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Chapter 4 - Capítulo 4

Localização; Calisto - Vila Pequena

Baltazar

No fim do dia, o céu era coberto por tons fracos de rosa e laranja e o azul fazia falta quando o crepúsculo ameaçava cair em instantes.

Baltazar e sua filha voltavam lado a lado para casa em uma estrada de solo argiloso. Ela tinha a bacia apoiada em sua cintura e exatamente três peixes estavam dentro dela.

Mais cedo, Lira não ficou satisfeita ao saber que ele não tinha tido sorte alguma em encontrar alimento e resolveu pescar em seu lugar para não voltarem de mãos vazias. Seu pai não a impediu e esperou todo o tempo que foi necessário para ela conseguir. Um tempo se tornou minutos, logo depois horas e por fim eles passaram toda a tarde plantados no local, para cada um deles receberem apenas um peixe.

Foi um dia revoltante e torturante para Baltazar, que por optar ficar calado se tornou demasiado pensativo, e Lira muito concentrada em suas tarefas não perguntou o que se passava com seu pai, apesar de notar seu devaneio.

No entanto, Baltazar estava ciente que não fugiria tão cedo dos confrontos. Ele conhecia sua filha bem demais para acreditar que ela o deixaria em paz sobre o assunto e isso o deixava ainda mais inquieto.

Ele planejava mil e uma mentiras para enganá-la enquanto estava cabisbaixa olhando para seus pés que não sabia para onde guiá-los. Seu olhar estava perdido e a tranquilidade que sentia depois do almoço evaporou como a água quando entra em contato com fogo.

Ele era uma versão oposta do homem de manhã e tentar não pensar na conversa com a mensageira era uma tentativa falha de se esquivar dos problemas.

Por sorte, a sua cabana apontou no fim da estrada, se tornando maior a cada passo e logo seus pensamentos seriam interrompidos pelos afazeres que teria de cumprir a noite, ele se alegrara com a solução momentânea.

De longe, Baltazar vislumbrava seu filho mais novo, Menel. O menino acenava carinhosamente para eles com um sorriso gentil enquanto assava a carne na fogueira recém feita. O cheiro delicioso chegou nas narinas do pai e da filha, fazendo a língua do primeiro salivar e o estômago roncar.

Lira sorriu.

— Parece que o senhor não irá dispensar a comida como disse, não é pai?

— Claro.

Ele confirmou sem humor e ela apenas observou calmamente.

Menel estava alheio ao ânimo aflorado do pai, por ser mais jovem sua sagacidade era menor que a de Lira, fazendo-o ficar muitas vezes de fora de assuntos que eles estavam a par. Sua inocência e bondade também não facilitava, tornando-o parecido com um cordeiro. Baltazar não gostava desse traço em seu filho. Desejando que ele fosse ao menos mais esperto do que necessário, mas o homem não negava que se via nele quando mais novo.

Essa era a principal diferença entre seus dois filhos, Lira não se parecia com Baltazar, tão pouco com Menel, ela era dona de um temperamento próprio, próximo do de sua mãe. Uma menina forte, corajosa e arisca. Nada passava despercebido sobre seus sonhos e tudo que podia fazer sozinha não esperava por ninguém, era uma virtude que seu pai gabava sempre.

Apesar disso, ambos ainda tinham semelhanças. Compartilhavam de um nariz idêntico, fino e arrebitado, e as vozes finas soavam parecidas quando comparadas, a de Menel provavelmente mudaria quando ele se tornasse adulto, mas com a idade que tinha era possível confundir.

Seus cabelos, puxados de sua falecida mãe, eram dourados sob a luz do sol, mas a noite as madeixas se mostravam mais escuras ao ponto de confundir Baltazar, que deixou apenas de herança a pele cor de canela para seus filhos. Lira alguns tons mais claros que eles.

Enquanto os avaliava, foi pego de surpresa pelo abraço caloroso do mais novo em sua cintura.

— Você demorou pai e ainda assim trouxe pouquíssimo peixe.

Lira ficou ofendida com o descaramento de suas palavras.

— Cale-se pirralho. Eu matei o cervo e ainda pesquei esses peixes. Como pode reclamar assim?

— Eu assei a maioria do alimento, cuidei das hortaliças e cuidei da nossa casa.

Listou Menel, Lira bufou.

— Fez pouquíssimo comparado a mim.

— Não se vanglorie assim criança.

— Então quando devo fazer pai?

Ele não respondeu a ela, mas Menel se defendeu.

— Eu apenas perguntei porque não há mais alimentos igual antes e a cada dia que se passa se torna mais difícil para o pai. A cada dia suas mãos voltam ainda mais vazias.

— Meu filho, eu compreendi o seu questionamento, Lira é esperta quando quer ser.

Ele sorriu e o abraçou mais forte, ela então resmungou.

— Estou morta de fome, comeria um boi cru se aparecesse na minha frente. Pirralho, é melhor que a comida esteja pronta.

Menel revirou os olhos diante do seu aviso e sorriu.

— Se eu tivesse o encontrado não a deixaria comer nem os ossos.

— Você não se atreveria a enfrentar uma mulher faminta. Porque perderia.

Eles continuaram a discutir como de costume, às vezes mordiam o calcanhar um do outro, com ofensas sem grande estrago, nada que fosse incomum para irmãos. Lira e Menel tinham quatro anos de diferença, ela logo se tornaria uma mulher feita e ele era apenas um garoto.

Baltazar ainda se lembrava do dia em que eram apenas bebês que cresceram rápido demais aos seus olhos. Ele soltou um suspiro satisfeito, seus filhos afastando o problema para longe apenas por estarem presentes.

Horas se passarem até o ar se tornar noturno por completo, a fogueira iluminava alguns metros de distância e aquecia os três envoltos nela. Lira tinha um xale dado pela sua avó sobre seus ombros. Ela nunca o tirava por nada. Era a lembrança do pouco tempo que tiveram juntas. Menel ainda se fartava de carne assada, lambendo os dedos com gosto no processo.

Enquanto Baltazar, sem nada para ocupar a mente, apenas pensava e esfregava as mãos calejadas quando suas pernas tremiam. Não de frio, mas de aflição. Ele ainda estava desnorteado por conta das notícias que teve, sabendo que a cada hora que se passava era uma hora a menos para decidir sobre o seu futuro e o de sua família.

Seus nervos se encontravam à flor da pele, e sua decisão ainda era indefinida devido aos seus sentimentos conflitantes.

Para ajudá-lo a se enterrar de vez, Lira o fitou firmemente e o questionou.

— O que está havendo, pai? Divida a sua angústia conosco! Não suporto mais olhá-lo e estar assim. Pensei em esperar até que seus pensamentos estivessem em ordem e o senhor resolvesse nos contar o problema, mas parece que não irá fazer isso se não o cobrar.

Menel então prestou atenção neles, tentando entender o que sua irmã queria realmente dizer com tais palavras, mas de novo seu conhecimento era pouco.

Baltazar se levantou abruptamente depois de esfregar os joelhos. Ele alisou seus cabelos escuros puxando-os com força e disse com pesar.

— Temos que …

— Temos?

Ela cobrou, mas nada veio e isso a decepcionou muito. Seu pai não era um homem de segredos, muito menos agitado. Ve-lo como esteve todo o dia não foi fácil, pois sempre esteve acostumada com a vida comum e sem nada de novo que levavam. Se resumia a caçar alimentos, comer e dormir. As vezes ela e Menel se aventuravam pela floresta, proibidos de irem muito longe, e na maioria das vezes seu pai se encontrava sozinho, quieto e satisfeito com a vida pobre que lhes foi dada. Assim Lira era incapaz de entender o motivo do transtorno que ele sofria. Em seus anos com seu pai não houve um problema que o tirasse a paz como o que a consumia naquele momento, ela não conseguia deixar de se sentir preocupada, principalmente quando o encontrou no rio. Era o homem mais infeliz que viu em sua vida.

Então suplicou.

— Fale, pai. Por favor. Não é uma doença é? Se for conte de uma vez.

Baltazar franziu a testa.

— Graças aos deuses não. No entanto, é pior do que isso.

— O que pode ser pior do que vê-lo definhar? — questionou Menel, indignado.

O homem soltou um sorriso triste para a preocupação dos filhos, pensando que definhar não seria tão ruim assim. A parte ruim é que eles ficariam órfãos tanto de mãe quanto de pai. Mas que diferença existia entre morrer de doença e morrer lutando por algo incerto, que nem ele sabia realmente o que significava? Além de estragar completamente a vida de seus filhos.

Baltazar cerrou os punhos, ainda bastante dividido e medindo qual decisão seria a menos pior, apesar de apelar por querer dar uma vida sossegada a eles e a si mesmo, numa vila pacata e perfeitamente isolada sonhava em um dia casar Lira com um belo homem que a daria filhos e motivos para viver, ainda assim a queria por perto pois não a confiava sozinha no mundo. A Menel queria ensinar tudo que sabia e que ele um dia seguisse sua vida como quisesse também e pudesse se virar sozinho quando o pai faltasse.

Baltazar os queria afastados do exterior, queria protegê-los de todo o mal que os rodeava e os perseguia. Ele sabia que existia, pairava longe e queria estraçalha-los, mas de nada adiantou suas proteções para com seus filhos.

Agora havia um chamado que afastava qualquer esperança desse futuro. Seus desejos eram reduzidos a pó, pois existia um dever, existia Maeve, uma grande amiga e aliada que corria perigo e precisava da sua ajuda, e que certamente sofreria as consequências pelos seus atos e escolhas passadas, como ele também sofreu um dia.

E apesar de doer cruelmente colocar em risco a vida de seus dois filhos, não conseguia ignorar tal chamado, ia muito além do que ele podia controlar. Parte do seu dia foi prejudicado, não pela sua indecisão própria, mas pela angústia que Maeve sentia e transferia para ele sem querer. A ligação entre eles facilitava isso, e saber que ela era drenada e violentada sem nenhum momento de sossego não era calmante.

Ele não podia lhe virar as costas. Era mais fácil ajudá-la e proteger Lira e Menel no processo, do que ignorar o chamado, à existência de Maeve e a dor dilacerante que viria se ela vinhesse a morrer. Baltazar se culparia por toda eternidade por não ter conseguido salvá-la novamente. E não era um sofrimento que saberia lidar como da primeira vez. Ele tinha certeza disso.

Então inventou com dificuldade.

— Eu tomei uma decisão… que irá mudar completamente a nossa vida.

— Pai?

— Vivemos presos aqui por muito tempo, vocês nem sabem como é o mundo lá fora direito. E isso me preocupa na mesma proporção que me aquieta pois sei que cuidei bem de vocês.

— Espera. — exclamou Lira — Não consigo entender!

— Nem eu, pai.

— O que quero dizer é que… o mundo é hostil, violento, ruim! Se eu pudesse guardá-los para sempre e tê-los sob os meus cuidados vocês estariam seguros como sempre foram desde agora, mas receio que não será mais assim…

Lira e Menel se entreolharam enquanto notavam a tensão evidente em seu pai. A mais velha estava assustada.

— Eu estou muito preocupada com o senhor.

— Também estou muito confuso, pai.

Baltazar caminhou de um lado para o outro quando falou.

— Sou muito vivido e apesar dos anos longos que tive vocês dois são a coisa mais perto da felicidade que eu tive. Viver aqui foi o maior presente que me foi dado e lembrarei eternamente de cada momento.

— Iremos sair daqui?

Lira estava com a sombrancelha erguida e os olhos terrosos arregalados, Menel não se encontrava distante dessa reação.

Ele reclamou.

— O que? Gosto daqui! Não quero ir, pai!

Baltazar respondeu. — Tenho assuntos a tratar que não me permitem permanecer em minha casa mais.

— Pai, o senhor… — Lira cobrou novamente. — eu não estou entendendo, seja mais claro.

— Irei para uma viagem longa para fora de Calisto!

Tanto um quanto o outro não acreditavam no que ouviam, mas Menel foi o mais precipitado quando se aproximou de seu pai e disse.

— Eu não quero ir, mas também não quero ficar longe do senhor. Não pode nos deixar!

Baltazar sentiu a tristeza nos olhos de Menel. Era seu filho mais afetuoso. Então o acalmou segurando-o em seu ombro.

— Eu sei filho. Também não, por isso os levarei comigo, não tão longe quanto pretendo ir, mas farei o impossível para deixá-los seguros enquanto esperam minha volta.

— Isso é tão súbito que me assusta! — Lira estourou, sua indignação na voz era declarada quando seus braços se cruzaram. — Porque o senhor quer ir? o que precisa tratar? E com quem? Porque diz tal mal do mundo que está indo lá fora ao encontro? Não sei se sou tola por não compreendê-lo ou o senhor esconde algo que não podemos saber.

Baltazar vacilou, a ponto de revelar tudo, sorte era que ficou boquiaberto e nada saia de seus lábios. Após perceber que eram apenas suposições de sua menina esperta, ele disse com mais firmeza na voz.

— Lira, tudo no seu tempo. Nem eu sei muito bem das minhas ideias, como poderia explicá-las claramente?

— Se não tem certeza, por que decidiu? — retrucou.

— Bom, e-eu… eu tenho que me deslocar porque é um assunto que necessito resolver com urgência e não pode ser parado aqui!

— Mas, como um assunto surge assim? Tão repentinamente? Porque essas palavras calorosas soam como se estivéssemos em perigo?

— Sempre há perigo no mundo seja você quem for querida.

Ela não parecia contente com suas meias verdades, e a desconfiança era clara em seu rosto. Lira seria um grande obstáculo quando se tratasse de esconder seus segredos.

Baltazar então mentiu mais. Olhando para longe.

— Recebi uma carta.

— Oh! Quem foi a pessoa que escreveu para o senhor?

— Uma conhecida.

— Conhecida? — ela estranhou — O senhor nunca citou outras pessoas além da nossa pequena família.

— É… é… é uma velha amiga! — concluiu — Alguém que devo muito e preciso retribuir alguns favores.

— Entendo, — sua filha parecia conformada com a explicação, porém ainda inquieta. — Mas isso custa uma mudança tão drástica na nossa vida? Podíamos esperar que voltasse das suas obrigações. Cuidaria de Menel e das coisas por aqui até voltar. Não precisa de um alarde.

— Como pode sugerir isso? — perguntou Menel em desacordo. — Não quero passar um tempo indefinido com você sem o nosso pai!

— E eu não confio em meus dois filhos aqui sozinhos!

Lira então apontou. — O senhor acabou de dizer que nos levaria, mas não iríamos tão longe. Porque insiste que devemos ir, se podemos ficar?

O homem explicou. — Aqui não tem mais alimentos como antes. O que fará se um dia não encontrar mais nada sem mim aqui? O que farei se souber que os deixei com tão poucas reservas? Não posso deixá-los! Irei levá-los até certo ponto que considero seguro para que quando eu voltar estejam esperando por mim. Essa é a minha escolha e peço que ambos colaborem comigo. Não é uma decisão fácil, gostam dessa vida e eu também. É bom estar longe de problemas, mas não tenho tudo que quero. Esse mundo sempre se mostrou injusto comigo e com aqueles que me rodeiam. Me perdoem.

— Pai.

Ele se deteve quando se virou para sair ao ouvi-los chamarem em uníssono e ordenou finalmente.

— Iremos sair amanhã a primeira luz do sol. Peguem o que lhe for de valor e levem!

— E como sobreviveremos na cidade?

— Um problema de cada vez, Lira! — sua voz foi mais elevada do que desejou. — Descansem, quero ambos renovados amanhã.

— Mas…

— Lira!

Ela tremeu.

— Me obedeça, tolerei seus questionamentos porque precisava dá-los, mas uma vez que ordenei que faça algo deve obedecer calada.

Sua resposta não demorou.

— Sim, senhor.

Ela se retirou com Menel, se enfiando na humilde cabana e deixando Baltazar sozinho. Ele ainda ouvia cochichos de Menel lá dentro, provavelmente ele estava confuso e questionava Lira, enquanto ela seguia desconfiada.

Não era uma mistura boa, mas Baltazar não esperava apoio.