A chuva persistente cobriu o resto do dia, escurecendo enquanto a água lavava as poças formadas pela figura que atacava os moradores da vila. Correndo pelo vilarejo, Dalan também foi limpo pela chuva, que removeu o sangue do seu corpo, deixando apenas os hematomas das chicotadas que ainda não haviam cicatrizado. Chegando à praça central, ele estava ofegante, sem ter recuperado as energias. Ao dar uma breve olhada ao redor, avistou Sylvia sozinha em frente ao palco.
"Sylvia..."
Dalan se aproximou devagar, preocupado. Ele ergueu uma mão antes de chegar perto dela e, finalmente, tocou em seu ombro.
"Como você não queria que eu chorasse...?"
Sylvia perguntou, observando o palco vazio. O ferreiro já não estava mais lá, restando apenas o sangue manchando o piso de madeira. Ao sentir o toque em seu ombro, ela se assustou, mas ao virar e ver que era seu irmão, as lágrimas continuaram a rolar, e ela o abraçou imediatamente.
"Ah... Sylvia..."
Dalan não conseguiu dizer palavras de consolo, pois sabia que era a causa de tudo aquilo. Como resposta, apenas retribuiu o abraço. Ambos permaneceram sob a forte chuva.
"O monstro! Tem um monstro na vila! Socorro!"
Um homem gritou enquanto se aproximava da praça, avistando os irmãos gêmeos abraçados.
"Monstro...? O que você quer dizer com isso?"
Sylvia levantou rapidamente o olhar para o homem, confusa com o alerta.
"É uma história complicada. Por isso, eu estava com pressa para te encontrar. Precisamos sair daqui antes que ele nos alcance."
Dalan soltou Sylvia do abraço e segurou sua mão, começando a puxá-la para sair dali.
"Espera, Dalan! O que você está dizendo?"
A garota parou, resistindo ao ser puxada, esperando uma explicação.
"Enquanto eu estava preso na caverna, algo que não parecia humano veio até mim. Essa coisa me fez perguntas, contou sobre a execução do tio Ferneck, e até me deu uma chance de fugir, mas avisou que, se eu não saísse a tempo, nós também morreríamos."
Dalan tentou ser o mais direto possível ao explicar para sua irmã, puxando-a para que o seguisse. No entanto, percebeu que o homem se aproximava por trás de Sylvia, com uma clara intenção de machucá-la. Dalan puxou Sylvia com força para evitar que fosse atacada.
"Você trouxe aquele monstro para a vila, não foi, criança amaldiçoada?"
O homem estava desesperado, segurando uma faca enquanto gritava, mas suas mãos tremiam.
"Do que você está falando? Por que está fazendo isso? Não temos tempo para lutar entre nós."
Dalan ergueu a espada, encarando o homem. Apesar de notar o medo nos olhos do agressor, ele parecia focado apenas naquele momento. Ignorando-o, o homem avançou novamente, com uma velocidade que Dalan não conseguiu acompanhar totalmente.
"Que rapidez...!"
Dalan tentou reagir rapidamente, levantando a espada para se defender. Sentindo a pressão do ar, o homem passou a faca rente ao rosto de Dalan, abrindo um corte superficial em sua bochecha. Em resposta, Dalan conseguiu ferir o antebraço do homem ao erguer a lâmina. O agressor, mesmo com o braço ferido, pegou a faca da mão caída enquanto Dalan recuava para se recompor.
"Esse cara não é humano... Será que é influência daquele monstro?"
Dalan refletiu enquanto ganhava algum espaço, tentando compreender o que estava acontecendo. De repente, lembrou-se da primeira coisa que a criatura havia dito a ele.
"Medo...!"
Ele correu até Sylvia, posicionando-se na frente dela. Ao fazer isso, o homem o encarou. Seus olhos estavam começando a ficar vazios e um sorriso macabro surgiu em seus lábios.
"Então, você descobriu o que me move...? Esta vila já se tornou um mar de sangue daqueles que lhe desejavam a morte, assim como você desejou a eles. Restam apenas os irmãos gêmeos neste começo de noite."
A voz do homem começou a se distorcer, enquanto seus olhos se tornavam completamente vazios. A lua já tomava o lugar do sol enquanto a chuva continuava a cair.
"O que está acontecendo...?"
Sylvia permaneceu paralisada, sentindo um calafrio percorrer seu corpo. O medo estava começando a invadir sua mente.
"Sylvia! Não se deixe levar pelo medo desse monstro. Estou aqui para te proteger, então resista!"
Dalan gritou para tirá-la do transe. Sua atenção continuava fixa no homem em transformação.
"Certo... Eu consigo..."
Sylvia se recompôs após ouvir seu irmão, soltando um suspiro para acalmar os nervos.
"Vocês realmente são crianças interessantes... Poucas pessoas conseguem escapar da zona do medo... Sendo assim, não perderei mais tempo."
O homem perdia cada vez mais sua aparência humana. Enquanto falava, seu corpo começou a crescer, as articulações estourando para ganhar elasticidade. Tornozelos, joelhos, cotovelos e ombros começaram a se esticar. Quando o sangue jorrou, novos músculos foram formados, e uma camada de sangue cristalizado protegeu as áreas expostas. Os músculos cobriram a pele humana enquanto grossas linhas de sangue formaram uma nova estrutura em todo o corpo, incrustadas na carne.
"O que você é...?"
Dalan segurou a espada com as duas mãos, mas a arma parecia pesar muito mais. Seu controle corporal estava sendo afetado pelo medo intenso e pelo constante alerta em sua mente para fugir.
"Ora... Onde está sua coragem? Já está se esvaindo?"
O monstro riu enquanto os músculos e linhas de sangue alcançavam sua cabeça. Seus olhos estavam completamente vazios, restando apenas o surgimento de dentes. Ao abrir a boca, os lábios endureceram, convertendo-se em grandes dentes vermelhos, parecidos com rubis afiados.
"Sylvia, precisamos..."
Dalan tentou avisar sobre a fuga, inclinando a cabeça para olhar para trás. No entanto, ao voltar a atenção para frente, o monstro já estava diante dele. Sua aproximação não fez qualquer ruído, apenas encurtou a distância num instante. As unhas do monstro haviam crescido, reforçadas pelas linhas de sangue em seu pulso. Com um simples toque do indicador no peito de Dalan, ele gritou de dor.
"Meu sangue..."
Dalan tentou falar após o grito, sentindo o sangue dentro de si esquentar e quase perfurar seu corpo, como se estivesse se transformando em pequenas lâminas. As veias saltaram, cercando seu peitoral, ombros e pescoço.
"Eu não vou morrer aqui..."
Dalan pensou, forçando seu corpo a obedecê-lo. Em um movimento preciso, usou o resto de sua força e velocidade para cortar o peito do monstro de baixo para cima. Isso o libertou, sentindo o sangue voltar ao normal. No entanto, a lâmina de sua espada quebrou, e ele expeliu sangue pela boca.
"Dalan!"
Sylvia correu até ele e o segurou, vendo seu irmão incapaz de se mover. A exaustão finalmente o dominara. Apesar de estar cansado, Dalan ainda segurava sua espada quebrada, apontando-a para a criatura.
"Impressionante... Você é cheio de surpresas... Vou permitir que fujam hoje por conseguir me ferir, pequeno Dalan. Como recompensa..."
O monstro apontou os dedos para o lugar onde havia tocado antes. Em seguida, uma marca começou a surgir, fazendo Dalan agonizar de dor. Quando a marca foi concluída, a presença do monstro pareceu se dissipar com a chuva, desaparecendo logo em seguida.
"Você está bem, Dalan?"
Sylvia perguntou, notando a marca gravada nele. Tratava-se de uma runa em forma de losango.
"Estou... Só não consigo mexer meu corpo..."
Dalan respondeu entre tosses, tentando observar ao redor com a visão embaçada.
"Descanse um pouco... Estou aqui com você."
Sylvia suspirou aliviada, deitando a cabeça do irmão em seu colo. Eles permaneceram assim por um tempo, até que a chuva finalmente cessou.