Enquanto a fumaça e o cheiro de carne queimada ainda impregnavam o porão, algo prateado chamou a atenção de Arthur. Estava no chão, próximo ao local onde o cadáver grotesco havia tombado. Ele se aproximou cautelosamente, os olhos examinando cada detalhe ao redor, temendo que alguma outra surpresa estivesse à espreita.
O objeto era um colar de prata, com uma pequena safira incrustada em um medalhão simples, mas elegante. Ele o pegou com cuidado, girando-o entre os dedos enquanto a luz da tocha refletia na pedra azul.
'Por que algo assim estaria aqui? É muito... limpo para esse lugar.'
Embora desconfiado, Arthur guardou o colar no bolso interno de sua jaqueta. Não sabia explicar por que o pegou – talvez fosse instinto, talvez um pressentimento. Depois de uma última olhada ao redor, ele caminhou até a porta do porão. Com algum esforço, conseguiu abri-la, as vinhas que antes a seguravam agora reduzidas a cinzas.
Arthur subiu as escadas com passos pesados, o corpo ainda sentindo os efeitos da luta. De volta à cabana, ele se dirigiu a um dos quartos que havia explorado anteriormente. Lá, afundou-se em uma cadeira velha e rangente, pousando o machado ao seu lado.
Sua respiração estava pesada, mas ele fechou os olhos por um momento, tentando se acalmar.
'Eu preciso de um plano... Não posso continuar assim, improvisando o tempo todo.'
Ele abriu os olhos e encarou o teto coberto de fungos e rachaduras. Estava no limite de suas forças, mas algo dentro dele não o deixava desistir. Era o pensamento de sua irmã.
'Preciso sair daqui. Por ela.'
Um som suave, como o farfalhar de folhas ao vento, cortou o silêncio do quarto. Arthur se levantou instintivamente, pegando o machado com força. A visão que se seguiu, porém, fez seu coração quase parar.
No centro do quarto, uma figura pequena e disforme havia surgido. O Vreneling era ao mesmo tempo fascinante e perturbador, uma visão que misturava elegância alienígena e horror cósmico. Ele tinha uma forma flutuante, como uma esfera translúcida de um tom esbranquiçado, com longos e finos véus pendendo como tecido etéreo.
O que mais chamava atenção, no entanto, eram os olhos. A superfície de seu corpo era pontuada por dezenas de olhos brilhantes, cada um de cor e tamanho diferentes, piscando em descompasso. Alguns olhavam diretamente para Arthur, enquanto outros pareciam fitar além do espaço e do tempo. Ao redor dele, uma aura luminosa esverdeada oscilava, como uma poeira cósmica flutuante.
A criatura irradiava uma energia inquietante e, ao mesmo tempo, uma presença quase cativante.
O ser sorriu — ou pelo menos Arthur teve essa impressão, pois sua forma não possuía boca visível.
"Saudações, Arthur" disse o Vreneling, sua voz ecoando como um coro de tons altos e baixos, harmonizados de forma sobrenatural.
Arthur levantou o machado defensivamente, dando um passo para trás.
"O que diabos você é? Como sabe meu nome?"
O Vreneling flutuou lentamente em sua direção, como se não fosse afetado pela gravidade.
"Eu sou um Vreneling, uma criação de Ny'vren. Digamos que minha função é... oferecer oportunidades."
"Oportunidades?" Arthur estreitou os olhos. "O que isso significa?"
O pequeno ser inclinou levemente seu corpo flutuante, como se estivesse analisando Arthur, antes de responder:
"Desejos. Eu posso concedê-los. Mas, é claro, há um preço. Sempre há."
Arthur sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Ele não confiava nem um pouco naquela criatura, mas algo na forma como ela falava era hipnotizante.
"Desejos... como? "perguntou ele, apertando o cabo do machado.
O Vreneling respondeu com um brilho intenso em seus olhos, os múltiplos globos oculares girando e piscando em uma sinfonia desconexa:
"Isso, meu caro, você descobrirá quando decidir jogar. Pois eu não sou apenas um doador de desejos... Sou também um criador de desafios."
A criatura ficou em silêncio por alguns segundos, antes de desaparecer tão repentinamente quanto havia aparecido. Arthur piscou, confuso, a mente girando com perguntas sem resposta.
'Essa coisa... o que diabos ela quer de mim? E por que aqui, agora?'
Ele olhou ao redor, sentindo o peso da solidão retornar, mas agora misturado a uma nova camada de ansiedade. Com o machado ainda em mãos, sentou-se novamente, tentando entender o que acabara de acontecer.
Arthur olhou para o ponto onde o Vreneling havia desaparecido. Um misto de medo e determinação o consumia. Ele sabia que apostar em algo tão imprevisível era insano, mas, ao mesmo tempo, a promessa de um desejo era tentadora demais para ignorar. Levantando-se, ele firmou a postura, segurando o machado com força antes de falar para o vazio do quarto:
"Eu vou tentar a sorte. Que tipos de desafios eu tenho que fazer para ganhar um desejo?"
Assim que pronunciou as palavras, o Vreneling reapareceu, flutuando como uma sombra luminosa no centro do quarto. Seus olhos piscavam de forma desconexa, observando Arthur com um interesse quase curioso.
"Inteligência," respondeu o Vreneling, sua voz ecoando como um coro sobrenatural. "Meus desafios testam a mente, não a força. Se você passar por três desafios consecutivos, terá direito ao 'Desejo Máximo', onde usarei todo o meu poder para realizá-lo. Mas esteja avisado: as consequências do fracasso são severas."
Arthur engoliu em seco. 'É claro que há um preço. Sempre há um preço.' Ele respirou fundo, tentando manter a calma.
"E se eu errar? O que acontece?" perguntou ele, com a voz grave, mas trêmula.
Os olhos do Vreneling brilharam em cores alternadas, e ele respondeu com uma serenidade perturbadora:
"Os erros são pagos com... ajustes. Perda de memória permanente, perda de membros, ou, em casos mais extremos, perda de algo essencial que você talvez nem saiba que possui."
Arthur cerrou os dentes, sentindo o peso do risco. Mas sua determinação era maior. Ele pensou em sua irmã, na promessa que fizera a si mesmo de voltar para ela. Fechou os olhos por um instante, buscando forças dentro de si.
"Vamos começar. Mande o primeiro desafio."
O Vreneling inclinou-se levemente, e um brilho intenso emanou de seus olhos principais. Um sussurro percorreu o ar ao redor, e então ele falou:
"Ouça com atenção. Aqui está sua charada:
Quatro irmãos, todos ligados, juntos andam sem descanso. Dois mostram o caminho, dois caminham sem parar, mas juntos nunca se afastam. O que são?
Você tem 30 minutos para responder."
Arthur sentiu o impacto da complexidade da charada. Ele andou pelo quarto, a mente trabalhando freneticamente. 'Quatro irmãos, juntos, mas com papéis diferentes... Caminham sem descanso... Dois mostram o caminho...' Ele repetia as palavras mentalmente, tentando encontrar alguma lógica. Os minutos passavam, e ele sentia a pressão aumentando.
Finalmente, aos 26 minutos, uma ideia o atingiu. Ele parou no centro do quarto e encarou o Vreneling.
"São... rodas de um carro!" disse ele com firmeza. "Os dois da frente mostram o caminho, enquanto os dois de trás seguem, mas todos andam juntos."
Os olhos do Vreneling brilharam intensamente, e ele inclinou a cabeça em um gesto de aprovação.
"Correto. Você venceu o primeiro desafio. Está pronto para o próximo?"
Arthur hesitou por um momento, mas sabia que aquela era uma oportunidade única. 'Se eu realmente quiser sair daqui, preciso vencer.' Ele respirou fundo antes de responder.
"Pode mandar o próximo desafio."
Com um movimento fluido, o Vreneling fez surgir uma pequena mesa no centro do quarto. Sobre ela, um tabuleiro de xadrez montado. Ele flutuou para o outro lado, assumindo a posição de adversário.
"Seu segundo desafio é este: derrote-me no xadrez. Mas cuidado... eu não sou um oponente comum."
Arthur sentou-se à mesa de pedra áspera, sentindo o peso familiar, mas desconfortável, do machado repousando em suas costas. O ambiente ao redor parecia conspirar contra a concentração: o som do vento passando por fendas nas paredes de pedra, o leve brilho das tochas oscilando nas sombras grotescas do salão, e o olhar fixo do adversário, um Vreneling, cujos olhos opacos pareciam refletir o vazio de mil derrotas e vitórias ancestrais.
'Xadrez...' Pensou Arthur, os dedos roçando o tabuleiro envelhecido. Fazia anos que não jogava. A última partida, ele se lembrou, havia sido contra seu mentor, num tempo em que as responsabilidades e o peso das armas eram apenas um eco distante de seu futuro. 'Isso vai ser complicado.'
Com um suspiro profundo, começou a partida, movendo uma peça com cautela. Seu instinto dizia para avançar devagar, observar os padrões do inimigo. Mas o Vreneling não era um oponente comum. Seus movimentos eram tão imprevisíveis quanto sua aparência - mãos disformes que pareciam moldar as peças, criando estratégias que escapavam da lógica convencional. A cada turno, Arthur sentia-se como se estivesse navegando um mar desconhecido, adaptando-se a tempestades repentinas que abalavam suas táticas.
O jogo progredia em um ritmo implacável. Arthur enxugou o suor que começava a escorrer por sua testa, seus olhos fixos no tabuleiro como se fossem âncoras. Cada jogada era uma batalha silenciosa, uma dança de lógica contra caos, de experiência contra instinto. Ele movia seus cavalos e bispos com precisão militar, mas o Vreneling respondia com ataques inesperados, sacrificando peças de forma ousada para criar armadilhas que desafiavam as convenções do jogo.
A tensão no ar parecia quase palpável. Arthur ouviu o som da madeira contra pedra quando o Vreneling capturou sua torre. Um rosnado baixo escapou dos lábios deformados da criatura, e Arthur se endireitou, cerrando os punhos por um momento antes de soltar o ar lentamente. 'Foco, Arthur. Ele quer que você ceda à pressão.'
Conforme o jogo avançava, Arthur começou a notar um padrão sutil. Era quase como uma música dissonante, mas com um ritmo que ele podia sentir nas profundezas de sua mente. Ele começou a adaptar-se, como um guerreiro que aprende os movimentos de seu inimigo em uma batalha prolongada. As peças dançavam pelo tabuleiro, avançando e recuando como exércitos em um campo de batalha, cada uma carregando consigo o peso de uma decisão crítica.
Finalmente, Arthur viu a abertura. Seu rei estava encurralado, mas o sacrifício de sua rainha havia deixado o Vreneling exposto. Com um movimento preciso, ele deslizou seu bispo pelo tabuleiro e pronunciou as palavras que selariam o destino da partida.
"Xeque-mate."
O salão mergulhou em silêncio. O Vreneling inclinou a cabeça de forma quase imperceptível, um gesto que parecia conter tanto respeito quanto raiva. Arthur reclinou-se na cadeira, sentindo a tensão se dissipar de seus ombros enquanto observava a última peça de seu adversário ser retirada do tabuleiro.
Apesar da vitória, ele sabia que aquele jogo havia sido mais do que uma disputa intelectual. Ele sentia como se algo dentro dele tivesse sido testado, talvez algo que ele ainda não compreendia completamente. Mas uma coisa era certa: aquele adversário, aquela criatura, era mais do que um simples oponente. Ela era um lembrete de que, mesmo no caos, há padrões esperando para serem desvendados.
"Impressionante," disse o ser. "Poucos conseguem chegar tão longe. Está pronto para o terceiro desafio?"
Arthur, embora exausto, assentiu. "Estou."
O Vreneling fez desaparecer a mesa de xadrez e flutuou ao redor do quarto. Quando falou novamente, sua voz era quase musical:
"O terceiro desafio é o Jogo dos Dois Oráculos. Vou colocá-lo diante de dois guardiões: um sempre diz a verdade, o outro sempre mente. Você terá que descobrir qual deles possui a chave para a vitória, mas poderá fazer apenas uma pergunta a um dos dois. Vamos começar."
A mente de Arthur entrou em alta velocidade. 'Essa eu conheço. Já ouvi algo parecido antes...' Ele pensou cuidadosamente enquanto o cenário se formava diante dele: duas figuras idênticas, cada uma com uma expressão neutra.
Depois de ponderar, Arthur se aproximou de um dos guardiões e fez sua pergunta: "Se eu perguntasse ao outro guardião qual porta leva à vitória, o que ele me diria?"
O guardião respondeu, e Arthur escolheu a porta oposta. Ao cruzá-la, o Vreneling apareceu novamente, girando em triunfo.
"Você venceu, Arthur. O desejo é seu. O que você deseja?"
Sem hesitar, Arthur respondeu: "Quero ir para minha casa. Agora."
Os olhos do Vreneling piscaram em tons frios, e sua voz soou mais baixa desta vez:
"Não posso conceder isso. Está acima da minha permissão interferir diretamente desse jeito nos participantes da dimensão de bolso."
Arthur ficou chocado. "Como assim? Por que não?"
"Minha função é criar oportunidades e oferecer ferramentas, não desviar o fluxo da realidade. Escolha outro desejo."
Depois de alguns momentos de frustração e pensamento intenso, Arthur finalmente respondeu:
"Eu desejo obter o poder de acessar uma fonte de conhecimento... Um livro que contenha todo o conhecimento necessário para sobreviver e navegar neste mundo distorcido. Algo que esteja cheio de sabedoria que me guie nesse lugar. Quero que isso seja uma extensão de mim. Quero que ele evolua com o tempo, que me conceda o poder de desvendar tudo o que eu puder. Conceda-me um aliado, e faça ele crescer em conhecimento junto comigo."
O Vreneling ficou em silêncio por um momento antes de brilhar intensamente. Na frente de Arthur, um livro começou a se formar, coberto por uma capa de couro escuro, ornamentado com símbolos que pareciam se mover levemente. Quando Arthur o tocou, sentiu um calor pulsante, como se o livro tivesse vida própria.
"Seu desejo foi concedido."
E com essas palavras, o Vreneling desapareceu novamente, deixando Arthur a sós com seu novo aliado.