Na manhã do terceiro dia, após a batalha intensa contra o demônio, Kieran foi o primeiro a acordar, com um raio de luz invadindo sua tenda diretamente em seu rosto.
"Credo, quanta luz..." murmurou Kieran, irritado, enquanto se levantava lentamente. Seu corpo, para sua surpresa, estava completamente recuperado da luta do dia anterior. Ele sentia a Essentia fluindo de forma leve e ágil, como se seu corpo estivesse mais forte e preparado. "Caramba, esse treino realmente fez milagres. Nós deveríamos continuar, mestre!"
Enquanto falava, a animação de Kieran foi desaparecendo rapidamente ao notar a figura de Gylf caído no chão, coberto de ferimentos graves e manchas secas de sangue. O pânico começou a tomar conta de Kieran, que correu para o lado do mestre e se ajoelhou ao seu lado, o rosto desesperado e os olhos cheios de lágrimas.
"Mestre! Não morra! Não morra, por favor!" gritou Kieran, com a voz embargada.
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Gylf, com sua habitual brutalidade, deu um soco direto na mandíbula de Kieran, forte o suficiente para fazê-lo morder a língua e rolar para trás com a dor. O impacto o jogou alguns metros para trás.
"Não vou morrer, seu idiota," resmungou Gylf, com a voz rouca, tentando apoiar-se contra a parede da montanha. "Só fui passear e acabei enfrentando uns monstrinhos mais fortes do que imaginava."
Kieran ainda estava no chão, esfregando o maxilar, surpreso com a força do soco. O choque de ver Gylf tão machucado tinha sido substituído por uma mistura de alívio e raiva.
"Você quase arrancou minha língua!" Kieran protestou, sua voz um pouco embolada pelo impacto. Ele cuspiu um pouco de sangue, tentando se recompor enquanto Gylf, com uma careta de dor, se ajeitava para se apoiar na parede da caverna onde eles haviam passado a noite.
"Bem, da próxima vez, não grite feito uma donzela em perigo quando eu estiver descansando," Gylf respondeu com uma risada rouca, seguida por uma tosse que fez suas costelas protestarem de dor. "Eu não vou morrer tão cedo."
Kieran o observou, com a testa franzida, mas logo deixou escapar um sorriso relutante. Era impossível não admirar a teimosia do homem. "Eu ainda não entendo como você consegue estar de pé depois de tudo isso, mestre... quer dizer, tio... você realmente é meu tio?" ele corrigiu, meio hesitante e com uma dúvida sincera. A palavra ainda soava estranha na sua boca. Três dias juntos e a verdade sobre o parentesco deles ainda parecia algo surreal.
Gylf ergueu uma sobrancelha, percebendo a dúvida de Kieran. "Eu sei que posso não ter a melhor cara de um tio, mas não se preocupe com isso agora, você pode me chamar como quiser, garoto. Mestre, tio, ou até 'velho maluco'. Mas saiba que, de qualquer jeito, você vai acabar comendo poeira no treino," ele disse com um sorriso desafiador, forçando o corpo cansado a se mover enquanto se sentava com mais conforto.
"Eu acho que 'velho maluco' combina melhor." Kieran provocou, esfregando o maxilar dolorido e tentando aliviar a tensão. Mas, por dentro, ele estava curioso. Três dias. Três dias intensos de treino, e Kieran ainda não conseguia entender totalmente aquele homem que, até então, só conhecia de histórias vagamente contadas.
"Então... você sempre foi assim?" Kieran perguntou, tentando soar casual, mas com uma curiosidade genuína. Ele queria saber mais sobre Gylf, entender quem ele realmente era além de ser um tio que apareceu de repente e o empurrou para um treinamento infernal. "Digo, enfrentando monstros sozinho e dando socos em quem tenta te ajudar?"
Gylf riu baixinho, com um brilho travesso nos olhos. "Nem sempre fui esse espetáculo ambulante que você vê hoje." ele disse, ainda com um tom de brincadeira. "Quando era mais jovem, fazia muitas burrices, eu era carregado por um ódio puro, e apenas a sorte me salvava de vez em quando. E quanto a enfrentar monstros..." ele deu de ombros, ainda mantendo o tom leve. "É o que faço de melhor."
Kieran estreitou os olhos, claramente não satisfeito com a resposta vaga. "Certo... mas de onde veio toda essa coisa de ser caçador? ou esse ódio que tu mencionou, Meus pais quando ainda vivos... não me contaram sobre você. Quero dizer, nem sabia que eu tinha um tio até agora."
Gylf riu baixo, com um brilho malicioso nos olhos. "Bem, não era esse espetáculo ambulante que você vê hoje," respondeu com leveza, mas logo o sorriso começou a desaparecer. "A verdade é que as coisas entre a nossa família sempre foram... complicadas."
A mudança no tom fez Kieran erguer o olhar, a leveza do momento se dissipando. "Complicadas como?" Ele perguntou, mais sério agora. Gylf nunca havia mencionado detalhes sobre o passado, e a curiosidade de Kieran crescia a cada dia.
Gylf ponderou por um momento, olhando para o horizonte como se buscasse as palavras certas. "Eu sempre preferi o campo antigamente. E seus pais... bem... sua mãe, Isolde, era uma pessoa determinada. Uma mulher fria, acostumada à guerra e à solidão. Mas isso mudou." Ele parou, um suspiro pesado escapando. "Teve seu coração amolecido por aquele desgraçado... aquele maldito monstro que se passou por um homem."
O nome de Vorgath veio como um soco no estômago para Kieran. Ele piscou, atordoado. "Vorgath... meu pai?" Ele perguntou, a voz mais baixa.
"Vorgath," Gylf repetiu, quase como se o nome fosse veneno na boca. "Nunca esquecerei desse nome, e caçarei ele até o fim, nem que eu morra em nome da minha irmã."
Kieran ficou em silêncio, absorvendo aquela revelação. Sabia que Vorgath era seu pai verdadeiro, mas ouvir Gylf falar sobre ele com tanto ódio, ver como o nome do homem afetava seu tio, era algo novo. Sua mãe... uma guerreira determinada e fria. Kieran nunca soubera muito sobre ela, e agora, essas palavras ecoavam na sua mente, trazendo uma nova perspectiva.
Gylf continuou, o olhar mais distante agora. "Sua mãe se apaixonou por ele, ela confiou nele cegamente. Sabe o Porquê? Por que ela nunca tinha amado, não importa se um ser humano nasceu pra matar, se tu apresentar algo completamente novo pra ele, simplesmente não saberá como reagir apropriadamente sobre, e ele só a usou para alcançar seus objetivos egoístas, aproveitando de algo tão sagrado quanto amor, Um monstro, se passando por homem. Ela não merecia isso... ninguém merecia."
O silêncio se instalou entre os dois por um tempo. Kieran não sabia o que dizer. Não havia como corrigir o passado, e certamente não havia respostas fáceis. As palavras de Gylf sobre sua mãe biológica e seu pai verdadeiro, Vorgath, ressoavam em sua mente como uma tempestade. Ele sempre imaginava quem eram seus pais de verdade, mas nunca havia pensado que a realidade seria assim — envolta em traição, manipulação e mágoas.
Porém, enquanto Gylf falava sobre o desespero de sua irmã e a traição de Vorgath, uma cena diferente insistia em aparecer na cabeça de Kieran. Não era sobre seus pais biológicos, mas sobre aqueles que o criaram. ele via toda a sua infância com Henry e Cecília, que mesmo não sendo pais biológicos, era um afeto único e o mesmo que se fosse com uma família de sangue, todos os bons momentos até ser barrado por uma cena vermelha; a imagem sangrenta de seus pais adotivos caídos no chão, corpos sem vida, com suas mãos — suas próprias mãos — encharcadas pelo sangue deles. Ele podia sentir o peso daquele momento, da culpa, do horror que jamais seria apagado.
Kieran apertou os punhos, sentindo um nó apertado na garganta. A revelação de Gylf sobre sua mãe biológica apenas tornava as coisas mais complicadas, mais pesadas. Ele já tinha sangue nas mãos, e agora, carregava ainda mais. Mesmo sem ser responsável por aquela tragédia familiar, o peso da história de sua mãe, usada e traída por Vorgath, se acumulava sobre os ombros de Kieran.
"Eu... eu nem sei o que dizer," murmurou Kieran, olhando para o chão. "Tudo isso... parece demais. Minha mãe... meu pai..." Ele hesitou, as palavras quase morrendo em sua boca. "E tudo o que aconteceu com meus pais adotivos. Eu também... não consegui protegê-los."
Gylf ficou em silêncio por um instante, observando Kieran com atenção. Ele podia ver a dor no rosto do sobrinho, uma dor que ia muito além da revelação sobre Vorgath. "Eu ouvi sobre o que aconteceu com eles," Gylf disse, mais baixo agora. "Não foi sua culpa, Kieran."
"Mas fui eu quem..." Kieran começou, a voz falhando. "Eu era o responsável. Mesmo que eu não soubesse o que estava fazendo... ainda fui eu."
Gylf suspirou profundamente, apoiando o braço machucado sobre o joelho, inclinando-se um pouco à frente. "Nós carregamos cicatrizes, garoto. Cicatrizes que nunca somem. Você não está sozinho nisso." Ele parou, olhando diretamente nos olhos de Kieran. "Eu também perdi pessoas importantes, também falhei. Não estou tentando justificar o que aconteceu com você ou dizer que vai ficar tudo bem. Só estou dizendo que... eu entendo."
Kieran se afastou um pouco, deixando as palavras de Gylf penetrarem na sua mente. Ele queria protestar, dizer que ninguém entendia de verdade. Mas, ao olhar para o tio — tão ferido, tão endurecido pela vida — percebeu que talvez ele entendesse mais do que parecia.
"Eu só... quero saber por quê," Kieran murmurou, a voz embargada. "Por que tudo isso tinha que acontecer? Por que eu? Minha mãe... meus pais... tudo isso..."
Gylf observou o sobrinho em silêncio por um momento, ponderando suas palavras. Ele suspirou, deixando escapar o peso da verdade. "Essas respostas, Kieran, talvez você nunca consiga. Mas o que você faz daqui pra frente... isso é o que importa."
O silêncio pairou novamente entre eles, mas dessa vez não parecia tão pesado. Era como se algo tivesse sido quebrado — uma barreira invisível entre tio e sobrinho, mestre e aluno. Ambos ainda estavam descobrindo o que significava essa relação, mas agora havia algo mais.
Kieran respirou fundo, tentando encontrar alguma força dentro de si. Ele ainda sentia o peso da culpa e da dor, mas as palavras de Gylf, por mais duras que fossem, ofereciam um tipo de alívio. Não estava sozinho. Não era o único a carregar cicatrizes que jamais se curariam.
"Então... o que fazemos agora?" Kieran perguntou, mudando de assunto, sua voz ainda um pouco hesitante, mas firme o suficiente para indicar que estava pronto para seguir em frente, pelo menos por enquanto.
Gylf forçou um sorriso, tentando trazer de volta a leveza do momento anterior. "Agora você levanta, garoto. Como seu único tio, tu terá que sofrer passando por vários dias de tortura. Não pense que vou pegar leve só porque tive que te dar um pouco de sabedoria de tio, haha!"
Kieran soltou uma risada, ainda sentindo o peso da conversa, mas grato pela tentativa de Gylf de aliviar a tensão. A relação entre eles ainda era nova, frágil, mas havia algo se formando — não só o respeito entre mestre e aluno, mas o começo de um vínculo mais profundo, de família, logo ambos se levantavam, Gylf com uma leve dificuldade, começaram a correr enquanto desciam da montanha onde estavam pouco a pouco com trilhos improvisados.
"Você não tava ferido? tu não deveria se esforçar tanto assim velhote, se não o vento vai te levar de tanto osso quebrado, haha!" Kieran zombaria de Gylf, onde inicialmente tomava a liderança da corrida.
"É o que dizem, o que não te mata, fortalece. Não me subestime, seu pirralho!" Gylf declarou com uma risada maliciosa, seu corpo liberando uma explosão de Essentia que começou a se manifestar em pequenos raios ao longo de seus braços e pernas. Os músculos de Gylf pareciam vibrar com a energia, e em um instante, ele passou a correr ao lado de Kieran com facilidade. Não só isso, ele o ultrapassou sem esforço, deixando uma trilha de poeira para trás.
"Deve ser bem vergonhoso ter que comer poeira de um velho 'ferido' como eu, hahaha!" Gylf gritou por sobre o ombro, claramente se divertindo com a situação.
"Isso nem é justo! Eu nem sei usar minha Essentia desse jeito! E aposto que não deveria ser assim!" Kieran respondeu, meio irritado, mas com um sorriso no rosto, enquanto tentava alcançar o tio. A dor e o peso da conversa anterior pareciam desaparecer na energia daquela corrida, e por um momento, o mundo parecia apenas uma brincadeira entre dois guerreiros.
Ambos continuavam a correr, empurrando seus corpos ao limite. A trilha sinuosa pela floresta se abria diante deles, o sol filtrando-se pelas copas das árvores, criando sombras que dançavam ao redor dos dois. O som das folhas secas sendo esmagadas pelos pés de Kieran e Gylf era quase tranquilizador.
Mas não muito longe, entre as árvores, uma figura se escondia nas sombras, seus olhos fixos nos dois. O brilho de Essentia escapando de Gylf não passou despercebido. A figura observava em silêncio, os lábios curvando-se em um sorriso.
"...heh, parecem bem confortáveis pra quem acabou de invadir o meu território."