Localização; Calisto - Vila Pequena
Baltazar
Seus pulmões se enchiam de água salgada enquanto se debatia nas correntezas impiedosas. Sua visão escurecia e era impossível manter a calma em sua condição, o desespero sendo muito mais dominante que qualquer outro sentimento.
Ele não se lembrara de quando caiu ou como veio parar em tal estado, só se recordava de se sentir molhado, aflito e desnorteado poucos momentos atrás.
As esperanças eram escassas e as dúvidas pareciam neblinas sem um sol à vista.
Ele via apenas azul e mais azul, que um dia o alegrara e fora motivo para deixá-lo feliz, mas que no momento se reduziu a desamparo e morte.
Ele iria morrer, era seu destino quando se afogava mais e mais no meio do nada, cada lufada de ar era uma a menos para sua vida deplorável, e o medo que irradiava tomava conta de seu ser.
Suas mãos ficaram submersas junto do seu corpo que era agarrado para dentro do mar, como se uma força o puxasse para baixo e quisesse mantê-lo preso. Ele gritou, ou tentou. A voz saia e não era ouvida, e ao abrir a boca engolia água aos bocados. Sua luta durou por um instante, e quando não resistiu mais, era por fraqueza. Se deixando levar finalmente pelo cansaço.
Por um segundo uma calma surgiu, era um descanso, pensou. Um fim para todo sofrimento, e ele não queria, mas era impossível não desejar que tudo acabasse logo. Que ficasse em paz finalmente.
Baltazar se sentou de uma vez quando acordou, seu corpo estava todo suado quando ele pousou sua mão em seu peito, sentindo as batidas irregulares de seu coração que doía como nunca. Como ontem.
"Foi um pesadelo, apenas um pesadelo como todos os outros." Se consolou.
Olhando ao redor com mais calma, sentiu a escuridão cobrindo o ar. Ainda amanhecia lentamente pelo lado de fora e após reparar bem em Lira e Menel, os encontrou desacordados do outro lado da pequena cabana.
Ele suspirou, mexeu no pescoço dolorido, se levantou e dobrou a esteira que dormia, colocando no canto com uma troca de tecidos velhos que usava como travesseiro.
Depois ele separou o que levaria para a viagem sem muito barulho. Não era muitas coisas que tinha, apenas uns móveis deixados pelos seus sogros que não davam para ser levados, objetos de aço que eram pesados demais e roupas esfarrapadas que não tinha a opção de deixá-las, pois eram as poucas que tinha.
Suas condições eram simples, sem nenhum luxo para se apegar e carregar consigo, mas existia algo que precisava demais.
Baltazar se dirigiu para fora com lenhas nas mãos. Ele pegou duas pedras e bateu nelas até uma faísca sair, logo uma fogueira foi acesa e uma cumbuca de água colocada para esquentar junto com a erva-doce que Lira trazia de seus passeios pela floresta.
Seu corpo aquecia um pouco pela proximidade com o fogo na manhã gelada e isso trouxe algumas lembranças distantes de Maeve. "Ela estava bem?" Se perguntou. Então fechou os olhos, sabendo que com certeza não.
Quando amanheceu seu peito ainda estava dolorido sem nenhum indicativo que pararia de doer, assim como seu pescoço, tornozelos e pulsos. Estavam sensíveis ao toque e ele se deu ao trabalho de ignorar por enquanto.
Afastando-se do calor, se dirigiu para a floresta trazendo uma pá consigo. Sua caminhada durou uma queima de vela até encontrar uma figueira marcada com um oito deitado no tronco. A mesma que marcou quando decidiu morar na cabana. Ele se lembrava como se fosse ontem e tocava na mesma como fez na primeira vez. A sensação inquietante não mudava.
Ele deu algumas batidinhas como um comprimento e se virou dando cinco passos largos para trás. Era ali que havia enterrado seus segredos mais obscuros e não tinha pressa para desenterrá-los, apenas necessidade.
Quando escolheu ficar isolado do mundo e criar uma família com sua falecida esposa, imaginava que o passado não viria assombrá-lo, que poderia esquecer tudo e seguir em frente, sem se preocupar com mais nada, sem pensar em Maeve e na união entre eles. No entanto, não era assim, e lá estava ele desenterrando memórias de novo. Se reencontrando com quem foi antes de estar em Calisto.
Não era aconchegante estar diante das lembranças, era sufocante, aterrorizador. Trazia sentimentos conflitantes, era um desejo imenso de fugir, ignorar o comando explícito da mensageira e esquecer tudo de ruim que já passou, mas seu instinto repudiava tal ideia, mesmo que fosse interessante. A ligação entre eles o torturava, enquanto ele sentia ela sendo ferida e humilhada.
Sua vontade também era de encontrá-la, salvá-la e ser útil, não incapaz como foi da outra vez. Ele não a queria decepcionada com sua pessoa e Baltazar não sabia dizer se sua preocupação era realmente por causa dela ou por ele. Pelo medo de falhar e se culpar se ela morresse nas mãos dos magos.
A bile queimou em sua garganta quando imaginou tal cena, a dispersando no mesmo instante quando continuou a cavar com dificuldade um buraco de seu tamanho.
A terra era vermelha e barrenta, sendo um obstáculo encontrar seus pertences facilmente, mas então ele vislumbrou um brilho no fundo, abandonou a pá e cavou com os dedos calejados como um cachorro escondendo seu osso.
Logo seu tesouro tomava forma quando desenterrava o caixote grande, era um baú qualquer que na época comprou com vendedores fajutos, não protegia de nada, por isso o enterrou e marcou o local. Desde então não mexeu mais nele, às vezes passava por ali, mas apenas para ver se não tinha sido violado ou descoberto, nada a mais que isso. Chegou um tempo que ele não veio mais e nem conseguia lembrar quando foi a última vez. "Talvez meses antes do nascimento de Menel?" Ele realmente não se lembrava.
Baltazar deu palmadas na caixa, tirando a terra grudada na madeira e analisando até demais. Ele engoliu em seco, seus ombros caíram e um ponta de decepção veio de repente. Ele alisou sem querer, e era como se uma energia vinhesse de dentro e ressoasse em todo o seu corpo, trazendo arrepios. Para não se abater mais, bateu de uma vez na fechadura e ouviu um estalo quando abriu, já estava enferrujada pela umidade e pelo tempo, não sendo nem um pouco a mais segura.
Então tomou toda a coragem para abri-la, pensando duas vezes antes de fazer, e quando notou já tinha feito.
De dentro a cor lilás ofuscava a sua visão. Ele cobriu seus olhos em resposta e quando todo o brilho começou a cessar alguns itens se destacaram.
O primeiro era uma adaga antiga, afiada até no cabo, de longe diriam que ela era importante pela forma como foi forjada, mas para Baltazar era de grande valor por causa de quem a presenteou, ele não se esqueceria. Ao tocar o material com cuidado para não se cortar, o observou com admiração, um sorriso fraco surgindo em seus lábios, depois o apertou com força e sacudiu a cabeça para sair do transe que a adaga trouxe. Quando ficou satisfeito, guardou-a em uma bainha que trouxera justamente para ela.
Sua atenção mirou em um manto negro e de textura grosso, foi usado há muito tempo e pesava sobre seus dedos. No passado não tirava ele, mas teve que se desapegar a força no presente, de alguma forma não fazia mais sentido usá-lo como antes.
Por último um livro pesado. Esse iria precisar como nunca, seu cheiro de quando era mais novo ainda emanava das folhas. Quando ela aspirou teve lembranças vagas de quando foi jovem.
Ao fechà-lo, Baltazar apertou os materiais sobre si e começou a sair do buraco e cobri-lo na hora seguinte.
Quando voltou para casa, ainda era cedo, talvez a segunda hora do dia. Lira e Menel já estavam acordados e tinham expressões abatidas e cansadas no rosto. Como se dormir não tivesse feito diferença nenhuma.
Sua filha abraçava seu corpo fortemente e nem sequer olhou para ele quando se aproximou, apenas mirou no baú que o pai trazia consigo.
Menel olhava inexpressivo para o nada com uma caneca de chá em sua mão e assoprava o conteúdo perto da boca. Diferente de Lira, ele foi mais receptivo.
— Papai, bom dia.
— Bom dia, filhos.
Baltazar apertou a nuca de Menel e beijou sua testa, o mesmo cumprimento fez com sua filha. As reações obviamente foram distintas, com ela se afastando magoada pela conversa de ontem e ele apenas aceitando o afeto do pai.
Baltazar não foi movido por nenhum dos dois e apenas concluiu com pesar.
— Devemos nos despedir deles.
Suas palavras foram suficientes para chamar a atenção deles, mas foi Lira que se revoltou.
— Então iremos mesmo?
A pergunta ficou no ar, sendo respondida pelo silêncio inquietante de Baltazar.
Ela assentiu e marchou para dentro da cabana, crente provavelmente que Baltazar desistiria no outro dia de ir embora, infelizmente não foi como ela havia previsto.
— Menel, já arrumou suas coisas?
O menino apontou para a pilha de roupa encostada na árvore mais próxima.
Baltazar assentiu e depois foi para a cabana pegar suas coisas sem muito o que dizer, quando passou da abertura, assistiu lágrimas escorrendo pelos olhos de Lira, ela arrumava suas coisas às pressas e com revolta ao mesmo tempo. Doía tirá-los de casa.
— Lira, é por pouco tempo. Talvez semanas, vai ser apenas até alguns assuntos serem acertados.
Mentira.
Baltazar não fazia ideia de quando demoraria até chegar em Maeve e qual caminho traçar. Voltar era inviável até reencontrá-la e ele sabia que não seria fácil ou simples. Havia barreiras, muralhas, inimigos, tudo que pudesse atrasá-lo ou impedi-lo de retornar. Seria uma missão das mais difíceis. Porém, ele não queria pensar demais, temendo desistir antes de sair de vez da cabana.
— Não é assim. Sei que não é — resmungou com a voz embargada. — Se fosse não precisaríamos nos despedir, se fosse eu poderia ficar com Menel e esperá-lo, se fosse não precisaríamos levar tudo que temos.
Ela lançou um olhar afiado para ele.
— Até um baú você… — ela pausou — Você está levando tudo que tem, até o que eu não sabia que existia.
Baltazar suspirou. — Vou terminar de pegar as coisas. Me espera com Menel.
Ela saiu sem falar mais nada, ele pegou o que faltava, embolou como uma bola e levou para fora.
Havia uma carroça encostada na estrada adiante da cabana. Ele seguiu por lá e avistou fedor, seu burro que ganhou e criara com estima. Não era novidade que ele precisava de um bicho para se locomover, e um jumento era muito mais barato de se manter.
Ele alisou o pelo cinza.
— Bom dia, bicho feio.
Sorriu ao ouvi-lo relinchar e jogou as coisas por cima da carroça, Lira e Menel também fizeram sem reclamar e não demorou tanto quanto pensava que demoraria para saírem. Eles se organizaram e seus filhos se sentaram na carroça, cada um olhando para um lado.
Baltazar então caminhou a pé, puxando a corda com fedor o seguindo.
Ele os levaria para verem seus avós e a mãe falecida onde havia enterrado quando morreram.
Seria talvez o último contato que teriam depois que saíssem, Baltazar almejava que não, mas a aquela altura não se esperava mais nada do destino.