A taverna estava movimentada naquela noite, com o som de conversas altas e canecas batendo nas mesas. Kieran e Gylf se acomodaram em uma mesa ao fundo, aproveitando o calor da lareira após semanas de árduo trabalho na floresta. O cansaço nas costas de Kieran era evidente, mas algo em sua postura havia mudado. Ele estava mais firme, seu corpo esculpido pela jornada física e mental que vinha enfrentando. Gylf, como sempre, não deixaria essa transformação passar despercebida.
"Bem, bem… olha só para você, Kieran! Se continuar assim, vai acabar sendo confundido com uma estátua de herói em algum templo", provocou Gylf, com um sorriso malicioso.
Kieran ergueu uma sobrancelha, segurando a caneca de cerveja. "Você quer dizer que já estou bonito o suficiente para ser imortalizado?"
"Não exagera, grandão. Ainda falta o charme", respondeu Gylf, rindo. "Mas falando sério, as últimas semanas têm feito maravilhas para você. Exceto por esse olhar aí... uma mistura de determinação e 'o que raios estou fazendo com minha vida'."
Kieran sorriu de canto, mas o peso em seus olhos não desapareceu. Ele sabia que as mudanças em seu corpo eram apenas um reflexo das batalhas que travava dentro de si.
"Eu não escolhi isso, Gylf. Esse poder... essa Essentia. A cada dia sinto como se estivesse prestes a explodir, ou pior, me perder totalmente."
Gylf balançou a cabeça, afastando a seriedade do ar. "Ei, ei! Vamos com calma. Isso de perder o controle é depois de bebermos algumas rodadas, não antes. Ainda temos uma missão, lembra? Ouvi dizer que algo chamado Sombrio Caído está causando problemas ao norte. Parece perigoso... e potencialmente cheio de respostas para seus dilemas filosóficos."
O nome soou pesado para Kieran. Sombrio Caído. A mera menção do título evocava imagens de trevas e destruição.
"Você acha que tem alguma ligação com... isso?" Kieran olhou para a palma da sua mão, sentindo a pulsação da Essentia crescer suavemente dentro de si.
"Com certeza," Gylf respondeu, dando um gole na cerveja. "Monstros, escuridão, poder sombrio — é a sua cara! E além disso, você está em uma fase em que, quanto mais sinistro o inimigo, mais respostas sobre sua própria natureza você vai conseguir."
Kieran riu, mas logo se calou, pensativo. "Se for verdade... vamos para o norte amanhã. Precisamos de respostas."
Na manhã seguinte, a dupla partiu rumo ao norte, cruzando montanhas e vales enquanto discutiam, como sempre, de maneira leve, mas com subtons sérios.
"Então, 'Sombrio Caído'. Parece nome de vilão de ópera, não acha?" Gylf comentou, quebrando o silêncio que durava algum tempo.
"Ou de uma peça de teatro sombrio", Kieran respondeu, pensativo, mas claramente tentando entrar no ritmo das piadas de Gylf. "Quem sabe o que vamos encontrar? Um monstro trágico, talvez?"
"Eu aposto em algo com uma capa gigante, olhos vermelhos brilhantes e uma risada maligna que ecoa nas montanhas. Bem... ou algo parecido."
"Vai ser mais simples se ele só tentar nos matar," Kieran murmurou, tentando afastar as dúvidas que cresciam em sua mente a cada passo que davam.
As piadas de Gylf ajudavam a aliviar a tensão, mas a sensação de que algo sombrio os espreitava aumentava à medida que se aproximavam do vilarejo mencionado nos rumores. Ao chegarem, o cenário era devastador. As casas estavam queimadas até os alicerces, as árvores ao redor secas e quebradas, como se sugadas pela própria terra.
"Bem… se isso aqui fosse um cartão-postal, o nome seria 'Bem-vindo ao Apocalipse'", Gylf brincou, mas havia preocupação em seus olhos.
Kieran se aproximou das ruínas de uma casa, tocando nas paredes queimadas. Sentia algo estranho, como se o ar estivesse impregnado de sombras vivas. "Isso não foi só um ataque. Há algo errado com o próprio espaço aqui. Como se as sombras tivessem... vida."
"Você está dizendo que estamos sendo espiados por sombras vivas? Porque, sinceramente, já enfrentei coisas piores do que isso."
Antes que Kieran respondesse, uma névoa negra cercaria a vila, tornando o ar denso e as sombras ainda mais opressivas. Kieran e Gylf se mantinham firmes no centro da praça devastada, observando a criatura sombria se formar. O Sombrio Caído não era como qualquer monstro que haviam enfrentado até agora. Ele parecia uma fusão entre a própria escuridão e algo pior — uma força que absorvia a luz ao seu redor, deixando o ambiente envolto em uma escuridão palpável.
A figura de sombras lentamente começou a tomar uma forma humanoide, embora seus contornos fossem voláteis, ondulando como fumaça ao vento. Seus olhos espectrais brilharam, focando diretamente em Kieran.
"Kieeeraaaan… Filhoo das Sombraaasss…" a voz ecoou em um sussurro profundo, reverberando em suas mentes. Era como se cada palavra carregasse um peso sinistro, uma promessa de destruição e ruína.
"Isso... não parece nada bom," murmurou Gylf, sacando sua espada enquanto se posicionava ao lado de Kieran.
O Sombrio Caído deu o primeiro movimento. Sombras serpenteantes saíram de seu corpo, formando estacas afiadas que dispararam na direção de Kieran e Gylf com uma velocidade incrível.
Kieran reagiu instintivamente, suas mãos indo em direção ao ar vazio, e o Bestiário apareceu diante dele, suas páginas folheando-se em uma tempestade. Em um piscar de olhos, ele canalizou o poder de uma das criaturas que já havia derrotado. Suas pernas brilharam com uma luz etérea, e sua velocidade aumentou exponencialmente enquanto ele desviava das estacas de sombras, movendo-se com a agilidade de uma Esfinge do Vento, um monstro que ele havia caçado semanas antes.
"Kieran! Cuidado!" gritou Gylf, enquanto ele próprio desviava dos ataques, rolando para o lado.
Kieran não hesitou. Ele se lançou contra o Sombrio Caído, brandindo sua espada encantada com a energia monstruosa. Quando golpeou o corpo feito de sombras, a lâmina atravessou sem resistência, como se estivesse cortando ar.
A criatura riu. "Vooocê... não poode me toocarr…"
Antes que Kieran pudesse reagir, uma onda de escuridão emanou do corpo do Sombrio Caído, empurrando-o para trás como uma rajada de vento gelado. Kieran caiu de costas, ofegante, mas logo se ergueu, olhando para Gylf.
"Isso vai ser complicado," ele murmurou, apertando o punho da espada. Sua mente fervilhava de opções.
"Não precisa de uma aula pra perceber isso!" Gylf gritou enquanto conjurava uma barreira mágica, desviando uma nova leva de estacas sombrias que se dirigiam a eles.
Kieran sentia a pressão crescente. Esse monstro era diferente, como se as sombras que ele comandava tivessem vontade própria, e cada vez que ele errava um ataque, a criatura parecia crescer em força. Ele precisava usar mais do Bestiário, precisava pensar de forma estratégica. O Sombrio Caído não era feito de carne ou osso, então os métodos convencionais não funcionariam.
Ele abriu o Bestiário novamente, e suas páginas brilharam em um tom verde brilhante. Urhath, o Colosso da Pedra, um gigante que ele havia enfrentado anteriormente, surgiu em sua mente. Kieran conjurou a força de Urhath, e imediatamente sentiu sua pele se endurecer, transformando-se em uma rocha viva. Agora com a resistência do colosso, ele avançou diretamente contra o Sombrio Caído, disposto a enfrentar seus ataques de frente.
As estacas sombrias colidiram contra o corpo de pedra de Kieran, quebrando-se em pedaços e se dissipando no ar. Ele sentiu a resistência do poder de Urhath defendendo-o dos ataques, mas ainda assim, não conseguia infligir dano à criatura.
"Você poode resistirrr, maaasss não podee vencer a esssaa batalhaa..."
Kieran rosnou de frustração, sabendo que essa resistência só o levaria até certo ponto. Ele precisava de mais. Ele precisava mudar a forma como combatia a criatura. Respirando fundo, ele recorreu a outro monstro, um que talvez pudesse ajudá-lo a lutar de uma maneira menos física. Oltraz, a Mente Flutuante, um ser que ele havia enfrentado dentro de uma caverna de cristais, era uma criatura de energia pura, capaz de manipular a força mental para seus ataques.
O corpo de Kieran brilhou, e ele sentiu o poder psíquico de Oltraz fluir por ele. Agora, ele não precisava depender de sua espada. Com um movimento, ele lançou uma onda de energia mental diretamente na direção do Sombrio Caído, e pela primeira vez, o monstro recuou, emitindo um grito de dor.
"Aaarghh... interessanteee... voocê usa o poder de monstross..." o Sombrio Caído rugiu, suas sombras tremendo ao redor.
Kieran viu a abertura e não hesitou. Ele combinou a força psíquica com o poder da Esfinge do Vento, movendo-se rapidamente em torno do monstro e lançando rajadas de energia de todos os ângulos, tentando limitar os movimentos do inimigo. Cada golpe mental parecia desorientar a criatura, fragmentando sua forma por momentos, mas ela logo se reconstruía, mais furiosa a cada segundo.
Então, sem aviso, a criatura se dividiu em múltiplas versões sombrias de si mesma, cercando Kieran. Elas atacaram simultaneamente, sombras afiadas como lâminas vindo de todas as direções. Kieran tentou bloquear, mas foi atingido por várias ao mesmo tempo, sentindo a dor cortar sua pele, mesmo através do endurecimento de pedra.
"Kieran!" Gylf gritou, lançando uma onda de fogo para tentar afastar algumas das cópias sombrias. "Você precisa terminar isso agora, ou vamos ser engolidos!"
Kieran sabia que Gylf estava certo. Ele precisava de algo mais poderoso, algo que pudesse destruir o Sombrio Caído de uma vez por todas. Ele folheou mentalmente o Bestiário, buscando o poder necessário. Foi então que ele se lembrou de um monstro antigo, Shyhrak, o Devorador de Luz, uma criatura feita de pura escuridão que ele havia enfrentado nos abismos.
"Se o Sombrio Caído quer brincar com as sombras... então que ele prove da própria arma," pensou Kieran.
Concentrando-se, Kieran invocou o poder de Shyhrak. Suas mãos se envolveram em uma aura negra pulsante, e a escuridão ao seu redor começou a responder. Ele percebeu que podia manipular as próprias sombras que compunham o Sombrio Caído. As cópias sombrias pararam por um momento, como se estivessem hesitando.
Kieran sorriu sombriamente. Com um movimento fluido, ele usou as sombras do monstro contra ele. As cópias começaram a se desintegrar, suas sombras sendo puxadas de volta para Kieran. O Sombrio Caído gritou, tentando se libertar, mas era tarde demais.
"Voocêee... foooi criadoo para destruirr..." o monstro sussurrou uma última vez antes de sua forma ser completamente absorvida.
Kieran, sentindo a escuridão entrar em sua Essentia, caiu de joelhos. Ele havia vencido — mas sentia o peso da corrupção crescendo dentro dele. A sombra agora fazia parte dele, e ele sabia que isso era apenas o começo de uma luta muito maior.
Gylf se aproximou lentamente, observando seu amigo. "Você absorveu aquela coisa, não é?"
Kieran assentiu, olhando para suas mãos. "Sim... e agora, eu carrego mais um pedaço da escuridão dentro de mim."
"Que depressivo, mas pelo menos tu sabe que sua Essentia é definitivamente Monstrum com isso, o que comprova que realmente tem um monstro dentro de você, mas ele só parece reagir com monstros... e este bestiário nunca vi um desses antes. Enfim, vem cá depressivo, vamos embora." Gylf estendia a mão dele para Kieran ajoelhado.
"Não sou depressivo! eu literalmente estou absorvedo escuridão." Kieran fazia uma careta enquanto aceitava a mão de Gylf, se levantando.
"Tá bom senhor das trevas, tu precisa descansar depois dessa, vamos." Com isso, Kieran e Gylf sairiam do vilarejo, enquanto uma figura totalmente branca, os observando.
"Muito bem Kieran... continue assim e tu poderá enfrentar 'ele', por enquanto, continue derrotando esses monstros..."
(Continua...)