Na manhã seguinte, surgiu um tumulto atípico na vila, com todos os moradores reunidos fora de suas casas, cercando o espaço das ruas. Sylvia despertou entre os arbustos e árvores próximas às casas.
Onde... estou...? — Ao abrir os olhos, percebeu que estava parcialmente coberta por algo.
Olhando para baixo, viu que era a camisa de seu irmão gêmeo. Confusa sobre a ausência dele, levantou do chão e voltou para a vila. Enquanto descia o degrau de terra, percebeu o tumulto e sua extensão, principalmente nas redondezas da casa do Terceiro Ajudante.
Será que aconteceu alguma coisa com ele? — Sylvia perguntou-se, instintivamente relacionando aquilo a Dalan, já que sempre acabava metido em problemas na vila. Entretanto, lembrando de como ele havia agido após descobrir o que havia lhe acontecido, um aperto em seu coração a fez se preocupar. Entrando em negação com seus pensamentos, ouviu alguém falar após entrar em uma das ruas da vila, levantando a cabeça.
Olhem, é a Sylvia! O que ela estava fazendo na floresta? — Um dos garotos perguntou aos outros amigos dele. Era o mesmo trio que havia brigado com Dalan dois anos atrás, mas dessa vez, menos agressivos.
Eu... — Sylvia se interrompeu, lembrando que não podia revelar sobre o treinamento de seu irmão, quase o tendo feito devido à própria confusão mental. No entanto, o mais alto dos três se meteu no meio, percebendo seu amigo ficar alterado ao vê-la.
Não tem mais por quê esconder, a vila inteira já sabe que Dalan aprendeu a manejar uma espada com Ferneck... Na noite passada ele matou o Terceiro Ajudante. — Após um suspiro, ele disse.
Ouvindo aquela afirmação, Sylvia paralisou ali mesmo. Apesar de se negar a acreditar, agora fez sentido para si todo o tumulto, o sumiço de Dalan e a ciência deles sobre o treinamento.
Também soubemos o que o Terceiro Ajudante tentou fazer com você. Antes de ser levado pelo Primeiro Ajudante sob ordens do chefe, Dalan estava gritando sobre isso. — Deixando de lado seu orgulho e desprezo pelos gêmeos, adotou uma postura amigável com ela.
E onde está o Segundo Ajudante...? — Sylvia perguntou, mesmo tendo ideia de onde ele estava.
Não sei onde ele foi, mas lembro de tê-lo visto mais cedo andando em direção à casa do Ferneck. — O garoto respondeu, notando a expressão dela ficar ainda mais nervosa.
Passando pelo trio, Sylvia correu de volta para casa, passando entre os moradores que fechavam as ruas, usando atalhos para chegar mais rápido.
Tio... — Ela sussurrou, tentando conter o nervosismo.
Chegando em frente à casa do ferreiro, a hesitação impediu Sylvia de se aproximar por um momento, até que respirou fundo e tomou coragem para entrar. Abrindo a porta, se deparou com Ferneck de joelhos e o Segundo Ajudante à frente, ocultando a visão de seu rosto.
O que... — Sylvia entrou na sala, vendo o chão entre ambos manchado de sangue, com gotas ainda pingando.
Percebendo a presença dela, o Segundo Ajudante se virou. Seus olhos castanhos claros estavam parcialmente cobertos pelos fios pretos do seu cabelo longo, mas não o impediu de fixar sua atenção na garota que acabou de chegar ali.
Ora... Você chegou em um bom momento, Sylvia. — O Segundo Ajudante disse, saindo da frente de Ferneck e caminhando até ela.
Ao fazê-lo, o ferreiro parecia processar as palavras do Segundo Ajudante, mas permaneceu parado. Sua mão estava tampando o único olho que ainda havia alguma visão. No entanto, esse era o olho no qual manchava o piso de madeira com sangue. O líquido escorria entre os dedos, sujando seu antebraço inteiro.
Sylvia... Você está aí? — Ferneck perguntou.
Diante da situação em que o ferreiro estava, Sylvia não conseguiu se mover, com seu corpo trêmulo. De seus olhos, lágrimas caíram ao ver Ferneck cego. De relance, observou a mão do Segundo Ajudante, que esteja com o polegar sujo.
Sim... — Sylvia respondeu, aproximando-se devagar dele, imediatamente o abraçando quando estava perto.
Céus, que bom que você está bem. — Ferneck sussurrou ao reconhecer a voz dela, retribuindo o abraço.
Como você bem sabe, não se pode ir contra os planos e regras do chefe, Ferneck. Apesar de ser permitido cuidar dessas crianças amaldiçoadas, por ser próximo do casal, sem a necessidade de abandonar seu nome, não deveria ter forjado uma espada para Dalan. O chefe certamente ficou irritado ao descobrir sobre o assassinato e que você, o membro mais importante da vila, foi o responsável por treiná-lo. Como o Primeiro foi ordenado a levar Dalan à caverna para o punir, fiquei encarregado da sua execução. Mas ainda é cedo para isso... — O Segundo Ajudante disse, esboçando um sorriso cínico.
Durante o abraço entre os dois, ele se aproximou, puxando Sylvia pelos cabelos. Levantando ela, olhou as marcas do pescoço e pulsos, deixadas pelo Terceiro Ajudante.
E com você, será que devo fazer algo antes de terminar meu serviço com o ferreiro? Pelo que o Terceiro Ajudante mencionou, você é bem valente, não? — Ele continuou, vendo-a tentar se soltar ao agarrar seu pulso.
Não... Me solta! Tio Ferneck! — Sylvia gritou, em pânico.
Olhando para o Segundo Ajudante, sentiu calafrios quando se deparou novamente com aqueles olhos castanhos fixados nela, agora com o sorriso cínico também parcialmente coberto pelos fios de cabelo.
Hum...? — O Segundo Ajudante percebeu a mão do ferreiro alcançar seu antebraço.
Sentindo seus músculos serem forçados a contrair devido ao aperto causado por Ferneck, a pele do antebraço começou a se rasgar. Surpreso, levou sua atenção até ele, notando uma aura se formar ao redor do ferreiro. O seu olho completamente branco, embora não enxergasse, parecia saber com clareza onde o Segundo Ajudante estava, principalmente seus olhos.
Aconselho que tire as mãos dela caso não queira perder seu braço. — Ferneck disse em voz alta, rouca e imponente.
Apesar de tentar resistir ao aperto, o Segundo Ajudante sentiu os ossos do seu antebraço estalar. Assim que viu fagulhas em torno de Ferneck, rapidamente soltou o cabelo de Sylvia. Sendo solto em seguida, um suspiro pesado lhe saiu dos lábios.
O que diabos é esse ferreiro...? Por que ele é parecido com o chefe...? Merda, se eu tivesse resistido por mais tempo, meu braço teria sido partido por ele. — O Segundo Ajudante pensou, fechando o sorriso após ter presenciado aquilo.
Você está aqui para me entregar a punição dos meus atos, então não envolva a Sylvia. Mesmo ciente de que poderia chegar a esse momento, treinei Dalan para se tornar um guerreiro e, como ele desejava, o tornei a melhor criança no uso de espadas, provavelmente até o melhor entre os adolescentes. Portanto, o assunto envolve apenas eu e o pirralho imprudente. — Ferneck disse, levantando-se do chão.
Você perdeu a cabeça, velhote? Cuidar dessas crianças o fez se iludir com a ideia de ter uma família? A posição que lhe foi dada era apenas criá-las sob as ordens do chefe, não se impor a elas... Aparentemente, você já estava sentenciado a isso desde o início, no momento em que desejou corromper o futuro puro planejado pelo chefe. — O Segundo Ajudante respondeu, desapontado com aquela conversa.
O que tanto está resmungando, Segundo Ajudante? O futuro dessa vila nunca será puro. Assim como os moradores daqui, os ajudantes não passam de peças, mas que usam o mínimo de autoridade que tem como se pudessem ditar algo. E, sim, talvez eu tenha me apegado de mais a essas crianças. Apesar de serem problemáticas na visão da vila, meu antigo olho enxergava além disso. Passei minha vida inteira sentindo o calor da fornalha, forjando equipamentos resistentes e afiados. No entanto, pela primeira vez, senti um calor que não se pode resumir a fogo e um sentimento que atravessa qualquer resistência. E, por isso, aceito minha punição como responsável pelo assassinato de Dalan. — Ferneck tirou a mão do rosto, revelando um buraco no lugar.
Escutando toda a conversa, Sylvia ficou parada após ter sido solta, impotente por não saber o que responder ou sequer sentir-se capaz para intervir na decisão do ferreiro.
Quantas palavras bonitas. Realmente você amoleceu, ferreiro... Muito bem, se está decidido, ao menos darei a você um fim digno por seus anos de contribuição. — O Segundo Ajudante esboçou um sorriso sádico.
Saindo da casa, Ferneck o acompanhou pelo som dos passos e Sylvia, mesmo relutante e de cabeça baixa após vê-los passarem por si, seguiu atrás dele para guiá-lo na caminhada. Sua angústia era palpável, fazendo o ferreiro senti-la, mas permaneceu em silêncio. Em determinado momento, o Segundo Ajudante parou na praça central da vila e o tumulto, ainda presente por todos os lados, cessou subitamente.
A praça central está bem movimentada hoje, não acham? Abram caminho. — O Segundo Ajudante voltou ao sorriso sádico.
Assim que os moradores notaram a presença dos três, começaram a se dividir em duas fileiras, com o meio livre para passarem. Em seguida, o Segundo Ajudante cruzou a praça para subir no palco ao fundo.
Como todos já sabem, o Terceiro Ajudante está morto. Seu assassinato foi realizado por Dalan, um dos gêmeos, usando uma espada forjada pelo ferreiro da vila, Ferneck. Apesar de suas inúmeras contribuições ao longo dos anos, ele quebrou as leis impostas pelo chefe, principalmente ao treinar uma criança escondido. Isso é um ato imperdoável e, como foi decidido, resultará em execução pública. — Ele anunciou após ter a atenção dos moradores.
O anúncio chocou a todos os ouvintes e Sylvia, na tentativa de impedir Ferneck de seguir em direção ao palco, o agarrou pela camisa.
Por favor, tio... Não vá... — Ela começou a tremer, as lágrimas caíram novamente dos olhos e seu coração pulsava forte, de maneira dolorosa.
Sylvia... Não chore mais. — Ferneck disse, colocando a mão sobre a cabeça da garota.
Puxando-a para um último abraço, o ferreiro sorriu. Em seu rosto, mesmo que agora cego de ambos os olhos, demonstrou satisfação. Não havia arrependimentos.
A hora deste meu corpo velho já chegou. Era inevitável que as consequências, em algum momento, chegariam. Embora Dalan tenha se tornado habilidoso, continua impulsivo, então acabaria tomando alguma decisão imprudente. Você é mais forte e inteligente do que acredita ser, Sylvia... Por isso, confio em você para protegê-lo. — Ele sussurrou para Sylvia, fazendo-a sentir um pesar menor em seu coração.
Após tê-la afastado do abraço, virou para a multidão, onde caminhou até o palco e foi guiado por alguns moradores quando precisou subir. Nesse momento, o Segundo Ajudante o puxou até o centro, onde Ferneck ajoelhou-se diante do povo.
O sentimentalismo do ferreiro pelas crianças amaldiçoadas o fez se rebelar contra o chefe da vila. Portanto, tratando-se de uma traição, hoje faremos algo diferente das outras execuções. Para isso, peguem uma pedra e atirem em Ferneck antes de concluirmos a execução. — O Segundo Ajudante ordenou.
Apesar dos moradores não questionarem sobre a execução, era nítida a relutância entre eles, pois seria a primeira vez onde participariam ativamente daquele momento. Cochichando, alguns consideraram o meio extremo, mas logo viram-se pegando as pedras e assim, arremessaram em Ferneck. Sendo apedrejado, o ferreiro sentiu diversas feridas se abrindo em seu corpo, sujando o chão abaixo. As antigas cicatrizes foram sobrepostas por novos hematomas e, ao fraquejar com a dor e perda de sangue, permaneceu imóvel.
Maldição... Por que esse velho continua com essa postura? Você deveria estar gritando de dor, implorando para viver. — O Segundo Ajudante ficou irritado, esperando alguma reação dele, mas não houve nenhuma.
Ao longe, Sylvia assistiu a cena paralisada. Abaixando a cabeça, hesitou em continuar presenciando aquilo, vendo suas lágrimas caindo sobre o solo enquanto apertava os próprios braços com as mãos.
Dalan... Esse garoto... — Ferneck pensou, erguendo a cabeça para o céu.
Em seguida, o Segundo Ajudante o empurrou sobre uma mesa com encaixe próprio para seu pescoço. Sacando a espada, posicionou-se ao lado de Ferneck e assim, o decapitou como execução em público.