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Chapter 10 - IX. SUPERSTIÇÃO

Quase no final do verão, numa noite tranquila, o destino me arrancou da doce ignorância em que eu habitava.

Quando somos crianças, a visão do futuro é um conceito distante, quase como uma sombra que mal conseguimos distinguir. Essa inocência é o que nos permite saborear a vida de uma forma que poucos adultos conseguem. O dia em que começamos a nos preocupar com o que está por vir é o momento em que deixamos a infância para trás.

O acampamento estava montado à beira da estrada. Marcy havia me confiado uma nova simpatia: a Transferência de Calor para o Movimento Constante, um nome tão pretensioso quanto sua complexidade. Era um enigma, mas com um ajuste aqui e ali, encaixou-se perfeitamente, como uma peça de quebra-cabeça. Em apenas quinze minutos, completei a tarefa, muito antes do prazo que Marcy havia calculado.

Decidi procurá-la, não apenas para receber minha nova lição, mas também para me gabar um pouco. Encontrei-a na carroça dos meus pais, mas já os ouvira antes de vê-los. Suas vozes eram murmúrios, uma melodia distante que se tornava discernível conforme me aproximava.

Então, uma palavra clara atravessou o véu de sons: Sombraim.

Esse era o nome dado ao misterioso grupo de seres sobrenaturais que assombra a noite. Sempre deixavam um rastro de destruição por onde passavam, matando e queimando tudo com suas chamas negras. Hoje em dia, a maioria das pessoas achava que isso não passava de superstição, de uma história para deixar as crianças com medo. Era como se o bicho-papão fosse, na verdade, um grupo de bichos-papões.

Fiquei parado, o coração acelerado. Todos na trupe sabiam que meu pai estava trabalhando em uma nova canção. Há mais de um ano, ele havia começado a reunir antigas histórias e poemas das cidades por onde passávamos. Primeiro eram contos sobre Lanis, depois histórias de fadas e seres misteriosos. E então, ele começou a investigar o enigmático Sombraim...

Meses haviam se passado desde então. No último semestre, ele dedicou-se mais ao Sombraim e menos a Lanis, Lyra e outros temas. A maioria das músicas do meu pai era concluída em uma temporada, mas essa se estendia para o segundo ano.

Vale mencionar que meu pai nunca permitia que uma canção fosse ouvida antes de estar pronta. Apenas minha mãe tinha acesso a essa confiança, pois sempre havia sua contribuição nas composições. O talento para a melodia era dele, e as melhores letras, dela.

A espera por uma música inacabada acende uma chama de expectativa, mas após um ano, essa chama começa a se apagar. Com um ano e meio de espera, a curiosidade da trupe se tornara quase insuportável. Às vezes, isso resultava em palavras ríspidas quando alguém se aproximava um pouco demais da carroça enquanto meus pais trabalhavam.

Com cuidado, aproximei-me da carroça, consciente de que bisbilhotar conversas alheias é um hábito lamentável, mas o tédio e a curiosidade haviam me levado a hábitos ainda piores.

― ...muita coisa sobre eles ― ouvia Marceline dizer. ― Mas estou disposta.

― Fico contente em conversar com alguém instruído sobre o assunto ― respondeu meu pai, com seu tom de barítono forte contrastando com o tenor de Marcy. ― Estou cansado desses camponeses supersticiosos e o...

Mais lenha foi adicionada à fogueira e o crepitar abafou as palavras de meu pai. Caminhei cautelosamente para a sombra da carroça dos meus pais.

― ...como se eu estivesse perseguindo fantasmas com essa música. Tentar juntar os pedaços dessa história é tolice. Eu gostaria de nunca ter começado.

― Bobagem ― respondeu mamãe. ― Será a sua melhor obra, e você sabe disso.

― Quer dizer que vocês acham que há uma história original de onde vêm todas as outras? ― perguntou Marcy. ― Uma base histórica para Lanis?

― Todos os sinais apontam para isso ― disse meu pai. ― É como olhar para uma dúzia de netos e ver que dez deles têm olhos azuis. Você sabe que a avó também tinha olhos azuis. Já fiz isso antes; sou bom nisso. Escrevi "Abaixo dos Muros" da mesma forma. Mas... ― suspirou.

― Então qual é o problema?

― A história é mais antiga ― explicou mamãe. ― É mais como se ele estivesse olhando para trinetos.

― Eles estão espalhados pelos quatro reinos de Roshar ― queixou-se meu pai. ― E, quando finalmente encontro um deles, ele tem cinco olhos: dois verdes, um azul, um castanho e um vermelho. Depois, o seguinte tem apenas um olho, que muda de cor. Como posso tirar conclusões a partir disso?

Marcy pigarreou.

― É uma analogia inquietante ― disse. ― Mas sinta-se à vontade para vasculhar minha mente sobre o Sombraim. Ouvi muitas histórias ao longo dos anos.

― A primeira coisa que preciso saber é exatamente quantos deles existem ― disse meu pai. ― A maioria das histórias fala em sete, mas até isso é duvidoso. Algumas dizem três, outras cinco, e em "A Queda de Fountain" chegam a ser treze: um para cada pontifado de Serenia e um extra para a capital.

― Essa eu sei responder ― afirmou Marcy. ― São sete. Pode confiar nisso com alguma certeza. Na verdade, faz parte do nome deles. "Raen" significa sete. "Somb-raen" significa "sete deles". O Sombraim.

― Eu não sabia ― disse meu pai. ― Raen. Que língua é essa, ylliano?

― Parece tuma ― interveio mamãe.

― Você tem bom ouvido ― disse Marcy. ― É tumânico, na verdade. Cerca de mil anos anterior ao idioma tuma.

― Bem, isso simplifica as coisas ― ouvi meu pai dizer. ― Eu gostaria de ter lhe perguntado um mês atrás. Presumo que você não saiba por que eles fazem o que fazem, não é?

Pelo tom de meu pai, percebi que realmente não esperava uma resposta.

― Esse é o verdadeiro mistério, não? ― respondeu Marcy, rindo. ― Creio que é o que os torna mais assustadores do que o resto dos bichos-papões de que ouvimos falar nas histórias. Os fantasmas querem vingança, os demônios querem nossa alma, os secudos sentem fome e frio. As coisas que compreendemos podemos tentar controlar. Mas o Sombraim surge como um relâmpago em um céu azul e límpido. É pura destruição. Sem sentido nem razão.

― Minha música terá os dois ― disse meu pai, com sombria determinação. ― Creio ter descoberto a razão deles depois de todo esse tempo. Depreendi-a juntando fragmentos de relatos aqui e ali. E isso é o que há de mais exasperante: ter feito a parte mais difícil e ficar com todos esses detalhezinhos específicos a me dar tanto trabalho.

― Você acha que sabe qual é a razão? ― indagou Marcy, curioso. ― Qual é sua teoria?

Meu pai deu uma risadinha baixa.

― Ah, não, Marcy, você terá que esperar junto com os outros. Já suei demais por causa dessa música para revelar a essência dela antes de terminá-la.

Percebi o desapontamento na voz de Marcy, que reclamou:

― Tenho certeza de que isso tudo é só um ardil esmerado para me fazer continuar viajando com vocês. Não poderei ir embora enquanto não ouvir essa danada.

― Então ajude-nos a terminá-la ― disse mamãe. ― Os sinais do Sombraim são outra informação fundamental que não conseguimos confirmar. Todos concordam em que há sinais que alertam para a presença do grupo, mas ninguém concorda sobre quais são.

― Deixe-me pensar... ― disse Marcy. ― A chama negra é óbvia, é claro. Mas eu hesitaria em atribuí-la particularmente ao Sombraim. Em algumas histórias ela é sinal de demônios; em outras, de criaturas do reino das fadas ou de algum tipo de magia.

― Também indica o ar nocivo das minas ― assinalou mamãe.

― É mesmo? ― papai perguntou.

Ela fez que sim.

― Quando uma lamparina queima com um halo negro, a pessoa sabe que há grisu no ar.

― Santo Deus, grisu numa mina de carvão! ― exclamou papai. ― É apagar a chama e ficar perdido nas trevas, ou deixá-la arder e explodir tudo em estilhaços. Isso é mais apavorante do que qualquer demônio.

― Devo admitir que alguns arcanistas de vez em quando usam tochas ou velas preparadas para impressionar o povo ingênuo ― disse Marcy, pigarreando embaraçado.

Mamãe riu, comentando:

― Lembre-se de com quem está falando, Marcy. Não se pode censurar um homem por um pouquinho de senso dramático. Na verdade, umas velas negras seriam perfeitas da próxima vez que encenarmos. Isso, é claro, se por acaso você encontrar umas duas enfurnadas por aí.

― Verei o que posso fazer ― disse Marcy, com ar divertido. ― Outros sinais... parece que um deles tem olhos de cabra, ou olhos negros, ou não tem olhos. Essa eu ouvi várias vezes. Também ouvi dizer que as plantas morrem quando o Sombraim está por perto. A madeira apodrece, o metal enferruja, os tijolos se esfarelam... ― Fez uma pausa. ― Mas não sei se isso são diversos sinais ou se é tudo um só.

― Você já começa a perceber o problema que tenho enfrentado ― disse papai, mal-humorado. ― E ainda paira a dúvida: será que todos no grupo compartilham os mesmos sinais, ou cada um possui um par próprio?

— Já lhe expliquei, querido — interrompeu mamãe, visivelmente cansada. — Um sinal para cada um. Isso é o mais lógico.

— Essa é a teoria favorita da minha senhora — comentou papai. — Mas não parece encaixar. Em algumas histórias, o único sinal é a chama negra. Em outras, os animais enlouquecem, mas não há chama. E ainda há relatos de homens com olhos negros, animais que enlouquecem e a chama negra.

— Eu já lhe disse como interpretar isso — retrucou mamãe, com um tom que revelava uma discussão repetida. — Eles não precisam estar sempre juntos. Podem se agrupar em tríades ou quartetos. Quando um apaga as fogueiras, é como se todos o fizessem. Isso explicaria as diferenças nas histórias. Números e sinais variam conforme o agrupamento.

Papai resmungou algo incompreensível.

— Sua esposa é perspicaz, Dan — elogiou Marcy, suavizando a tensão. — Por quanto você a venderia?

— Preciso dela para o meu trabalho, infelizmente. Mas, se você estiver interessado em um aluguel de curto prazo, talvez possamos negociar um preço...

Ouvi o som de um tapa suave, seguido por uma risadinha meio dolorida do papai, que continuou:

— Algum outro sinal que lhe venha à mente?

— Dizem que eles transmitem um frio intenso ao serem tocados. Mas não entendo como alguém poderia saber disso. Ouvi também que as fogueiras não queimam perto deles, mas isso contraria a chama negra. Talvez...

O vento aumentou, sacudindo as árvores e abafando a voz de Marcy. Aproveitei o barulho para me aproximar mais furtivamente.

— ...ser "coberto pela sombra", o que quer que isso signifique — ouvi papai dizer quando o vento acalmou.

Marcy fez um som de dúvida.

— Não saberia dizer com certeza. Ouvi uma história em que eles eram descobertos porque suas sombras apontavam na direção errada, para a luz. Outra história os descrevia como "cobertos pela sombra". Algo como "alguma coisa, o coberto pela sombra". Mas o nome específico me escapa...

— Por falar em nomes, esse é outro problema que tenho enfrentado — disse papai. — Juntei uma dúzia de nomes sobre os quais adoraria ouvir sua opinião. Os mais...

— Na verdade, Dan — interrompeu Marcy —, eu preferiria que você não os dissesse em voz alta. Nomes de pessoas, quero dizer. Pode desenhá-los na terra, se desejar, ou posso trazer uma lousa, mas me sentiria mais confortável se você não os pronunciasse. É melhor prevenir do que remediar, como se diz.

O silêncio se fez profundo. Parei no meio de uma passada furtiva, com um pé levantado, temendo ser ouvido.

— Ora, não fiquem me olhando assim, vocês dois — disse Marcy, exasperada.

— Estamos apenas surpresos, Marcy — disse mamãe com um tom suave. — Você não parece ser o tipo supersticiosa.

— Não sou. Sou cautelosa. Há uma diferença — respondeu Marcy.

— Claro — concordou papai. — Eu nunca...

— Dan, guarde isso para os espectadores pagantes — cortou-o Marcy, com uma irritação evidente na voz. — Você é um ator excepcional, mas sei quando alguém me acha um pouco excêntrica.

— É só que eu não esperava isso, Marcy — disse papai, com um tom de desculpa. — Você é bem informada e estou cansado de pessoas que reagem exageradamente ao mencionar o Sombraim. Só estou reconstruindo uma história, não me envolvendo com artes ocultas.

— Bem, ouça com atenção. Gosto muito de vocês para que me vejam como uma velha tola. Além disso, tenho algo importante para discutir com vocês mais tarde e preciso que me levem a sério.

O vento soprou mais forte, aproveitei o som para esconder meus últimos passos. Contornei cuidadosamente um canto da carroça dos meus pais e espiei por entre um véu de folhas. Os três estavam ao redor da fogueira. Marcy se acomodara num toco, encolhida sob uma capa marrom desgastada. Meus pais estavam em frente a ela — mamãe encostada em papai —, envolvidos em um cobertor solto.

Marcy serviu um líquido de uma botija de barro em um caneco de couro e entregou a mamãe. O vapor subia enquanto ela falava.

— Como os serenianos reagem aos demônios? — perguntou.

— Com pavor — respondeu papai, dando um tapinha na testa. — A religião deles os deixa aterrorizados.

— E em Mitreza? — continuou Marcy. — Há muitos ardonianos lá. Eles sentem o mesmo?

Mamãe balançou a cabeça.

— Acham isso meio ridículo. Preferem que seus demônios sejam apenas metáforas.

— E o que eles temem à noite em Mitreza?

— Os encantados — respondeu mamãe.

— Dagon — disse papai, simultaneamente.

— Ambos têm razão, dependendo da parte do país — declarou Marcy. — E aqui, na República, as pessoas riem de ambas as ideias — acrescentou, gesticulando para as árvores ao redor. — Mas tomam cuidado com a chegada do outono, temendo atrair os secudos.

— Assim é a vida — disse papai. — Parte do sucesso de um artista itinerante é saber para que lado se inclina a plateia.

— Você ainda parece achar que estou um pouco louca — disse Marcy, divertindo-se. — Ouça, se amanhã chegasse a Aturia e alguém lhe dissesse que há secudos na floresta, você acreditaria?

Papai balançou a cabeça.

— E se duas pessoas lhe dissessem isso?

Mais uma negativa.

Marcy se inclinou para a frente em seu toco de árvore:

— E se uma dúzia de pessoas lhe dissesse, com total sinceridade, que há secudos na floresta, comendo...

— Claro que eu não acreditaria — interrompeu papai, irritado. — Isso é ridículo.

— É claro que é — concordou Marcy, levantando um dedo. — Mas a verdadeira pergunta é: você entraria na mata?

Papai ficou em silêncio, pensativo por um momento.

Marcy fez um gesto afirmativo.

— Seria um tolo se ignorasse o aviso de metade da população da cidade, mesmo sem acreditar no que eles acreditam. Se não é secudos, do que você tem medo?

— De ursos.

— De salteadores.

— São temores muito sensatos para alguém de uma trupe. Temores que o povo dos vilarejos não aprecia. Todo lugar tem suas pequenas superstições, e todos riem do que o outro lado do rio pensa — disse Marcy, lançando-lhes um olhar sério. — Mas algum de vocês já ouviu uma música ou uma história engraçada sobre o Sombraim? Aposto que não.

Mamãe balançou a cabeça após um momento de reflexão. Papai deu um grande gole antes de acompanhá-la.

— Bem, não estou dizendo que o Sombraim está por aí, atacando como um raio do céu. Mas as pessoas têm medo dele. Geralmente, há uma razão para isso.

Marcy sorriu e virou o caneco de barro, derramando as últimas gotículas de cerveja no chão.

— E os nomes são coisas estranhas. Coisas perigosas — disse, com um olhar penetrante. — Disso eu sei com certeza, porque sou uma pessoa instruída. Se também sou um pouco supersticiosa — encolheu os ombros —, bem, prefiro assim. Estou velha. Vocês precisam ser indulgentes comigo.

Meu pai assumiu uma expressão pensativa.

— É estranho nunca ter notado que todos tratam o Sombraim da mesma maneira. Deveria ter percebido isso. — Sacudiu a cabeça, como se quisesse clarear os pensamentos. — Acho que podemos voltar a falar dos nomes depois.