Nuvens dispersas de fumaça dançavam no ar tranquilo do crepúsculo, enquanto um silêncio opressivo pairava sobre o acampamento, como se todos na trupe aguardassem algo inevitável. Um vento preguiçoso brincava com as folhas das árvores, e uma nuvem de fumaça flutuava baixo, rastejando pelo chão. Saí da mata e atravessei essa névoa, retornando ao acampamento.
Ao emergir da bruma, esfreguei os olhos para aliviar a ardência. Quando olhei ao redor, vi a barraca de Stap em chamas, a lona se contorcendo enquanto a fumaça cinzenta pairava no ar. Netero jazia ao lado da carroça, a espada quebrada em sua mão, as roupas encharcadas de vermelho. Seu corpo parecia retorcido, com o osso exposto brilhando sob a luz mortiça.
Fiquei ali, paralisado, incapaz de desviar o olhar da cena horrenda. Meus pensamentos se perderam em um nevoeiro, minha mente imersa em um torpor. Uma parte racional de mim tentava chamar minha atenção para o estado de choque em que eu me encontrava, mas resisti, recusando-me a encarar a dura realidade diante de mim.
Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, uma fina corrente de fumaça rompeu minha visão turva. Cambaleei até a fogueira mais próxima, atordoado. Era a fogueira de Shae; uma panela pendurada fervilhava, cozinhando batatas. Em meio ao caos, a cena era estranhamente reconfortante.
Concentrei-me na panela, no que ela representava de normalidade. Mexi as batatas com um graveto e vi que estavam cozidas. Coloquei a panela no chão ao lado de Shae, tentando afastar os cabelos de seu rosto. Minha mão ficou pegajosa de sangue, e seus olhos estavam vazios, sem vida.
Levantei-me e olhei ao redor, atordoado. A barraca de Stap já havia sido consumida pelo fogo, e a carroça de Shae estava destruída. Todas as chamas tinham uma tonalidade enegrecida, criando uma cena surreal.
Ouvi vozes e, escondido atrás da carroça de Shae, vi vários estranhos ao redor de uma fogueira. A fogueira dos meus pais. Uma tontura tomou conta de mim, e me agarrei à roda da carroça. Quando a toquei, ela se desfez em minha mão, como se estivesse podre.
Então, olhei para a fogueira. Um homem se ergueu com uma espada em mãos. Seus movimentos eram fluidos, elegantes. Seu rosto, pálido e esguio, possuía olhos negros e vazios, como poços sem fundo.
Um calafrio percorreu minha espinha quando ele sorriu para mim, mostrando dentes perfeitamente brancos. Era o sorriso de um pesadelo, e pela primeira vez na vida, senti um medo genuíno me dominar.
Ao redor da fogueira, um homem calvo de barba grisalha soltou uma risada rouca. Haviam oito deles no total.
― Parece que deixamos um coelhinho escapar. Cuidado, Grim, seus dentes podem ser afiados.
O homem chamado Grim guardou a espada com um som que ecoou como uma árvore se partindo sob o peso do gelo hibernal. Ele se aproximou, ajoelhando-se a uma distância segura. Sua movimentação era como mercúrio deslizando sobre uma superfície plana.
― Qual é o seu nome, garoto? ― Ele perguntou, seus olhos nivelados aos meus. Por trás daquele olhar opaco e negro, percebi uma nota de apreensão.
Fiquei paralisado, sem saber como responder. Grim suspirou e desviou o olhar por um momento, como se buscasse paciência. Quando voltou a me encarar, seus olhos estavam cheios de piedade.
― Onde estão seus pais, garoto? ― Ele perguntou novamente, mantendo seu olhar firme em mim. Depois, ele olhou ao redor, em direção à fogueira onde os outros estavam reunidos. ― Alguém sabe onde estão os pais dele?
Algumas risadas ecoaram, mas eram frias e breves, como se fossem uma piada amarga. Grim voltou sua atenção para mim, e a piedade desapareceu, deixando apenas aquele sorriso sinistro em seu rosto.
― Esta é a fogueira dos seus pais? ― Ele perguntou, com um tom de prazer cruel em sua voz.
Afirmei com a cabeça, atordoado.
Seu sorriso se desfez lentamente, substituído por uma expressão sombria. Sua voz era fria e afiada quando ele falou:
― Parece que os pais de alguém andaram cantando o tipo inteiramente errado de canção.
"Não, de novo não," pensei, minha mente começou a rodopiar. "Não vou aguentar perder meus pais mais uma vez."
Antes que eu pudesse processar suas palavras, uma voz fria ecoou vinda das sombras à beira da fogueira.
― Grim ― disse a voz gelada.
Os olhos de Grim se estreitaram, irritados.
― O que foi? ― Ele rosnou.
― Você está me desagradando. Este garoto não fez nada. Leve-o para o sono tranquilo e indolor.
A voz oscilou ligeiramente na última palavra, como se fosse difícil pronunciá-la.
O homem sentado à sombra, distante dos outros, parecia envolto em escuridão. Embora o sol ainda iluminasse o céu, as sombras se acumulavam ao seu redor como tinta densa. O fogo crepitava e brilhava numa chama escura, mas nenhuma de suas faíscas alcançava o homem nas sombras. Sua cabeça estava coberta por um capuz escuro, e as sombras sob ele eram tão profundas que pareciam um abismo à meia-noite.
Grim lançou um breve olhar ao homem envolto em sombras antes de se voltar novamente para a fogueira.
― Você é tão habilidoso quanto um vigia, Xehanort ― ele respondeu.
― Você parece se esquecer do nosso propósito ― retrucou o homem obscuro, sua voz fria cortando o ar. ― Ou será que seu propósito simplesmente difere do meu?
As últimas palavras foram ditas com uma ênfase cuidadosa, como se carregassem um significado especial.
A arrogância de Grim desapareceu instantaneamente, como água derramada de um balde.
― Não ― disse ele, voltando-se novamente para a fogueira. ― Não, certamente não.
― Isso é bom. Eu ficaria desapontado se nosso longo convívio chegasse ao fim.
― Eu também.
― Lembre-me mais uma vez da nossa relação, Grim ― disse o homem sombrio, sua voz paciente tingida com um fio de raiva.
― Eu... eu estou ao seu serviço... ― Grim respondeu, com um gesto de apaziguamento.
― Você é apenas uma ferramenta em minhas mãos ― interrompeu gentilmente o homem envolto em sombras. ― Nada mais.
Um lampejo de desafio cruzou o rosto de Grim. Ele hesitou por um momento.
― Eu go...
― Férula ― a voz baixa cortou como aço de Orien.
A graça de Grim desapareceu. Ele cambaleou, seu corpo repentinamente rígido de dor.
― Você é apenas um instrumento em minhas mãos ― repetiu a voz fria. ― Diga.
O queixo de Grim se contraiu de raiva por um momento antes de ter um espasmo, gritando mais como um animal ferido do que um homem.
― Sou um instrumento em suas mãos ― ele ofegou.
― Lorde Xehanort.
― Sou um instrumento em suas mãos, Lorde Xehanort ― Grim corrigiu-se, caindo de joelhos, tremendo.
― Quem conhece você até o âmago, Grim?
As palavras foram pronunciadas com paciência meticulosa, como um professor recitando uma lição esquecida.
Grim cruzou os braços trêmulos sobre o peito e se inclinou, fechando os olhos.
― Você, Lorde Xehanort.
― Quem o protege dos Mayr? Dos cantores? Dos stiches? De todos que desejariam vê-lo caído neste mundo? ― Xehanort perguntou com calma polida, como se estivesse sinceramente interessado na resposta.
― Você, Lorde Xehanort ― Grim admitiu, sua voz um fio desgastado de dor.
― E para qual propósito você serve?
― Ao seu, Lorde Xehanort ― as palavras vieram estranguladas. ― Apenas ao seu. A mais ninguém.
A tensão no ar dissipou e o corpo de Grim relaxou subitamente. Ele caiu para a frente, mãos apoiadas no chão, suor pingando de seu rosto. Seu cabelo branco estava colado em sua testa.
― Obrigado, senhor ― ele ofegou, grato. ― Não me esquecerei novamente.
― Sim, você esquecerá. Você gosta demais de suas pequenas crueldades. Todos vocês ― disse Xehanort, seu rosto se virando para cada figura ao redor da fogueira. Todos se remexeram desconfortavelmente. ― Estou feliz por ter decidido visitá-los hoje. Vocês estão se desviando, se entregando a caprichos. Alguns parecem ter esquecido o que buscamos, o que desejamos realizar.
Os outros ao redor da fogueira ficaram inquietos.
O capuz voltou-se para Grim.
― Mas vocês têm o meu perdão. Talvez, exceto por esses lembretes, eu também estivesse esquecendo ― disse, com um tom incisivo nas últimas palavras. ― Agora, terminem o que...
Sua voz desapareceu, enquanto o capuz se inclinava lentamente para olhar o céu. Houve um silêncio expectante.
Os que estavam ao redor da fogueira ficaram perfeitamente imóveis, observando com atenção. Todos inclinaram a cabeça, como se estivessem olhando para o mesmo ponto no céu crepuscular, como se tentassem capturar um cheiro no vento.
A sensação de ser observado chamou minha atenção. Experimentei uma tensão, uma mudança súbita na textura do ar. Concentrei-me nela, grato por qualquer distração que me impedisse de pensar claramente, pelo menos por mais alguns segundos.
― Eles estão vindo ― disse Xehanort, quase sussurrando. Ergueu-se, e a sombra pareceu se desdobrar dele como uma névoa escura. ― Rápido. Venham até mim.
Os outros se levantaram de seus lugares ao redor da fogueira. Grim se levantou apressadamente, dando alguns passos desajeitados em direção ao fogo.
Xehanort abriu os braços, e a sombra ao seu redor se desdobrou como uma flor desabrochando. Então, cada um dos outros se virou com uma desenvoltura estudada e começou a se aproximar dele, na direção da sombra que o envolvia.
No entanto, enquanto seus pés tocavam o chão, todos se moviam cada vez mais devagar, gradualmente desaparecendo como areia levada pelo vento. Apenas Grim olhou para trás, um lampejo de raiva nos olhos de pesadelo.
E então, eles se foram.
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Não me alongarei nos detalhes dos eventos que se seguiram. A maneira como me movi de um corpo para outro, numa frenética busca por sinais de vida, seguindo os ensinamentos de Marcy. Minha vã tentativa de dar um fim digno, cavando uma sepultura. Como minhas mãos arranharam a terra até ficarem cruas e ensanguentadas. E então, como encontrei meus pais...
Foi nas sombras mais densas da noite que me deparei com nossa carroça. Nosso cavalo a havia arrastado pela estrada por quase cem metros antes de sucumbir. Por dentro, ela parecia normal, arrumada e tranquila. Porém, o odor que emanava da parte traseira era impregnado com a essência deles dois.
Acendi todas as lâmpadas e velas que havia ali dentro. A luz não trouxe consolo algum, mas tinha a honestidade dourada do fogo real, sem os matizes negros. Peguei o estojo do alaúde de meu pai e me deitei na cama deles, o instrumento ao meu lado. O travesseiro de minha mãe ainda exalava o perfume de seu cabelo, de seus abraços. Não tinha a intenção de dormir, mas o sono me envolveu.
Acordei tossindo, cercado pelo fogo. As velas haviam sido as responsáveis, é claro. Aturdido pelo choque, empacotei algumas coisas numa sacola. Movia-me sem pressa, sem medo ao resgatar o livro de Marcy de debaixo do colchão em chamas. Que horror poderia um simples incêndio causar em mim naquele momento?
Coloquei o alaúde de meu pai no estojo. Sentia como se estivesse roubando, mas não conseguia pensar em nada mais que os lembrasse. Aquela madeira havia sido acariciada pelas mãos deles inúmeras vezes.
Então, parti. Adentrei a floresta e segui caminhando até o alvorecer tingir as franjas orientais do céu. Quando os pássaros começaram a cantar, parei e soltei a sacola. Peguei o alaúde de meu pai e o segurei junto ao corpo. Comecei a tocar.
Meus dedos doíam, mas continuei tocando. Tocava até que as cordas sangrassem. Tocava até que o sol brilhasse entre as árvores. Tocava até que meus braços não aguentassem mais. Tocava, tentando não lembrar, até adormecer.