O som dos nossos passos rompia o silêncio da rua tranquila, o leve farfalhar das folhas nas árvores acompanhando o ritmo. O sol aparecia de forma tímida entre as nuvens, espalhando uma luz suave que aquecia a manhã. Tudo parecia comum — exceto a minha mente, que estava a quilômetros dali.
Eu ainda conseguia visualizar com clareza aquele momento. Yuki ajoelhada ao lado do sofá, soprando o mingau com uma delicadeza quase irreal. Cada gesto dela parecia tão simples, mas ao mesmo tempo… tão significativo. Havia algo na maneira como ela cuidou de mim que fazia meu peito apertar só de lembrar.
— Então, Shin… — A voz de Seiji explodiu na minha bolha de pensamentos, quase me fazendo tropeçar. Ele andava com as mãos atrás da cabeça, um sorriso travesso já se formando. — O que aconteceu ontem?
Engoli em seco, tentando não transparecer o desconforto.
— Nada de mais.
— Nada de mais? — Seiji repetiu, estreitando os olhos com a expressão de quem estava farejando algo suspeito. — Você acha que eu vou acreditar nisso?
Antes que eu pudesse responder, Rintarou, sempre o mais ponderado, interveio.
— Talvez ele esteja falando a verdade, Seiji. Não tire conclusões precipitadas.
— Não tire conclusões precipitadas?! — Seiji exclamou, colocando dramaticamente uma mão no peito, como se estivesse ofendido. — Yuki foi até a casa dele! Eles estavam sozinhos! Você vai mesmo me dizer que nada aconteceu? Nem… sei lá… um beijo?
Senti meu rosto queimar no mesmo instante, como se o sol tivesse decidido focar apenas em mim.
— Claro que não! — rebati, a voz mais alta do que pretendia, o que só fez Seiji rir.
— Ah, que desperdício de oportunidade! — ele continuou, jogando os braços no ar em um gesto exagerado. — Eu te dei a chance perfeita!
— Que chance? — retruquei, revirando os olhos, tentando ignorar o sorriso provocador dele. — Eu desmaiei na porta, e Yuki me ajudou porque eu estava com febre. Foi só isso.
O comentário calou Seiji por exatamente três segundos. Depois, seus olhos se arregalaram como se eu tivesse acabado de contar algo extraordinário.
— Pera aí… Você desmaiou?!
Rintarou também arqueou uma sobrancelha, embora seu tom permanecesse sereno.
— Isso é sério, Shin?
Suspirei, já prevendo que essa conversa ia durar mais do que eu gostaria.
— Sim. Ela me ajudou a entrar, cuidou da febre e... fez mingau. É isso. — Tentei soar casual, mas sabia que isso só alimentaria a curiosidade insaciável de Seiji.
Ele me encarou com os olhos arregalados, como se tivesse descoberto um segredo de proporções épicas.
— Espera aí… então quer dizer que ela cuidou de você? Tipo, de verdade?
— Sim, Seiji. De verdade. — Minha voz saiu um pouco mais ríspida do que eu pretendia, mas não tinha energia para lidar com o entusiasmo dele.
O sorriso de Seiji só aumentou, iluminando seu rosto como o de uma criança ganhando um brinquedo novo.
— Detalhes, por favor! Cada um deles! Quero o roteiro completo.
— Sem detalhes. — Cruzei os braços, tentando parecer firme. — Fim de história.
Ele inclinou a cabeça, um sorriso travesso surgindo.
— Mas... como tudo isso aconteceu? Quero dizer, como o material foi parar nas mãos da Yuki? E como ela sabia onde eu morava? — levantei uma sobrancelha, esperando pela explicação. Era óbvio que ele estava por trás de tudo, mas como ele fez isso, eu não sabia.
Seiji deu aquele sorriso autossuficiente que só ele conseguia fazer, cruzando os braços como se estivesse prestes a apresentar uma grande obra de arte.
— Ah, sobre isso? Foi simples! Quando o professor entregou os materiais, Kazuki ia levar. Mas aí eu levantei a mão e disse: "Professor, deixa que eu entrego! O Shin mora perto da minha casa."
— Sério mesmo? — perguntei, já começando a me arrepender de pedir explicações.
— Claro! — respondeu ele, cheio de orgulho. — Então, depois da aula, eu fui até a Yuki e disse: "Yuki, como representante de classe, é seu dever sagrado entregar isso. Eu estou super ocupado."
Rintarou, que vinha ouvindo em silêncio, decidiu intervir.
— Ocupado com o quê?
— Ocupado sendo eu, claro. — Seiji abriu os braços e deu um sorriso convencido, como se isso fosse uma resposta lógica e irrefutável.
Eu fechei os olhos, respirando fundo, tentando não rir do absurdo.
— Então… foi assim que você armou tudo? — perguntei, já sabendo a resposta.
— Exatamente. — Ele bateu no peito, claramente satisfeito com sua própria "genialidade". — Olha, você tá me devendo uma, Yamamoto. Quero um hambúrguer com batata frita, e nada de economizar no molho.
Antes que eu pudesse retrucar, Seiji se virou para Kaori, que estava estranhamente quieta desde o início da conversa. Ele estendeu a mão e deu um leve cutucão no ombro dela.
— Ei, Kaori, tá na Terra? Ou você tá numa dimensão paralela?
Ela piscou, parecendo sair de um transe. Seu olhar estava meio perdido antes de voltar à realidade.
— Hã? O quê?
— Shin vai pagar um lanche pra gente. Você vem? — Seiji perguntou, estreitando os olhos como se tentasse decifrá-la. — Mas, sério, você tá muito quieta hoje… Isso não é normal.
Kaori riu de leve, mas o som parecia forçado.
— Nada demais. Só tô com sono. Dormi pouco ontem. — Ela coçou a cabeça e forçou um sorriso.
Antes que alguém pudesse questioná-la mais, ela avistou um grupo de amigas ao longe. A mudança foi imediata.
— Olha, ali estão as meninas! Vou falar com elas. Vejo vocês na escola! — disse rapidamente antes de correr até elas.
Seiji ficou olhando para a figura dela se afastar, os braços cruzados e um olhar curioso no rosto.
— Estranho… — murmurou.
— Talvez seja só sono mesmo. — Rintarou deu de ombros, voltando a caminhar tranquilamente.
Mas eu sabia que Seiji não era do tipo que deixava algo passar tão fácil. Ele lançou um último olhar na direção de Kaori antes de sacudir os ombros e voltar sua atenção para mim.
— Enfim, Shin, vamos ao que importa. Onde vamos sair no fim de semana? Alguma ideia?
Suspirei enquanto Seiji começava a listar ideias absurdas e lugares improváveis. Continuei ouvindo suas sugestões, balançando a cabeça de vez em quando, enquanto seguimos pela rua rumo à escola.
— Então, vocês pegam o valor de x e substituem por… — a voz do professor ecoava pela sala, acompanhada pelo som do marcador deslizando pelo quadro branco.
Tentei me concentrar, de verdade. Minha mão estava até segurando a caneta, pronta para anotar algo, mas minha mente parecia ter outros planos.
Meu olhar, como que movido por vontade própria, desviou para o lado. Lá estava ela.
Yuki estava sentada a poucos lugares de distância, o rosto inclinado levemente enquanto escrevia no caderno. Seus movimentos eram fluidos, quase elegantes, e sua expressão mostrava um foco que eu invejava naquele momento. Cada vez que ela empurrava uma mecha de cabelo para trás da orelha, parecia que o mundo ao redor ficava em silêncio.
E então, as lembranças de ontem invadiram minha mente como uma onda. A forma como ela cuidou de mim, a delicadeza em seus gestos… a maneira como soprou o mingau com tanto cuidado. Parecia uma cena de um sonho.
Só conseguia pensar em como tudo aquilo tinha acontecido, enquanto olhava para o quadro vazio da minha mente.
Como alguém tão incrível estava ao meu lado ontem, cuidando de mim como se fosse a coisa mais natural do mundo?
Meu coração deu um salto ao lembrar da última coisa que ela disse antes de sair. "Se quiser, podemos estudar juntos para as provas."
A ideia de passar mais tempo com ela fazia meu peito se aquecer de um jeito que eu não sabia explicar.
Tentei sacudir a cabeça discretamente, como se pudesse espantar as imagens que me distraíam. Não era o momento de ficar perdido nesses pensamentos. As provas estavam se aproximando, e eu precisava absorver o que o professor estava dizendo.
— Shin, foca! — murmurei para mim mesmo, apertando a caneta contra o caderno e olhando para o quadro.
Mesmo assim, uma parte de mim sabia que era questão de tempo até meu olhar escapar novamente. E, quando o fazia, eu percebia que talvez, só talvez, não quisesse tanto evitar aquilo quanto dizia para mim mesmo.
Após o término das aulas, segui meu caminho até o clube. A sala tinha o mesmo caos habitual: papéis espalhados por todas as mesas, cadernos abertos com rabiscos de ideias para a Feira Escolar, e um leve murmúrio de conversas cruzadas entre os membros. Takumi, como sempre, tentava trazer ordem ao ambiente.
— Pessoal, antes de qualquer coisa, precisamos nos concentrar nas provas finais. — Ele ajustou os óculos enquanto olhava para todos. — Não adianta planejar algo incrível para o Festival Escolar se metade de vocês estiver na recuperação e com a cabeça em outro lugar...
A reação foi imediata, e, como esperado, Kaori foi a primeira a protestar.
— Eu não quero pensar nisso agora! — exclamou, apoiando o rosto nas mãos e soltando um suspiro exagerado. — Provas finais são tão… finais.
Takumi cruzou os braços, a expressão tão séria quanto sempre.
— E são exatamente por isso que você deveria levá-las a sério.
— É melhor estudar com antecedência, Kaori. — Rintarou entrou na conversa, o tom prático e direto que era sua marca registrada. — Deixar tudo para depois só vai te dar mais dor de cabeça.
Kaori bufou, jogando-se contra o encosto da cadeira e cruzando os braços.
— Vocês dois têm jeito de professores… e não é um elogio.
Do outro lado da sala, Taro estava debruçado sobre uma pilha de livros, usando-a como travesseiro improvisado. A conversa parecia não ter sequer arranhado o casulo de sono dele.
— Taro tá mostrando o espírito de grupo — brinquei, apontando com a cabeça para ele.
Kaori revirou os olhos, mas não conseguiu segurar um sorrisinho.
Depois de alguns minutos de discussões sobre o equilíbrio entre estudar e pensar em ideias para o Festival, Takumi finalmente cedeu. Ele fechou o caderno de anotações com um suspiro.
— Tudo bem. Vamos encerrar por hoje, mas não esqueçam de revisar as matérias. O Festival Escolar pode esperar, mas as provas não.
Enquanto os outros começavam a guardar seus materiais, dei uma última olhada na sala, deixando que meus olhos vagassem pelos pequenos detalhes. Apesar das brigas ocasionais, aquele espaço tinha uma energia especial, como se fosse um mundo à parte.
Quando saímos, me despedi de Seiji e Rintarou, que começaram a discutir animadamente sobre o melhor lugar para lanchar no fim de semana. Meus passos me levaram até a biblioteca, onde o trabalho me esperava, mas minha mente estava longe de qualquer tarefa.
O convite de Yuki ainda ecoava na minha cabeça. "Se quiser, podemos estudar juntos para as provas." Cada vez que lembrava daquilo, sentia um calor inexplicável. Era estranho como algo tão simples podia parecer tão significativo.
Quando cheguei à biblioteca, parei em frente à porta por um momento, deixando a brisa fria do fim de tarde soprar levemente contra meu rosto. Coloquei a mão na maçaneta, pronto para entrar, mas fui interrompido pelo som do celular vibrando no meu bolso.
Peguei o aparelho, franzindo o cenho ao ver um número desconhecido na tela.
Hesitei por um momento, considerando a possibilidade de ser alguma chamada de propaganda ou algo do tipo.
Mas, algo me dizia que eu não deveria recusar aquela ligação.
— Alô? — perguntei, a voz cautelosa.
— Alô, é Shin Yamamoto? — A voz do outro lado era firme, profissional, mas havia um tom amigável que imediatamente capturou minha atenção.
Franzi o cenho, confuso. Como ele sabia meu nome?
— Sim, sou eu. Quem está falando? — perguntei, hesitante.
— Aqui é Hajime Shihei, editor da Editora Kousei. — A menção ao nome fez meu coração disparar, e senti meu corpo inteiro se enrijecer de surpresa. — Me desculpe por não ter entrado em contato antes. A correria na editora foi intensa.
Hajime Shihei. Aquele mesmo editor que tinha me dado o cartão no dia da premiação.
— Ah… é um prazer falar com você! — respondi, tentando não deixar transparecer o nervosismo.
— O prazer é meu, Shin. — Ele fez uma pausa breve, mas significativa. — Eu queria dizer que sua história foi excepcional. Ela causou um impacto profundo nos jurados. Na verdade, alguns deles disseram que foi uma das narrativas mais marcantes que já tiveram o prazer de avaliar.
Meu coração parecia correr uma maratona, e minha mão segurava o celular com mais força do que o necessário.
— Uau… Isso significa muito para mim. Obrigado por dizer isso. — Minha voz saiu um pouco trêmula, mas carregada de sinceridade.
— Não há o que agradecer. O mérito é todo seu. — Hajime continuou, sua voz trazendo um calor inesperado. — Por isso, gostaríamos de propor algo. Estamos planejando incluir trechos da sua história na nossa revista semanal de escritores. Acreditamos que seria uma oportunidade incrível para expandir sua audiência e dar um próximo passo importante na sua jornada como autor.
Minhas mãos começaram a tremer levemente, e um calor tomou conta do meu rosto. A possibilidade parecia tão distante e irreal, mas ali estava, acontecendo de verdade.
— Isso seria… incrível! — respondi, tentando conter a emoção.
— Que bom que você pensa assim. — A voz dele soou satisfeita, quase como se estivesse sorrindo. — Você tem algum horário disponível amanhã? Gostaríamos de discutir os detalhes pessoalmente.
— Sim, tenho sim! — Minha resposta veio quase rápido demais, mas eu não queria perder a chance.
— Ótimo. Venha até o décimo andar da Editora Kousei. Eu mesmo vou encontrá-lo na recepção e conduzi-lo ao nosso departamento editorial. Estou ansioso para conversarmos.
— Certo. Estarei lá. Obrigado mais uma vez!
Depois de nos despedirmos, desliguei o telefone e fiquei parado ali, segurando o aparelho como se fosse algo precioso. Meu coração ainda batia rápido, e o sorriso que se formou no meu rosto parecia impossível de conter.
Ganhar o concurso já tinha sido incrível, mas aquilo… aquilo era outro nível. Era como se uma porta enorme tivesse acabado de se abrir diante de mim, mostrando um mundo que eu nunca imaginei alcançar.
Fechei os olhos por um instante, respirando fundo enquanto absorvia tudo. Um sentimento de realização e excitação me envolveu, e pela primeira vez, senti que tudo estava começando a fazer sentido.
Abri a porta da biblioteca com passos firmes e um sorriso determinado, pronto para encarar o que viesse a seguir. O futuro parecia... mais promissor do que nunca.