No princípio, havia apenas o caos.
Uma vastidão informe e desordenada, sem luz, som, tempo ou lugar, onde tudo e nada coexistiam em um eterno paradoxo.
O caos era o berço do universo, um potencial ilimitado à espera de um momento de criação.
E desse vazio primordial, como uma faísca na escuridão infinita, nasceram as primeiras entidades, forças primordiais que não eram nem humanas nem divinas, mas essências puras e eternas, os alicerces do universo.
Gaia, a Terra, foi a primeira a emergir. Mãe de todas as coisas vivas, ela surgiu como um solo fértil, capaz de suportar tanto a criação quanto a destruição.
De seu próprio ser, modelou os vales profundos, ergueu montanhas imponentes e cavou leitos onde rios poderiam correr. Gaia era mais do que terra; era o coração pulsante da existência, uma entidade que nutria e moldava tudo ao seu redor.
Logo após, nasceu Urano, o Céu estrelado, que se estendeu sobre Gaia como um manto protetor. Urano era vasto, eterno, um reino de luz e escuridão onde as estrelas brilhavam como testemunhas da criação.
Juntos, Gaia e Urano formaram o equilíbrio perfeito, terra e céu entrelaçados na dança eterna da existência. E de sua união surgiram as primeiras criações conscientes, as forças que moldariam o mundo como o conhecemos.
Mas o universo não era apenas luz e ordem. Das profundezas insondáveis, emergiu Tártaro, o abismo sem fim. Ele era o cárcere do caos, um lugar onde tudo o que era terrível e poderoso encontrava repouso.
Era a o completo oposto de Gaia, um vazio onde a criação não prosperava, mas era aprisionada.
Ao lado dele, Érebo, a escuridão, e sua irmã, Nix, a noite, envolveram o cosmos com mistério, trazendo o temor do desconhecido e o silêncio das sombras.
Do encontro, do amor e do conflito entre essas entidades primordiais, nasceram os Titãs, filhos de Gaia e Urano. Cada um deles era uma manifestação do poder bruto e da grandiosidade da criação.
Gigantes em forma e essência, os Titãs possuíam o potencial de moldar o mundo, mas também de destruí-lo. Eles eram, ao mesmo tempo, a glória e o peso da criação.
Entre eles estava Cronos, o titã do tempo, o mais jovem e astuto dos Titãs. Dotado de uma ambição insaciável e movido pela fúria contra a tirania de seu pai, Urano, Cronos liderou uma rebelião contra ele.
Armado com uma foice de adamante, presente de Gaia, ele atacou o Céu, cortando-o e assumindo o lugar de seu pai como senhor do universo.
Mas o reinado de Cronos não seria eterno.
Uma profecia sombria ecoava no cosmos: assim como ele derrubara seu pai, um de seus filhos faria o mesmo com ele.
Dominado pelo medo de perder o poder, Cronos tornou-se tão cruel quanto o pai que destronara.
Cada vez que um de seus filhos nascia, ele os devorava, aprisionando-os em seu interior, de onde nunca sairiam, determinado a impedir que o destino se cumprisse.
E assim, o universo permaneceu preso entre a criação e a tirania, aguardando o dia em que a nova geração de deuses se ergueria para mudar o curso da história.
...
[Era dos Titãs, ano desconhecido.]
No topo de uma montanha colossal, envolta em névoas eternas, erguia-se um templo solitário.
Seus pilares de mármore branco reluziam à luz pálida do céu primordial, formando um círculo que parecia desafiar o infinito.
Mas, ao contrário de outros templos, aquele lugar não era um santuário de veneração ou preces. Ali, não se buscava a graça dos seres divinos, tampouco se celebrava a vida.
Aquele era um altar de sacrifício.
No centro do templo, repousava uma mesa esculpida em pedra escura, fria e áspera ao toque. Suas superfícies estavam gravadas com marcas antigas, símbolos de um pacto sombrio.
Era um lugar onde a esperança dava lugar ao desespero, e o destino das crianças nascidas daquela era era selado pelo terror absoluto.
Somente uma mulher, uma mãe, uma pobre coitada fadada a sofrer por incontáveis anos, Rhea. Poderia entrar ali.
Era ela quem, com lágrimas e coragem forçada, carregava sua prole, mais uma delas, para o sacrifício.
Ali, no centro daquele círculo implacável, ela depositava seu recém-nascido, um saudável e rechonchudo bebê, que repousava sem saber o que o aguarda.
Não havia despedidas amorosas, nem promessas de reencontro, apenas o silêncio esmagador de um destino inevitável.
E então ela assistiria. Assistiria mais uma vez, a vida que ela teve o prazer e desprazer de trazer ao mundo, era devorada diante de seus olhos.
Não por uma fera selvagem ou um monstro das profundezas, mas por algo infinitamente mais cruel.
Por seu próprio esposo.
Por Cronos.
O som ecoou como um trovão no vale abaixo.
Bam! Bam! Bam!
Pesados estrondos reverberaram pelas montanhas, o impacto de algo colossal aproximando-se do templo.
Cada batida fazia o chão tremer, como se o próprio mundo estivesse antecipando o ato hediondo que estava para acontecer.
Os passos de um Titã.
Cronos estava chegando.
Da névoa, emergia a manifestação viva do poder e do terror. Sua aparência era tudo menos humana.
Cronos tinha uma presença imponente, um homem gigantesco cuja aparência mesclava o divino e o ancestral.
Sua pele era dourada como ouro, marcada por veios dourados que brilhavam suavemente, como se o tempo fluísse através dele.
Traços severos esculpiam seu rosto, com olhos dourados que emanavam uma sabedoria fria e inabalável.
Sua barba e cabelo, longos e ondulados, tinham tons de cinza e ouro, lembrando correntes de rios eternos.
Vestia-se com mantos rústicos, adornados com símbolos primordiais, que pendiam de seu corpo musculoso, construído para o domínio.
Mesmo com trajes simples, sua aura era inconfundível: a de um rei ancestral, poderoso, implacável e tirano.
Quando Cronos alcançou a montanha, ele se inclinou, aproximando seu imenso rosto do templo que repousava no topo.
Mesmo sendo uma construção tao colossal, o templo parecia pequeno e insignificante perante a cronos, que era maior que a própria montanha que o templo estava.
Seu olhar frio recaiu sobre o altar e a mulher que esperava lá. Ele viu a criança.
Para Cronos, aquele não era seu filho, muito menos um bebê inofensivo. Era uma ameaça.
Com uma lentidão que tornava o momento ainda mais aterrador, ele estendeu sua mão gigantesca.
Seus dedos, largos como torres, moviam-se com uma precisão quase delicada.
Quando alcançou o topo do templo, ele pegou a criança, segurando-a com cuidado entre o polegar e o indicador.
Ele ergueu o bebê até seus olhos, observando-o por um breve instante. Não havia emoção em seu olhar, nem amor, nem remorso, apenas a certeza de que o ato que estava prestes a cometer era necessário.
Cronos abriu a boca, uma caverna escura e abissal, e deixou a criança cair em seu interior.
Gulp.
O som da deglutição ecoou pelas montanhas, e o mundo pareceu segurar a respiração. Cronos engoliu com a mesma facilidade com que um homem comum consumiria um gole de água.
Não houve hesitação, nem prazer. Apenas a frieza calculada de alguém que acreditava estar cumprindo seu destino.
Seus olhos dourados então se voltaram para Rhea, que permanecia de pé no templo.
Mesmo diante daquela figura descomunal, seu olhar estava cheio de rancor e ódio. Ela não era mais uma esposa, mas apenas uma mãe cujo coração estava partido.
Cronos esboçou um sorriso cruel, como se zombasse de sua impotência. Ele então se ergueu, seu corpo colossal se afastando do templo, enquanto ele desaparecia lentamente na névoa que envolvia a montanha.
Assim que ele estava longe o suficiente, Rhea caiu de joelhos, incapaz de conter as lágrimas. Seu corpo tremia enquanto soluçava de dor e desespero.
— Poseidon... meu bebê... por favor, aguente mais um pouco. Só mais um pouquinho... — Sua voz, um sussurro quebrado, ecoava pelo templo vazio.
Ela apertou as mãos contra o peito, como se segurasse o espaço vazio onde seu filho deveria estar.
— A mamãe vai tirar você daí. Eu juro, eu juro, eu juro... — repetiu, suas palavras se misturando aos soluços.
Enquanto ela se contorcia no chão, a promessa de resgate era a única coisa que a mantinha de pé diante da tragédia.
Dentro de Cronos
A escuridão era total. Dentro do estômago do Titã, o ambiente não era apenas vazio, mas vivo com um pulsar contínuo, como o som distante de um tambor de guerra.
O bebê Poseidon, que havia sido lançado ao abismo do corpo de Cronos, começou a acordar. Seu pequeno corpo foi sacudido pela descida violenta através da garganta imensa do Titã.
BAM!
Ele aterrissou no fundo do estômago, o impacto reverberando como o som de uma pedra caindo em um poço sem fim.
— Uéh! Uéh! — O choro do bebê encheu o espaço. Poseidon estava assustado e com dor, mas, surpreendentemente, quase intacto. Mesmo caindo de uma altura inimaginável, seu corpo parecia protegido por algo além do natural.
Antes que pudesse entender onde estava, dois braços finos e humanos o ergueram com delicadeza.
— Mais um... Dessa vez, um menino.
A voz era jovem, mas carregava uma sabedoria que parecia contradizer sua idade. Quando Poseidon olhou para o dono da voz, seus olhos ainda lacrimejantes se fixaram em um garoto de pele clara e cabelos ruivos. Ele parecia ter cerca de nove anos, mas sua postura e seu olhar carregavam o peso de alguém que havia visto muito mais do que deveria.
— Qual é o seu nome, irmãozinho? — perguntou o garoto, inclinando a cabeça levemente enquanto segurava o bebê com cuidado.
Poseidon, claro, não respondeu. Mas o garoto não precisava ouvir para saber. Ele fechou os olhos, deixando a essência divina do recém-chegado falar por si.
— Poseidon... Seja bem-vindo.
O garoto sorriu suavemente, um sorriso que misturava melancolia e alegria. Ele segurou Poseidon com firmeza e começou a caminhar pelo interior do corpo de Cronos.
O estômago do Titã era como um labirinto vivo, onde o tempo e o espaço pareciam se dobrar. Ao redor deles, pedaços do passado e ecos de vozes distantes flutuavam como se Cronos carregasse não apenas seus filhos, mas também fragmentos de eras esquecidas.
Enquanto caminhava, o garoto murmurou:
— Você não está sozinho aqui. Nós somos seus irmãos. E um dia, juntos, vamos sair deste lugar.
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