas que habitam os piores pesadelos. Como seres arrancados de um mundo onde a compaixão não mais existia, atacaram-me com violência animal, suas bocas abertas de maneira grotesca, prontas para rasgar minha carne. Eu as encarei, não com medo, mas com a frieza de quem entende que ali, no inferno, a morte não é uma solução - é apenas um pedaço de uma tortura infinita.
Com um gesto, agarrei uma das crianças, tão leve que parecia uma marionete de carne e ossos, e, com um movimento, arremessei as outras para o lado. Elas caíram com um estalo, sendo engolidas por um lago fervente de fogo e veneno que borbulhava como um inferno em miniatura. As chamas escaldantes devoraram seus corpos instantaneamente, mas a morte não as libertou. Em vez disso, elas foram consumidas por um fogo eterno, um ciclo sem fim de sofrimento onde a dor jamais termina. Seus gritos se perderam no caos do abismo, suas almas dilaceradas fundiram-se com o fogo, e eu não senti nada além do inevitável peso de uma existência vazia.
A criança que restou, uma figura pálida e sem vida, olhava para mim com olhos que suplicavam por uma misericórdia que eu não podia oferecer. Ela estava condenada, ela pediu com toda compaixão que ainda restava dela. Sem hesitar, arranquei-lhe a pele com as mãos nuas, rasgando-a com a brutalidade de um predador que não sabia mais distinguir entre dor e prazer. A carne desfiada se desprendeu com um som de carne crua sendo dilacerada, e o sangue, quente e espesso, jorrou em minhas mãos como um rio de pecado. Não houve luta. Sua vida foi extinta no mesmo momento em que sua carne se despedaçou, seu corpo transformado em algo tão grotesco que não restou sequer um fragmento de sua humanidade.
Eu matei não apenas um ser humano, mas a última centelha de compaixão que pudesse existir ali. Ao arrancar sua pele, um símbolo de sua própria perda, eu a converti em um troféu, em uma bolsa onde, com precisão sádica, coloquei os pedaços de carne ainda pulsantes, ainda quentes. O cadáver já não era mais do que uma carne sem alma, uma escultura grotesca que me acompanharia durante minha jornada. Ouvia aquela criança gritando e se agonizando de dor, mas a minha filosofia era a lógica, não posso sobreviver aqui sem matar os outros. O que restava ali, após o último suspiro de vida, era uma carne que se tornava apenas matéria, algo que não possuía mais valor senão sua capacidade de alimentar o vazio.
No inferno, a morte não é apenas um fim, mas uma transfiguração. A fome é uma entidade onipotente que consome a carne, mas também a alma. A Gula não é uma simples necessidade, mas uma filosofia do abismo, um princípio eterno de destruição que ultrapassa o desejo de saciar-se. O desejo nunca é saciado, porque o vazio que se abre dentro de nós nunca se preenche. Fui deixado com a sensação de que, naquele lugar, as almas não morrem, mas são desconstruídas e reconfiguradas, transformadas em peças de um grande quebra-cabeça grotesco.
Andando mais a frente vejo.
Glutões, com suas bocas deformadas de tanto comer, caminham em direção a uma fonte de alimento - mas não é comida qualquer. O que se apresenta diante deles são chamas infernais, um fogo que parece ter vida própria, sempre dançando e se transformando, mas nunca se consumindo. Quando eles tentam morder, o fogo queima suas bocas e línguas, como se um fogo vivo tivesse tomado o lugar da comida. O sofrimento é imediato e brutal, mas o mais cruel é o fato de que, mesmo queimando suas bocas e estômagos, a fome nunca desaparece. A dor se mistura com a fome, criando um ciclo insano: sempre desejando mais, mas nunca podendo satisfazer o desejo.
À medida que eles se esforçam para comer, os glutões são forçados a engolir alimentos podres, verduras murchas e apodrecidas, cobertas de sujeira, infeccionadas e infectadas com venenos. Cada pedaço que é ingerido não traz alívio. Pelo contrário, a comida se dissolve em suas gargantas, liberando toxinas e feridas purulentas que se espalham por seus corpos. Suas carnes apodrecem, e feridas abertas surgem onde antes havia prazer. Eles tentam novamente, movidos pela fome que nunca passa, mas a cada tentativa, as dores aumentam. O sabor putrefato e venenoso corrói seus órgãos, mas o vazio persistente dentro deles não cessa. Eles nunca podem parar de comer, pois a fome os consome mais que o próprio sofrimento.
Ao olhar ao redor, o cenário é um mar de dor e desespero. Vários outros glutões estão espalhados, todos em situações semelhantes, suas faces distorcidas pela dor, suas mãos tremendo enquanto tentam comer mais, sempre na esperança de uma satisfação que nunca virá. Eles gritam em agonia, mas os ecos de suas vozes se perdem na vastidão do inferno, como se o próprio ambiente os tivesse engolido.
À minha esquerda, vi uma mãe segurando o cadáver de uma criança, os dois fundidos por um tecido disforme que pulsava como se estivesse vivo. Suas mãos estavam cravadas no peito do pequeno, retirando órgãos para consumir. Seus olhos não expressavam culpa, apenas desespero, como se essa fosse a única maneira de continuar existindo.
Mais à frente, homens e mulheres estavam presos a cadeiras feitas de ferro fundido. Braços mecânicos os alimentavam continuamente com pedaços de carne fervente arrancados de outros condenados. Eles gritavam, mas não paravam de mastigar, mesmo enquanto suas bocas sangravam. O metal queimava suas peles, e a carne que engoliam parecia regenerá-los apenas para que o ciclo recomeçasse.
No centro desse espetáculo de brutalidade, erguiam-se esculturas grotescas feitas de carne humana. Não eram simples estátuas, mas obras vivas, alimentadas por rios de sangue que escorriam de veias abertas no chão. Cada escultura representava atos cometidos pelos humanos em vida: genocídios, traições, excessos. Uma delas mostrava uma figura com múltiplos braços segurando cabeças decapitadas, seus olhos ainda se movendo, enquanto uma cascata de sangue caía de suas bocas abertas.
Ao redor dessas esculturas, um grupo de figuras humanas trabalhava incessantemente. Não eram demônios, mas almas humanas forçadas a esculpir outras como punição por seus crimes. Vi um homem usando um cinzel feito de osso para cortar um pedaço de carne viva de uma mulher que gritava. Ele não hesitou, suas mãos tremiam, mas ele continuava, como se soubesse que parar resultaria em algo pior.
Os demônios não eram os carrascos aqui. Eram os humanos que faziam o trabalho. Aquelas mãos, aquelas mentes, eram as mesmas que, em vida, haviam criado armas, explorado outros ou consumido o mundo sem limites. Agora, estavam condenadas a transformar sua própria espécie em arte grotesca, cada peça uma lembrança do que haviam feito ou permitido que fosse feito.
Quando finalmente cheguei ao vale, a visão se tornou ainda mais hedionda. O solo era feito de gordura humana, escorregadia e fétida, e os rios que corriam por ali eram de um líquido amarelado, espesso, que fervia com o calor do próprio inferno. Árvores feitas de ossos despontavam, seus galhos adornados com pedaços de carne que pingavam sangue. Sob essas árvores, criaturas humanas rastejavam como animais, devorando os restos que caíam.