No interior da caverna da vila, o tumulto entre os moradores era inaudível. O único som a quebrar o silêncio, eram o de estalos, ecoando do fundo até a entrada estreita. Dela, a luz do sol iluminava o ambiente, embora limitada pela posição da caverna e a entrada ter uma distância considerável, sendo possível enxergar apenas duas silhuetas no fundo.
Já faz um bom tempo que você está em silêncio. — A silhueta em pé disse, balançando um açoite.
De frente para ele, Dalan estava sentado. O dorso golpeado pelos açoites encostavam na parede gelada e os pulsos encontravam-se acorrentados, o impedindo de sair daquela posição desconfortável. Olhando para baixo, o torso estava coberto por cortes superficiais, fazendo seu sangue sobrepor o seco que havia sido derramado do Terceiro Ajudante.
Meu sangue está misturado ao dele... — Dalan pensou com um semblante cansado.
Ainda processava os eventos da noite anterior, tentando se adaptar ao peso do seu primeiro combate real e resultado dele, matar uma pessoa. A escuridão da caverna o induzia a refletir cada vez mais sobre aquilo sem conseguir fugir.
Apesar de eu querer matá-lo agora mesmo, o chefe ordenou que eu o mantenha vivo. Como o Ferneck será executado pelo Segundo e você foi treinado por ele, o chefe decidiu torná-lo parte do seu objetivo. — O Primeiro Ajudante disse, vendo o estado do garoto.
Embora a baixa luminosidade impedisse de ver seu rosto claramente, o homem possuía estatura mediana, ao contrário dos outros dois ajudantes que eram altos. Tinha cabelo curto e olhos pretos.
O que você disse...? — Dalan questionou, recuperando a sobriedade e olhando nos olhos dele.
Parece que agora voltou a me ouvir. Estava ficando chato bater em você sem ao menos reagir. — O Primeiro Ajudante respondeu calmamente, sem esboçar alguma expressão.
Agindo de maneira impulsiva, Dalan tentou forçar seus punhos na direção dele, mas agonizou ao sentir as correntes lhe machucarem os pulsos. Nesse momento, os músculos do torso se contraíram após a ação ser interrompida, devido aos machucados e frio do ambiente.
Você não vai escapar fácil assim. É melhor que desista. — O Primeiro Ajudante balançou o açoite mais uma vez antes de golpear o braço dele.
Tsc... — Dalan agonizou, voltando a ficar parado.
Desviando o olhar após sentir a dor no braço, percebeu dois círculos vazios flutuando em um dos cantos, nas sombras da caverna. Aparentava ser dois olhos o encarando, mas não tinha sequer um corpo ali, nem ao menos uma silhueta. Além disso, apenas os arcos eram visíveis, sem indícios da existência de pupilas.
Então você é o garoto que esteve treinando tão arduamente na floresta e matou o Terceiro Ajudante? Que estado lamentável para uma criança. — Dalan ouviu uma voz diferente em sua mente.
Era distorcida, como se estivesse apenas simulando a voz humana. Isso foi o suficiente para um forte arrepio se instaurar em Dalan, com seus instintos tentando alertá-lo da ameaça daquela presença.
Estou alucinando...? — Ele se perguntou, tentando entender o motivo de estar presenciando aquilo.
Eu pareço apenas uma alucinação para você? Bem, talvez isso indique que apareci por sua causa. — A voz o respondeu, soltando uma breve risada.
Ei, para onde você está olhando? Ainda não terminamos sua punição. — O Primeiro Ajudante se aproximou dele.
Largando o açoite no chão, puxou o cabelo de Dalan e levantou o outro punho para socar seu rosto. No entanto, ele parou antes de atacá-lo, pois do seu pescoço começou a escorrer sangue e, em seguida, a cabeça caiu no colo de Dalan.
Como...? — Ele ficou em choque, vendo a cabeça no seu colo e o corpo do Primeiro Ajudante caindo para o lado.
Não era isso que você queria, mas não podia o fazer, por estar preso nessas correntes? — A voz questionou suas intenções enquanto os círculos vazios se aproximaram lentamente pelas sombras.
E o que isso tem a ver com você...? Eu não pedi a sua ajuda. — Dalan o refutou.
Mesmo sentindo o medo gelar sua espinha após presenciar a morte repentina do Primeiro Ajudante e o corpo continuar arrepiado, seus instintos não o permitiram se sentir seguro com o quer que fosse aquilo, deixando-o inquieto apesar do choque.
Intrigante... Sua língua é bem afiada para alguém que está com medo e sequer pode se mover. — A voz disse, parando na frente dele, distante o suficiente para que não enxergasse nada além dos círculos vazios. — Certamente essa coragem moldará o futuro ambíguo. Entretanto, lembre-se do seu lugar, pois mesmo que estivesse com as mãos livres, não conseguiria nem ao menos segurar seu pescoço antes de cair. Um bom exemplo está no seu colo.
Futuro ambíguo...? Do que você está falando? — Dalan ficou curioso sobre o comentário, encarando aqueles olhos flutuantes.
O cérebro do garoto tentou, a todo custo, assimilar aquilo a um humano ou que ao menos tudo estivesse sendo uma alucinação. No entanto, a voz saiu da sua cabeça e começou a ser dita pelos círculos vazios.
O motivo da minha visita é mais simples do que imagina. Começou um tumulto na vila após cometer um assassinato e, como consequência, Ferneck foi executado publicamente pelo povo e Segundo Ajudante. Sendo assim, você foi o responsável pela vila agora estar descontrolada. — A voz explicou, agora formando uma silhueta ao redor dos círculos vazios.
Ouvindo a explicação, Dalan abaixou a cabeça, sentindo seu coração apertar, batendo forte. Quis discordar, mas a angústia conseguiu fazê-lo ceder. Seus olhos refletiam culpa.
Sua irmã também presenciou toda a execução. O Segundo Ajudante foi bem cruel ao fazê-la ver Ferneck cego e ter que guiar ele durante o caminho. Quem sabe o que ele pode ter feito com ela depois disso. — A voz provocou, soltando uma risada distorcida.
Não ria... Se você rir novamente da morte do Ferneck ou da Sylvia, farei com que nunca mais consiga nem ao menos falar. — Dalan fechou seus punhos, olhando nos olhos flutuantes da silhueta acima de si.
Nesse momento, seu sangue ferveu após o coração começar a bater mais rápido. O sentimento de ódio em Dalan ainda não havia passado completamente e a figura demonstrou saber disso com toda aquela provocação.
Você é interessante, isso devo admitir. Diga-me, diante de toda essa situação que está acontecendo, qual é o seu desejo? — A voz retornou ao assunto sobre as intenções dele.
Meu desejo...? — Dalan ficou confuso, mas pensou por algum tempo antes de responder o que estava em seu coração. — Sair dessa vila com a minha irmã e fazer todos que nos fizeram sofrer até hoje, pagar por isso.
Mas você não tem capacidade para isso. Tudo o que pode fazer é ficar sentado nessa caverna, esperando ser usado pelo chefe daqui e caso se negue a cooperar, pode ser executado a qualquer momento ou usarão a Sylvia para mantê-lo obediente. — A voz o confrontou, agora com a silhueta tomando forma, mas ainda permanecendo totalmente escuro.
Eu prometi que iria proteger Sylvia com a minha espada... Não permitirei colocarem as mãos sujas nela novamente. Cumprirei essa promessa, mesmo que eu esteja ferido e acorrentado. — Dalan ignorou as palavras da figura, confiante em sua decisão.
Pois bem, o anoitecer está próximo, então darei uma condição: Se você deseja tanto viver e proteger sua irmã, lute para isso. Quando a lua tomar o lugar do sol, eu terei matado todos dessa vila, incluindo você e a Sylvia. Para evitar que isso ocorra, saia da caverna, encontre Sylvia o mais rápido possível e saiam da vila. — A figura prenunciou, arremessando algo na direção de Dalan.
Escutando a corrente de um dos braços quebrando, Dalan olhou para a parede e viu que se tratava da sua espada, forjada por Ferneck.
Ei, espera! O que você está querendo dizer com isso? — Ele exclamou, assustado.
Voltando sua atenção para frente, a figura não estava mais ali, tendo sumido no momento em que ele olhou para a espada, deixando-o sozinho na caverna.
Merda... Preciso encontrar algum jeito de sair daqui. — Dalan pensou, levantando do chão.
Olhando a cabeça do Primeiro Ajudante cair do seu colo e rolar até o corpo, ele retornou ao choque. Instintivamente, levou a mão na direção onde a espada foi arremessada, tentando alcançar o cabo e, quando conseguiu, usou sua força para arrancá-la da parede e começar a golpear a corrente restante.
Que resistente... Como ele conseguiu quebrar com tanta facilidade? — Ele se perguntou após várias tentativas falhas.
Respirando fundo, teve a ideia de imitar a figura, golpeando a base da corrente que ainda o prendia à parede. O choque do impacto entre a lâmina e a pedra fazia sua mão tremer, obrigando-o a segurar firme na empunhadura da espada para evitar novos hematomas.
Consegui criar uma abertura, falta apenas um pouco! — Dalan continuou atacando a parede, forçando uma rachadura para enfraquecer a estrutura.
Realizando o último golpe na parede, ele puxou o pulso com força, tendo êxito em arrebentar a corrente e, finalmente, libertar seu braço. Ofegante depois do esforço, apoiou-se na parede.
Hah... — Ele soltou um suspiro pesado, sentindo o corpo fraquejar. Devido ao tempo sentado e ferido, seu vigor ainda não se recuperou. — Vamos... Não posso ficar aqui parado...
Dalan, então, cambaleou até a saída da caverna, usando as paredes para se manter em pé. Chegando na entrada, a luz do sol o atingiu, fazendo-o cobrir o rosto, incomodado.
Onde será que a Sylvia está? — Ele se perguntou, reorganizando os pensamentos enquanto a visão se acostumou novamente à luz.
Saindo da caverna, correu de volta para a casa do ferreiro em busca de Sylvia. Passando pelas ruas da vila, notou os moradores desesperados, cada um correndo para um lado diferente e, quando entrou na casa de Ferneck, procurou ela em todos os cômodos, mas não estava lá.
Não... Isso não é possível, onde você foi parar, Sylvia? — Dalan começou a ficar nervoso, saindo da casa e assim, lembrou da execução de Ferneck. — Ela deve estar na praça central!
Agora com uma direção em mente, rapidamente correu pelas ruas novamente. Em seguida, ao olhar para o céu, viu nuvens cobrirem o sol e uma chuva forte começar a cair repentinamente.