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Chapter 3 - Capítulo 3

Localização; Calisto - Vila Pequena

Baltazar

O clima era ameno e tranquilo às margens do rio claro. Os pássaros cantavam entre as árvores e alçaram voo quando se cansavam de um lugar e procuravam alimento em outro. Os ventos uivavam e batiam entre as folhas que se moviam e Baltazar assoviava em conjunto com a natureza.

Muitos poderiam apelidar aquela calma invejável chamando-a de silêncio ou de solidão, mas para o homem parecia como uma canção que almejava poder ouvir diariamente. Uma paz que de certa forma nunca pode ter por completo, e seus olhos fechados ampliavam a sensação serena que a clareira diante do rio trazia.

Quando era menino nem sempre gostou da natureza, mas a dúvida pairava se era porque não tinha oportunidade de presenciar os lugares ou se realmente não gostava na época. Fosse o que fosse, atualmente era seu ritual ir até o rio pescar e descansar seus ossos ali como se fosse uma casa.

Tirando-o de seu sossego, finalmente o anzol pesou. A linha pedindo para ser encurtada com urgência, e Baltazar não esperou mais, girando rapidamente o carretel e puxando a vara para trás também. 

No processo, notou que o peixe era bem grande e isso despertou um sorriso contente em seus lábios com a fartura no jantar. Suas duas crianças iriam ficar animadas quando vissem que sua preocupação com o dia seguinte seria adiada. Pelo menos eles só pensariam em encontrar um cervo daqui dois ou três dias, isso é, se não tivesse o azar de hoje.

Por conta da escassez de animais na floresta, ele tinha que optar muitas vezes pela pesca, mas nem sempre o rio era generoso. A verdade inegável era que estavam passando por dificuldades, e ele mentiria se dissesse que não estava desesperado quando não tinha nenhuma solução à vista. 

Imaginar seus dois filhos pedindo comida e não ter nada para dar a eles não era um dos melhores cenários. Baltazar então afastou os pensamentos negativos puxando o anzol para a superfície de uma vez, não esperando que seu peito acelerasse de repente o impedindo de agir.

A sensação semelhante à de anos atrás retornou com força. Era uma chama apagada que se reacendeu sem qualquer aviso, queimando-o e ocasionando uma dor abrupta que o fazia tocar o local em resposta. 

Parecia que iria morrer ali mesmo quando seu corpo tremia violentamente, a garganta ficava seca e ele se deitava na terra para diminuir sua angústia, se debatendo enquanto seu rosto enrugava com a dor. Naquele momento, ele já havia soltado a vara de pesca e perdido o almoço de hoje que nem conseguia lamentar em meio ao sofrimento.

Eram pontadas fortes no peito, e após um momento de pânico seu único pensamento foi em um nome… 

— Maeve! — chamou.

Sua respiração estava frenética enquanto rolava, o canto de seus olhos franziram e suas pupilas dilataram, a dor sumindo lentamente e renascendo aquela chama que aquecia todo seu ser, era por algum motivo reconfortante e inigualável. Doloroso e suave. 

Ele não conseguia negar o retorno dela. O retorno de Maeve. 

Sua boca se curvou em um sorriso pequeno e suas pálpebras caíram. Era confuso demais e ao mesmo tempo natural, como se esperasse por aquilo há muito tempo, mas não acreditasse que realmente acontecia.

— Já saiu do seu torpor, escolhido?

Baltazar se alarmou novamente, tentando se levantar no mesmo instante com a voz súbita que surgiu.  Ele procurou o dono da voz ao seu redor e quando o vislumbrou à sua direita, ficou imóvel.

Uma mulher idosa estava diante dele, olhando-o cautelosamente. Seus cabelos eram brancos como as nuvens e seu rosto inconfundível como o céu. Ela estava longe de ser bela com a pele pálida toda enrugada e cheia de símbolos e letras que ele desconhecia, mas sua presença era marcante e encantadora. Parecendo como se fosse a primeira vez que a viu e sentiu uma dor parecida como a de minutos atrás. 

Baltazar a conhecia e pediu inúmeras vezes há algum tempo para que nunca tivesse a conhecido. Ele esfregou seus olhos, uma tentativa falha de se enganar que a mulher não estava ali, mas quando voltou-se para ela outra vez, a mensageira ainda estava lá como sempre. Esperando que ele caísse na realidade.

Não foi fácil.

— Mensageira.

— Sentiu minha falta?

O homem soltou um longo suspiro.

— Acreditaria se dissesse que não?

Baltazar se endireitou, sacudindo sua roupa cheia de poeira, depois ele olhou para o rio evitando o contato com a mulher que um dia acreditou e confiou fielmente. Já havia anos, décadas que eles estavam no mesmo lugar e trocaram palavras, e falar que era estranho vê-la não seria incomum, mas ele se manteve calado, deixando o silêncio pairar entre eles.

A mensageira no fundo sabia como ele se sentia desconfortável, sua postura tensa e inquieta mostravam que Baltazar preferia estar em qualquer lugar longe dela, mas ela não poderia fazer nada sobre isso. Então tomou as rédeas da conversa.

— Você seguiu a sua vida…

— O que esperava encontrar? — ele retrucou com a voz elevada, fazendo ela estreitar o olhar para ele. — Tinha que procurar minha felicidade e seguir adiante.

— E encontrou? 

A pergunta foi solta no ar e lá mesmo ficou. Baltazar não a respondeu, a verdade era óbvia.

Após um silêncio desconfortável, ela continuou.

— Você não me chamou mais, foi silencioso por todos esses anos.

— Dezoito anos e um dia para ser exato. Faz todo esse tempo que você virou as costas para nós e sumiu.

As palavras afiadas a atingiram.

— Como se tivesse muito o que fazer.

— Porque está aqui, mensageira? — Baltazar finalmente se virou para ela. Acusações não totalmente ditas em seu olhar raivoso.

— Você sabe. Maeve voltou.

As batidas do coração do homem se descontrolaram de novo. Uma coisa era sentir Maeve voltando, outra era ter alguém confirmando isso, não alguém qualquer, mas a mensageira que guiou tanto ele quanto Maeve quando eram mais jovens e sabiam pouco sobre quem se tornaram. Baltazar não sabia como agir quando a mensageria continuou.

— E isso desencadeia uma sequência de acontecimentos que somos responsáveis.

— Você é responsável!

— Nós somos! — corrigiu — Se tornou assim desde que você recebeu a marca com ela.

A mensageira puxou seu braço violentamente, seu toque era frio e assertivo, girando seu pulso e o desnudando para que o céu olhasse de cima o infinito desenhado ali. Era tão negro que gritava em sua pele.

Baltazar franziu os lábios com a vista que fazia de tudo para ignorar. Era seu segredo mais obscuro, mas era a luz que guiava os que não sabiam muito do seu passado. Era o que dava respostas a perguntas que ele não pretendia responder.

— Eu nunca tive uma verdadeira escolha sobre isso.

— Escolhidos também fazem escolhas, Gu…

— Eu. Nunca. Pude. Escolher!

Baltazar interrompeu, se desvencilhando violentamente do toque da mensageira. Em seguida ele olhou para além das árvores, a conversa com a mulher estava o envelhecendo dez anos mais.

— Me ouça, agora fará. Há uma missão que precisa cumprir. Um dever que está em andamento, respostas que precisa ir atrás. 

A mensageira falava e falava, e por um minuto Baltazar compreendeu por que Maeve em um momento desgostava da mulher. Ela era como Maeve dizia, só aparecia quando era para dar ordens ou quando tinha problemas. Nunca seria para realmente ajudá-los como um dia ele acreditou.

Considerando suas palavras ele defendeu firmemente.

— Tenho filhos, um lar, uma vida para cuidar... Não desejo voltar de onde eu parei, escolhi isso um dia e estou assim desde agora. E estou muito bem.

— Maeve está sozinha em Avalon. 

— O que?

Sua voz escorregou ao ouvir a informação.

— Sim.

— Porque Avalon? Porque Maeve retornou? Você tem algo haver com isso, mensageira?

— Não sei, não sei e não. — ela levantou uma mão para cima como se pedisse para ele parar de acusá-la. — Seria irônico se dissesse que ela está nas mãos dos inimigos. 

— Os magos a matarão na primeira oportunidade.

Baltazar concluiu com a voz pesada, pensando em Maeve sendo ferida por eles. Ele pousou sua mão em sua testa e caminhou de um lado para o outro.

— Por isso Maeve precisa de você o mais rápido possível e sei que não negará isso… É contra a natureza de ambos. Enquanto estiverem vivos irão um ao rumo do outro se salvar. Não importa o que você construiu depois e o quão forte o que construiu é. Ainda é um escolhido, isso não se desfaz. 

Baltazar parou, não era tão fácil quanto a mensageira fazia parecer. Antigamente ser um escolhido não custou tão caro quanto agora poderia custar e isso não facilitava sua escolha. Seguir o destino não era mais simples que fazer um. Ambos doeriam.

— Sinceramente, não me importo com esse lema tolo que foi destinado a nós dois e sei que ela também não gosta nem um pouco disso.

A mensageira então concluiu após massagear suas têmporas.

— Maeve tem suas qualidades, mas é impulsiva, cabeça quente e indomável. E você é o oposto dela, o complemento perfeito e muitas vezes destruidor. No entanto, vocês são próximos, amigos, e o destino dela é incerto demais quando ela o controla, não deixe-a desamparada.

O homem cerrou os punhos quando os olhos se fecharam e ela continuou a falar.

— Entrar em Avalon não será nada fácil, a uma barreira e inúmeros magos fortes para derrubá-lo.

Baltazar então ergueu uma sobrancelha que foi ignorada pela mensageira.

— Embora, tenho alguém perfeito para ajudá-lo, alguém que observo atentamente. Darei um sobrenome e direi o que ela é.

— Ela?

— Sim, uma bruxa de sobrenome Agnes. Você pode procurar pela família em Calisto, ao norte de Montes Claros. Essas são as informações necessárias para encontrá-la. — a mulher segurou seu ombro amigavelmente — Não pense demais. O certo será sair amanhã.

Ele se afastou.

— Não posso ignorar minha vida e ir em uma caçada a procura de uma bruxa que supostamente me ajudará a encontrar a Maeve.

— Ela o ajudará entrar em Avalon.

Baltazar deu um suspiro cansado.

— Mensageira, não sou mais aquele garoto que conheceu. Eu envelheci e amadureci, criei responsabilidades que não posso virar as costas e me jogar em uma outra vida. Só eu e a Maeve sabemos o que é perder ao ser um escolhido.

— Não sou eu que faço as regras, não sou eu que o escolhi. Eu só mando mensagens.

— Já fez? — perguntou — Se sim, suma agora como fez todos esses anos e todas as vezes que precisamos. Afinal sempre fui eu e Maeve.

— Pai. 

Uma voz cortou o ar e Baltazar se virou no mesmo instante para onde o barulho vinha. Ele não foi o único, a mensageira também olhava a espreita. 

— Pai!

Dessa vez foi mais alto e Baltazar se sentiu no dever de responder. 

— Lira, estou aqui.

Uma moça surgiu dos arbustos da floresta momentos depois, com seus cabelos castanhos cheios de gravetos e folhas e com uma feição comum para alguém meio perdido. Seu longo vestido estava surrado e encardido e ela parecia alheia à presença da mensageira quando olhava somente para Baltazar.

— Pai, ouvi vozes. Estava conversando com alguém? Ou falando só? 

Ele abriu a boca, mas nada saiu. E Lira ficou confusa. Depois olhou para o rio e os equipamentos jogados em uma bagunça. A vara quase afundava e na bacia não havia nenhum peixe.

— O senhor passou horas aqui falando só? Deveria temer alguém vê-lo, poderiam chamá-lo de bruxo se ouvissem.

Ele afirmou. — Não sou bruxo, filha.

— Sim, eu sei. Está tudo bem? — Lira se aproximou ficando em sua frente e tocando seu rosto. — O senhor está pálido. Viu algum fantasma?

Ele olhou para além dela. Para a mensageira que pairava sobre suas costas.

— Sua menina é linda.

Ele ouviu, mas Lira não. Ela nunca ouviria a mensageira ou sentiria sua presença. Como a mesma era um ser divino, só ele e Maeve tinham a capacidade de vê-la, tocá-la e ouvi-la. Uma vez Maeve contou a ele que seu pai quando era vivo havia apresentado a mesma para ela. Mas que eles só ouviram a voz cansada e lenta, e anos depois o pai de Maeve alegou que ela nunca mais foi ao seu encontro. Era como se ele fosse apenas um meio para o fim. Desde então apenas escolhidos a viam.

— Deixei a mensagem, escolhido. Agora, faça o que tiver que fazer. Até logo.

Lira se virou para trás, para onde a mensageira estava e se tornava pó aos poucos até desaparecer. Ela não conseguiu vê-la, mas o arrepio que deixou para trás foi impossível não ser sentido pelo pai e pela filha. Lira alisou seus braços em resposta enquanto Baltazar a encarava sério.

Quando a filha se virou, ela estava ainda mais confusa.

— Quer conversar, pai?

— Não. — ele respondeu — Parece que não haverá jantar. Perdi a fome.

— Eu cacei com Menel e encontramos alimento, se mudar de ideia pode se juntar a nós. Já adiantei a maioria das coisas.

Lira contou, e poderia deixá-lo feliz mas ele apenas deixou os ombros caírem.

— Obrigado, mas estou bem. Estou bem!

— Quanto mais o senhor repete. Menos eu acredito.

Baltazar se aproximou uns passos e a abraçou sem aviso. Lira ficou tensa com o gesto incomum. Não que seu pai não fosse afetuoso, mas ele mostrava muito mais com ações necessárias do que com carinhos aleatórios. Depois de um tempo parada, ela retribuiu estendendo seus braços.

— Está bem mesmo, pai?

Seus olhos estavam embargados, quando respondeu. — Sim.

Se ela o visse chorando, ele mentiria que era suor. E ela por sorte acreditaria quando nunca o viu nenhuma vez triste.