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Chapter 9 - Capítulo 9

Localização; Calisto - Vila Pequena 

Baltazar os enterrou perto da cabana, não tão perto para se depararem quando acordassem ou andassem pelas redondezas, mas não tão longe para caminharem horas até chegar no destino.

Era uma distância suficiente para ele, que com seu burro conseguia chegar em menos de meia hora, mas que ainda assim um Menel desacostumado reclamava. Ele não veio visitar os seus parentes falecidos na mesma quantidade de vezes que Lira. Baltazar também não o trazia com frequência, por simplesmente não querer, e a irmã dele não fazia pois era ocupada demais no dia a dia, então sua noção sobre o lugar era mínima.

— Já chegamos?

Após a mesma pergunta pela décima vez, a resposta veio diferente.

— Sim, filho.

Lira saltou da carroça sem aviso, permanecendo em silêncio e parando em frente das três sepulturas em conjunto. Foram um dia pai, mãe e filha. E a menina chorava ao se lembrar de memórias esparsas de sua infância caótica. Ela não os conhecia tanto quanto queria, seu avô morreu antes de nascer, sua avó meses depois, sua mãe era a memória mais fresca que tinha e ainda assim a mais dolorosa. 

Era estranho para ela vê-los enterrados e deveria ser ainda mais para Menel, que não teve o prazer de conhecer nenhum dos três. Baltazar não sabia o que era mais doloroso, conhecer e perder, ou nunca saber como eles eram realmente e viver com essa saudade estranha. No entanto, ele sentia pelos filhos e por ele mesmo.

Assistindo-os próximos aos túmulos, se deparou com as memórias que vieram assombrá-lo de novo, e Baltazar se viu em anos atrás, quando era mais jovem, mais forte e sem motivos para viver. Naquela época, ele foi ajudado por eles.

Enquanto bebia mais água do que poderia e quase perdia a consciência, Baltazar foi arrancado do seu transe sendo pego por mãos firmes e famintas, e gritos desesperados. Eles o levavam para a superfície. 

Sua visão estava escura, mas se lembrara de sentir frio e ser arrastado pela terra com impaciência e urgência. Talvez fosse a fraqueza que o deixava confuso. Não sabia ao certo.

Quando acordou ou pôde notar em algum momento os arredores, tossiu como se estivesse doente, cuspindo água e tentando se orientar. Suas mãos e pernas estavam pesadas e ele sentia cãibra em partes do corpo enquanto piscava. 

A respiração rápida combinava com sua boca aberta e seu olhar exausto para onde estava o deixava inquieto. 

Ele se ergueu, esforçando o antebraço para sustentar seu peso e logo foi empurrado para se deitar de novo.

Quem o empurrava não tinha tanta força comparado a ele, e logo descobriu de quem se tratava. Era um homem de idade, com a pele flácida e dentes faltando em seu sorriso amarelo, o mesmo repreendeu.

— Fique quieto moleque. Deite-se!

Ele recebeu alguns tapas na cabeça do mais velho, golpes fracos demais para se preocupar, mas que doíam ainda assim. 

Então obedeceu.

Ele estava sobre uma esteira que não era nada confortável e sobre uma cabana feita de palha, singelo demais para ser chamado de casa, mas que parecia proteger dos dias quentes e das noites frias.

Não tinha muito o que olhar, tudo era escasso, nas paredes não haviam janelas e era escuro, sendo iluminado apenas pela porta de palha aberta. Havia uma mesinha com odres cheios de água em cima, mas até a madeira estava desgastada.

Se virando novamente para o homem cheio de verrugas escuras na pele clara, percebeu que ele também o analisava calmamente, estudando-o. Sua expressão impassível não revelava nada, mas era o suficiente para deixá-lo desconfortável em tal presença.

Só depois que o mais velho o cobriu com um lençol fino e gasto que não fazia diferença alguma, ele se acalmou. Compreendendo que era uma ajuda, não um inimigo.

A dúvida que restava era como um homem de idade, fraco demais para caminhar sozinho conseguiu arrastá-lo para dentro da cabana?

Como se lesse seus pensamentos, ele respondeu devagar.

— Jovem, você caiu no rio e se afogou, por sorte eu e minha família o encontramos antes. Como agradecimento você poderia dizer seu nome?

O garoto se sentiu surpreendido, não era acostumado a ser desconhecido, mas estava aliviado por isso, pelo menos evitava perguntas e dor de cabeça.

Não tendo uma resposta pensada para essa pergunta, ficou em silêncio por um momento.

Não contente, o homem insistiu.

— Qual o seu nome pirralho? Desembucha, não sou paciente.

— E-eu sou…

— O que? — o velho aproximava o ouvido para escutar melhor.

— Eu sou…

— Não escutei, estou surdo!

Falou novamente como se quem estivesse surdo não fosse ele.

Pensando um pouco em alguns nomes, finalmente falou firme e com a voz elevada.

— Baltazar! — repetiu — Baltazar, senhor!

— Oh, Baltazar. Senhor está no céu! Não deve me tratar como se eu fosse um velho, é desrespeitoso.

Baltazar tentou ser compreensivo e assentiu.

— Me perdoe.

— O que fazia pensando em beber toda a água do rio? Quase se afogou por tamanha tolice.

— Eu…

— Você? O garoto perdeu a língua? Demora tanto para falar que sinto que vou morrer antes do fim de cada palavra.

— Eu caí.

— Repita mais alto!

— Eu caí! No rio.

— Oh, caiu no rio? Que estranho. O rio é tão raso que até me assustei quando o vi naquele estado. Se sentiria ofendido se eu dissesse que foi vergonhoso?

— Não.

— Pois foi, nunca senti tanta vergonha de ver um homem se afogar em um rio menor do que seu tamanho.

Baltazar nada acrescentou, observou o homem se levantar, se afastar e pegar o odre em suas mãos. Ele o trazia até a cama de palha. Depois o entregou a Baltazar.

— Tome um chá. Você ainda está com frio. Sei que minha casa é simples, mas é aconchegante. Você ainda me parece assustado. Por favor, não fique. Um velho igual eu está a ponto de ser levado pelo vento de tão fraco. 

Baltazar deu um meio sorriso. tomando um gole do odre. — Não, não é isso, só pensei que… pensei que ia morrer.

O homem quase revirou os olhos quando o ouviu, ou se fez, pois sua audição já não era a mesma de antes.

— Com quase oitenta anos você irá se assustar quando notar que lhe faltam anos ainda para ter esse tipo de pensamento. Você é apenas uma criança.

Baltazar discordava, as palavras do homem não faziam sentido para ele, mas ainda assim agradeceu.

— Obrigado, mas devo ir!

— O que? — o homem o impediu de ir mais longe — Fiquei aí moleque, você não está bom ainda!

— Não quero perturbá-lo, preciso sair, encontrar um lugar para ficar. Aliás, onde estou?

Pela forma como ele o olhou, pensou que tinha falado baixo de novo e quando ia repetir a pergunta, o velho respondeu.

— Calisto.

Baltazar arregalou os olhos, perguntas desordenadas surgindo, como ele havia parado ali e porque? Ele estava longe e ao mesmo tempo perto de problemas, não foi calmante.

— Pai. 

Tirando de seu devaneio e interrompendo a conversa, uma moça surgiu na entrada da cabana. Seu sorriso era tímido e seu caminhar incerto, como se estivesse envergonhada. Ela trazia panos quentes consigo e se aproximava lentamente.

— Rapaz.

Baltazar se virou para ele, notando que olhara demais para a filha.

— Essa é Luzia, minha menina. Olhe como ela é bonita.

Baltazar não discordou ou concordou, apenas trocou um olhar com ela. Sua pele era clara iguais aos seus cabelos loiros, seu corpo fino, seu sorriso tímido, e em seu rosto ele não enxergava nada mais do que uma garota gentil da sua idade.

De longe as orelhas da mesma queimavam.

— Não seja indelicado, pai! — depois ela falou a Baltazar — Trouxe alguns panos quentes para a sua cabeça. Estava gritando de dor quando estava dormindo. Parece que bateu com ela também.

Baltazar estendeu a mão para a testa, doía ao toque como falado.

— Obrigado.

— Luzia, o nome do rapaz é Baltazar, o que acha dele?

— Pai.

— Não seja tola, o rapaz é bonito, você também é. Ele só é burro por se jogar no rio raso e se afogar.

— Pai!

Baltazar interrompeu a interação.

— Desculpa. Está tudo bem. Vocês me salvaram?

O velho se animou.

— Sim, eu, Luzia e sua mãe. Ela é rabugenta, mas uma boa mulher.

— Compreendo.

— Umas coisas vieram com você. — Luzia falou ainda da porta.

— O que? Onde estão?

Ela trouxe consigo três objetos valiosos do lado de fora e os entregou a Baltazar em mãos. Os dedos se tocando tão levemente e ainda assim causando sorrisos no lábios dela e arrepios nos braços dele.

Luzia explicou.

— Quase não achei a adaga, o livro por algum motivo estranho não molhou, mas o manto não foi poupado.

Baltazar tocou no tecido úmido e o apertou com força. 

— Não há problema. — ele não se deu ao trabalho de se explicar. — Obrigado.

Eles não insistiram, mas o velho disse impaciente.

— Pare de agradecer, criança, de tanto falar bobagens te escuto sem querer, e quando fala o que realmente quero ouvir, não entendo.

O homem foi pegar chá para si, querendo acompanhar Baltazar, que não se incomodou com as palavras rabugentas dele, apenas lançou olhares a Luzia, que se lembrou dos seus afazeres de última hora.

— Com licença, irei preparar o almoço.

Baltazar assentiu, olhando-a sair da cabana e sendo deixado com seus pensamentos, estar em Calisto era um rumo que ele não esperava ou gostava. Nunca havia pensado nessa possibilidade e ainda assim estava ali. O mais difícil era imaginar para onde iria, como iria viver ou se virar em um novo lugar. 

Ele puxou os fios que caiam em sua testa como punição para si próprio, e ouviu o homem.

— Estou em dúvida se te pergunto de onde veio ou para onde vai?

— As respostas seriam não sei! 

Era uma meia verdade, pois não poderia ser sincero.

O velho pareceu cansado. Como se refletisse. Então completou.

— Se não tem para onde ir, fique. Tem sempre espaço para mais um. Sorte sua que preciso de mãos jovens e potentes para cuidar do local. — o homem ofereceu a um Baltazar assustado — Não tenho riquezas nem nada, vivo de caça, bebo água em rios e vivo cada dia isolado aqui. Mas estou velho, a beira da morte, tenho uma filha inocente e pura que conhece poucos homens para se casar e uma mulher rabugenta que é caipira demais para lhe mostrar o mundo. 

— Você não me conhece direito, não sabe nada sobre mim para me oferecer algo assim! — rebateu Baltazar com a testa franzida.

— Conheço a cara de alguém que precisa de um lar para ficar rapaz, foi assim que cuidei de Luzia com minha mulher.

Baltazar abriu a boca e fechou, notando que Luzia não era nada parecida com seu pai e provavelmente não parecia com a mãe também, já que ela não era a verdadeira filha deles, apenas fora criada como uma. A informação o pegou desprevenido e ficou ainda mais chocado com o qual fácil de ler ele estava sendo.

O velho continuou aos resmungos.

— Sei que não tenho nada e isso me traz conforto, pois assim não tenho nada que queria não é, Baltazar? Então fique, considere o pagamento pela minha ajuda. Poderia ter morrido, não me faça me arrepender de não ter deixado. Quando estamos velhos o desespero é perturbador, quero deixá-las em boas mãos. Não tenho tempo para escolher a melhor mão. É rezar para que essa seja.

Baltazar estava tão desnorteado que não tinha como agir naquela situação, o melhor que fez foi estender sua resposta da forma mais educada que podia.

— Eu preciso de um tempo. Ainda não os conheço, não sei como é a vida aqui.!

— Bom, pense. O deixarei por enquanto, no meio do dia o almoço estará pronto. Luzia cozinha bem…

A lembrança de como se conheceram trouxe um sabor salgado para os lábios de Baltazar, como foi a comida de Luzia naquele dia, depois de almoçarem conversaram por horas na floresta, em pouco tempo ele descobriu mais sobre ela do que queria. Luzia chamou sua atenção, talvez fosse a beleza inconfundível, o jeito doce de ser ou sua procura incansável pela felicidade, ele não sabia, só decidiu permanecer com eles e cuidar daquela família. Não foi difícil se acostumar, eles tornaram tudo fácil, e Baltazar se via na obrigação de protegê-los, logo quando se habituou casara com Luzia com a benção dos pais e meses depois a engravidou, foi tão rápido quanto acabou, mas sabia que tudo em sua vida era assim. 

Lira pousou um buquê de flores simples e selvagens que nasciam pela floresta nas sepulturas de sua mãe, depois foi para a sua avó, por fim seu avô, Lira se ajoelhou diante deles e alinhou suas mãos para rezar. Menel a seguiu e Baltazar foi logo atrás. 

Ele pediu

Que os deuses iluminem os seus caminhos e reservem para vocês um lugar bom ao lado deles. 

Parte desse desejo era que descansassem em paz e protegessem eles da viagem longa que teriam, além de algumas outras palavras de afeto que Lira e Menel diziam em voz alta. Quando terminaram de se despedir, o sol estava escaldante e já passava da hora de ir. Baltazar se apressou com eles e antes de realmente deixar a vila pequena, sua vida para trás, e a família que construiu e perdeu, ele prometeu baixinho

— Prometo não permitir que mal algum aconteça a eles, Luzia.

Ele falava olhando para trás, o aperto em seu peito indicava que era só o começo, mas ele desejava estar errado. Foi só quando encontrou uma encruzilhada e teve que decidir qual dos três caminhos seguir que notou que já estava distante de casa e distantes da proteção que o lugar o entregava.

— Pai para onde iremos?

— Adiante, sempre em frente.

Ele seguiu reto, dessa vez sem olhar para trás e sem medo, depois que passou pela encruzilhada parecia tirar um peso de seus ombros, mas não sabia se podia tranquilizar. Nas próximas horas eles continuaram caminhando, Baltazar queria encontrar uma cidade em busca de respostas, tinha que saber onde estava a família Agnes e só depois ir ao encontro de Maeve.

Essa era sua missão inicial, e ele não estava ansioso, principalmente quando sabia que não seria tão fácil.

Até lá se sentiu exausto.