Gritem ao mundo inteiro está amargura, digam isto que sinto que eu não posso!...
Florbela Espanca
Estava muito cansada com tudo o que havia acontecido na noite de sábado. Agora estava ali aguardando na sala de espera da delegacia para dar o meu depoimento ao delegado. Ulisses por sua vez, estava nesse momento falando com o delegado, acompanhado por Bernardo, nosso advogado. Não poderia achar mais graça de ver um homem como Ber sempre vestido de forma desleixada e chinelos, hoje muito formal. Com os cabelos bem penteados e a barba feita.
"Um verdadeiro homem do jurídico." - Pensei.
Mesmo com todo o trauma da noite passada teve um lado bom. Ulisses ficaria comigo o tempo todo. Conseguia ver em seus olhos o mesmo fogo, as mesmas necessidades de novamente fundir nossos corpos em um só. Havia sido muito prazeroso nosso almoço há poucas horas. Como era bom ter alguém para dividir a cozinha, mesmo que apenas para fazer um simples macarrão. Rodrigo odiava macarrão, então raramente era feito. Eu não estava fazendo comparações, amava os dois, cada um no seu tempo.
"Meu Deus" - Estou amando um homem que nem conheço.
Perdida em meus pensamentos não percebo Ber e Ulisses se aproximando. Apenas quando sou tocada.
- Ana, Vamos? Bernardo me chama.
Busco o olhar de Ulisses na esperança de não precisar ir.
Suspiro novamente e me levanto, acompanhando o meu amigo Ber. Ulisses me avisa que não pode me acompanhar em meu depoimento, pois nesse momento ele também é uma testemunha.
Muito gentil, Ber abre a porta e me direciona para a frente do delegado, que sorri e me estende a mão.
- Dr. Meneses, muito prazer.
- Ana. - Respondo e aceito seu aperto de mão.
- Sra. Ana, primeiro sinto muito por tudo que passou na noite passada, sou muito conhecido de todos no vale e quase não acreditei quando Ulisses me ligou e nos chamou para buscar o meliante.
Apenas suspiro e baixo a cabeça, lágrimas escorrem pelos meus olhos e ainda não acredito que isso aconteceu comigo. Sinto-me suja de novo.
- Sra. Ana, pode me contar o que aconteceu na noite passada?
- Bem Dr., voltei de um jantar com meu amigo Ulisses. Chegamos a frente da minha casa, nos despedimos e eu subi as escadas. Brinquei com o meu cão e entrei em casa, fechei a porta e como a noite estava quente resolvi tomar um banho antes de me deitar. - Novamente vem aquela sensação de culpa. Olho para o homem a minha frente.
- Continue, Sra. Ana.
Fecho os meus olhos tentando lembrar tudo o que aconteceu sem sentir tanta dor, constrangimento, não sei. Sinto a mão de Bernardo sobre o meu ombro dizendo com um olhar que estava tudo bem. Então continuo contando tudo o havia acontecido.
Ao terminar meu depoimento após uma hora, Dr. Menezes completa:
- Sra. Ana, assim colhemos o seu depoimento e mais das outras testemunhas. Vamos dar andamento ao inquérito. Porém esse senhor poderá ter a sua liberdade provisória, isso dependerá do juiz, que poderá ou não o liberar. Mas estaremos informando ao Dr. Bernardo. Muito obrigada, Sra. Ana e me desculpe por todas essas situações. Mulher nenhuma deveria passar por isso. Novamente me estende a sua mão.
- Muito obrigada.
Ao sair da sala encontro Ulisses me esperando. Há uma gentiliza em seus olhos e algo que não consegui identificar, mas juro que o que eu mais desejo era me jogar nos seus braços e ficar ali como a noite passada, quando me abraçou até eu dormir.
- Bernardo e agora? - Pergunta Ulisses.
- Bom, agora a polícia irá proceder com o inquérito. Após isso haverá a finalização do relatório e será encaminhado para o juiz fazer a denúncia ao ministério público. Isso pode demorar um pouco.
- Bom, ao menos aquele verme ficará preso.
- O advogado dele já está entrando com habeas corpus. Está alegando que Ana o convidou a entrar.
- Desgraçado! - Ulisses soca a parede. – Como assim, amigo? Você precisa fazer algo!
- Não sou eu quem descido, mas o juiz. Mesmo assim já entrei com uma medida protetiva. Ele não poderá nem passar pela nossa rodovia.
Quando os dois homens se lembram de minha presença, me olham e estou aos prantos, sentada na cadeira no canto da sala.
- Ana. Não fique assim, vamos proteger você, somos uma grande família. E cuidamos de quem amamos. - Falando isso, Ulisses me abraça. Bernardo vê a cena e sorri pensando "Ulisses mesmo estava baixando seus muros por ela".
Ulisses...
Andei de um lado para o outro, queria ter entrado com ela, e se ela precisasse de mim. "Meu Deus!".
Ana está sendo forte, mostrando a todos que aquele fato não a afetaria, mas eu vi em seus olhos o medo. E medo senti em ver seu corpo nu no chão da sua pequena casa com aquele verme sobre ela. Jamais me perdoaria se não chegasse a tempo.
Deveríamos ter levado ele para floresta e ter chamado os outros e acabado com sua raça ali mesmo. Mas o Verme é um profissional conhecido e isso levantaria suspeitas e investigações e isso colocaria em risco tudo que construímos. Vivemos aqui no vale há mais de 300 anos e jamais poderíamos chamar a atenção de todos para a nossa alcateia. Sei que logo terei de contar a Ana meu segredo. E posso correr o risco de ela ir embora.
Passei a mão pelos cabelos e o sentimento de impotência tomou conta de mim. O que fazer? O desgraçado pode nem ficar preso. Mas vou armar o maior esquema de segurança para ela. A vantagem da nossa raça é que podemos vigiá-la como lobos. Temos um olfato e uma audição bem apurados. Então o verme perto dela nunca mais!
Ainda montando uma estratégia de proteção na minha cabeça vejo a porta se abrir.
Olho em seus olhos e vejo que esteve chorando e sei que foi doloroso. Adianto-me e faço todas as perguntas possíveis ao meu Beta e fico ali controlando toda a minha ira, até que explodo e soco a parede. Perdido na minha ira, não a vejo ali, tão frágil, encolhida no canto da sala da delegacia.
- Ana. Não fique assim, vamos proteger você, somos uma grande família. E cuidamos de quem amamos. Falando isso não me controlo e a abraço com o intuito de protegê-la.
Bernardo me olha e sorri. Mentalmente o mando à merda.
Nosso retorno foi silencioso, vi que seu celular não parava de vibrar, mas ela nem sequer o olhava.